publicado em 23 de setembro de 2014 às 11:19
Acesso à Universidade em dois tempos: Dos anos 80 a 2014
por Márcio Santos
No início dos anos 80, ainda em plena ditadura militar, “vestibular”
era uma palavra quase maldita. As pernas tremiam e o coração saltava só
de olhar o número de concorrentes: eram dezenas e dezenas de candidatos
para uma mísera vaga num dos cursos de graduação das universidades
federais. Em Belo Horizonte, quem não conseguisse a façanha de entrar na
UFMG tinha que contar com a família para custear os caros cursos da
então “Universidade Católica”, hoje Pucminas. Ou, o que era largamente o
mais comum, abandonar por completo o sonho de entrar no tal do “curso
superior”.
Num dia entre o final de 79 e o início de 80, já não me lembro
exatamente em que mês, acordo assustado com o chamado da minha mãe.
Havia varado noites a fio nos estudos para as provas de vestibular e
estava atrasado. Ela tirou algum dinheiro da bolsinha e disse “vá de
táxi, meu filho, você vai perder a prova”. Recusei e atravessei correndo
os quarteirões que me separavam do ponto de ônibus para a UFMG.
Consegui chegar a tempo, afinal, para encarar a primeira de uma sucessão
de provas eliminatórias e classificatórias aplicadas ao longo de já não
me lembro mais quantas etapas de seleção.
O tal do “cursinho” era quase obrigatório. Promove e Pitágoras se
revezavam na captura de adolescentes de classe média que lotavam as
salas quentes. Os professores davam aulas para centenas de pessoas. Eu,
que não pudera pagar um desses cursinhos, acabei por ler a notícia da
aprovação para o curso de Economia num cartaz estampado no antigo
Promove da Rua São Paulo, no centro da cidade. Sozinho, dei um pulo
silencioso de alegria e fui para casa abraçar a minha mãe. Mais tarde
teria a cabeça raspada, como era de praxe.
Um salto de 30 e alguns anos me leva ao início de 2013. Foi quando
escrevi o projeto de pós-doutorado em História, apresentado ao CNPq, uma
das duas agências federais de fomento à pesquisa. Alguns meses depois
veio a resposta positiva para o pedido de bolsa de pós-doutorado na
França, na prestigiosa École des hautes études en sciences sociales.
O Programa Ciência Sem Fronteiras, do governo federal, garantiria a
minha permanência em Paris por sete valiosos meses. A verba incluía,
além da bolsa de manutenção mensal, auxílio para as passagens aéreas e
uma taxa extra de 400 euros mensais, por se tratar de cidade cara. A
minha esposa, doutoranda em Linguística, conseguira bolsa semelhante
para o chamado “doutorado sanduíche”. E assim pudemos ir em família,
levando o filhinho de 8 anos. Graças a essas bolsas e às facilidades que
encontramos na França, pudemos morar e estudar numa das cidades mais
desejadas e encantadoras do mundo.
O Brasil mudou, sim. Nos anos 80 da minha juventude éramos
desesperançados, atravessamos pessimistas a chamada “década perdida”. O
Plano Real, que debelou a inflação, trouxe-nos algum alento, mas todos
sabíamos que mexia-se na superfície financeira de uma sociedade em que
crianças morriam diariamente de fome nas ruas das grandes cidades. País
“subdesenvolvido”, de “Terceiro Mundo”, “atrasado”, eram os termos mais
comuns para nos referimos ao Brasil.
Esse quadro desalentador foi sacudido nos últimos 12 anos.
Felicito-me diariamente pela dificuldade em conseguir uma empregada
doméstica, porque as jovens pobres das vizinhanças são vendedoras de
lojas, cabeleireiras, cuidadoras de idosos ou, até mesmo,
universitárias. A lavadora de roupas da nossa casa estraga e a nossa
ajudante opina certeira sobre o problema, pois tem um equipamento igual
ou melhor em casa. Recebe um salário mínimo e meio por 6 horas diárias
de trabalho, apenas de segunda a sexta-feira, com carteira assinada e
direitos trabalhistas, um padrão impensável há 20 ou 30 anos.
Quanto a mim, pude desfrutar de um curso de pós-doutorado num centro
mundial de produção intelectual graças a um programa dos governos Lula e
Dilma. Não foi “dádiva”: tive que batalhar duro para ter o projeto
aprovado e, depois, prestar contas do resultado final da pesquisa
realizada. Mas esse ambiente de múltiplas alternativas de estudo,
pesquisa e aprimoramento intelectual só foi possível por meio das
transformações operadas pelos últimos 3 governos.
Na França o meu supervisor de pesquisa dizia-se surpreendido com a
oferta de bolsas de pós-graduação pelas universidades públicas
brasileiras, segundo ele maior até mesmo do que nas escolas francesas. É
isso: somos comparados à França. E a comparação não vem de algum
“petista apaixonado”, mas de um acadêmico e intelectual francês, nada
interessado nas nossas lides políticas e eleitorais.
Muito resta por se fazer. O relatório da ONU informa que o país
reduziu em 50% o número de pessoas que passam fome. Estamos nos
aproximando do sonho de Lula em 1989: que todo brasileiro coma 3 vezes
por dia. Mas ainda nos resta um fundo terrível de desigualdade,
violência, exclusão e corrupção. Mudanças históricas são lentas, a menos
que sejam feitas por revoluções – e esse não foi o nosso caso. Mas, com
os programas sociais dos últimos 12 anos, sabemos que estamos no
caminho certo.
(Publicado originalmente no Viomundo)
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