Confesso
que relutei bastante sobre o que escrever em homenagem aos 78 anos de
emancipação política de minha cidade, Paulista. Quem acompanha nossos
comentários de política, possivelmente, conhece nossas posições sobre o
assunto. Em alguns momentos, chegamos mesmo a comentar que a nossa cidade não
merecia os gestores que por ali têm passado, em sua maioria, personalidades
representativas de arranjos e engrenagens políticas absolutamente estranhas às
demandas de um município com as suas características. Para ser mais franco,
filhos da terra não comprometidos ou forasteiros que fizeram do município apenas
um reduto político.
Durante
as últimas eleições, criamos um grupo de discussão na rede social Facebook
apenas para debater os problemas da cidade, grupo que não mereceu, até o
momento, o mínimo de consideração do poder público municipal, que poderia se
dignar em responder, republicanamente, as observações dos munícipes, cumprindo
o requisito básico da transparência da gestão. Esse fato sugere as dificuldades
de representação política que temos no município. Desde de então, o grupo vem
se “adensando”, ou seja, incorporando a proposta inicial de, efetivamente,
discutir, democraticamente, os problemas da cidade, cobrando do poder público
ações e políticas públicas convergentes.
Em
Paulista vivemos os melhores anos de nossa vida. Para usarmos uma expressão
extraída de um romance de José Lins do Rego, meus verdes anos. Desbravei suas matas virgens, pesquei em seus
açudes, bati muitas peladas em seus campos de várzea, recolhi seus frutos:
Pitombeiras, araçás silvestres, cajás, macaíbas, mangas (Rosa, Maranhão, Sapatinha,
Itamaracá, Espada e muitas outras espécies de manguitos). Mergulhei em suas
águas, no final da tarde, sob frio intenso. Açude do Frio, açude do Alto do
Bigode. Por essa época, as matas de Paulista eram bastante preservadas.
Qual
não foi nossa indignação ao saber que vão comprometer 40% do verde da Mata do
Ronca para a instalação de um parque de diversão. A Mata do Frio, então, que, à
época, possuía um excelente campo de várzea e muitas fruteiras consorciadas com
Mata Atlântica, hoje é vítima da especulação imobiliária e do crescimento
expansionista do Estado, sem qualquer sensibilidade aos problemas ambientais. Naquele
pedacinho do céu, de clima agradabilíssimo, joguei muita bola, ao lado de Dé, de
Ricardo, de “Buruca”. Por onde andará o craque “Buruca”. Nunca soube seu
verdadeiro nome. Apenas que jogava um bolão. Chegou a ser aproveitado no time
que se formou na cidade, o Paulistão, mas sua carreira se encerrou por ali.
Ricardo e “Buruca” eram irmãos, filhos de um alfaiate da cidade. Lembro que certa vez, depois de uma dessas “peladas”
fomos almoçar na casa dele, que morava nas proximidades da Praça Monte Castelo.
Depois de muitas décadas, ainda lembramos daquele sarapatel inesquecível. Nunca
tivemos a mesma habilidade com a bola do que “Buruca”, mas devo confessar, com
muito orgulho, que ele levou alguns dribles do mago que jogava com a camisa 05.
Apesar
das peladas, admiração e proximidade, não foi “Buruca” o nosso melhor amigo de
infância. Esse mérito coube ao “arquiteto” Dunda, com quem dividia as agruras e
o lanche do colégio. Dunda era um cara bastante habilidoso. Quantas vezes não
saímos juntos para juntarmos pedacinhos de tijolos nas construções. Em sua
casa, que era um verdadeiro sítio, haviam verdadeiros arranha-céus construídos
no quintal. Era filho de um grande carpinteiro e deve ter herdado suas
habilidades. Íamos juntos para o Colégio, não sem antes passarmos na Padaria
para comprarmos os tradicionais tarecos. Outra grande diversão nossa era “acordar”
uma plantinha, agora esqueço nome, que reage ao nosso toque, debaixo de uma
rede de alta tensão que passava próxima ao colégio. Depois fiquei sabendo que
aquele presepeiro colega de infância havia se regenerado e entrado para a lei
de crente. Outros grandes amigos de infância foram Gilson e Larry, pessoas com
as quais não tivemos mais nenhum contato.
Por
essa época, a Praça Monte Castelo era só alegria. As porteiras estavam todas
liberadas e não havia limites para as brincadeiras e sem-vergonhices típicas
dos primeiros anos. Com Larry, montamos um time de futebol, o Uberaba Futebol
Clube, com um padrão de liderança e organização que até hoje nos surpreendemos.
Em pouco tempo, apesar das dificuldades, tínhamos padrão, dois times formados e
algumas conquistas. Ali se fazia de tudo. As melhores brincadeiras de infância:
pau de sebo, garrafão, cabo de guerra, pipas, torrada de castanhas de caju. Até
as chuvas torrenciais vinham completar nossas estripulias, com os famosos
banhos de bica, abaixo das biqueiras dos tonéis já então transbordando de água.
Por essa época não havia água encanada e as famílias costumavam armazená-las
como podiam.
Se
as invernadas eram fortes, acompanhadas de trovoadas, no dia seguinte estávamos
a posto para as revoadas de tanajuras. Nada de “cai, cai tanajura”. Buscávamos
as danadas ainda dentro das tocas, apesar das ferroadas, que aliviávamos com a
utilização de sacos plásticos. Pausas? Apenas para tomar um K-Suco de morango
com cubinhos de gelo, bolachas cream-craker Pilar, recheada de goibada. No
domingo, a missa na Igreja de São Francisco de Assis. Um olho na missa e outro
na farra do domingo à tarde. Na segunda, religiosamente, o recolhimento dos
restos de velas para a reciclagem, através de uma engenhoca que envolvia folhas
de mamoeiros. Acreditamos que o invento pode ser atribuída a Dunda. Outra pausa
obrigatória era para acompanhar o seriado “Zorro”, muito mais pelo sargento
Garcia.
Os
poucos equipamentos de lazer da cidade eram controlados pela família Lundgren.
Aliás, para ser mais preciso, parafraseando o sociólogo Gilberto Freyre no seu
livro “Nordeste”, os Lundgrens eram donos das fábricas, das matas, da água e
das melhores mulheres. Convém frisar que, embora se aplique à situação, a
referência de Gilberto diz respeito aos senhores de engenho. Existia um clube,
dois cinemas e o Jardim do Coronel, numa arquitetura milimetricamente planejada
para colocá-lo bem diante da Companhia de Tecidos Paulista. Ainda lembramos de
sua abertura, como uma espécie de Jardim Zoológico, aos domingos.
Além
das tanajuras, outras iguarias eram a carne de charque gorda, assada no fogão a
lenha e as famosas jias capturadas por Gera, outro grande amigo de infância. Adorava
observar a charque “chorando” e levantando as labaredas do braseiro. Na Vila,
existiam alguns personagens folclóricos, como Severino Bucho Azul, Tonha da
Porca, Biu Doceiro, Farinha Seca, Mané Vê Dois, Dona Chocha, Dona Maria do
Dentão, além de outros apelidos impublicáveis.
Outra
lembrança inexpugnável é a do Círculo dos Operários Cristãos do Paulista, onde concluímos
o primário, sobretudo Dona Maria José Tavares de Lima, minha estimada
professora primária. Como lembro sempre, com todo o carinho, respeito e
admiração, uma negona truncada, cheia de ternura, capaz de se emocionar com
nossas histórias. O desvio da rota na volta da escola para ouvir o canto do
Ferreiro - hoje já ameaçado de extinção - e capturar piabas e camarões Pitu num
riacho que corria nas proximidades. Além de Dona Maria José Tavares de Lima, o
orgulho de ganhar um concurso na escola sobre a melhor frase escrita sobre comunidade.
Voltamos para casa, todo ancho, com a cartolina debaixo do braço, extasiado.
Sempre curti muito Paulista. Sua gente, sua feira, suas praças, suas chaminés,
suas matas. Assim como o poeta Pablo Neruda, confesso que vivi Paulista e, se
nos fosse possível, daria uma contribuição maior àquele torrão onde passamos os
melhores momentos de nossas vidas.
Pedimos
perdão aos leitores pelo fato de ter divagado sobre algumas referências
pessoais, mas, tais referências tornaram-se inevitáveis diante da circunstância
de nossas vidas se encontrar tão organicamente vinculado à história social
daquele município.
José Luiz Gomes da Silva
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