pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO. : A esquerda não tem nada de novo a dizer sobre a violência urbana?
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sábado, 17 de março de 2018

A esquerda não tem nada de novo a dizer sobre a violência urbana?

                                           
Wilson Gomes                                                                                 

A esquerda não tem nada de novo a dizer sobre a violência urbana?
Arte Revista Cult


O crime urbano violento e a corrupção, quando tratados como fenômenos sociais graves e disseminados, estão muito próximos. Os fenômenos do crime urbano e da corrupção política, em virtude do modo extremo como hoje afetam a qualidade de vida dos brasileiros, são considerados não apenas as principais razões para o desejo de migrar, o novo trend das nossas classes abastadas (a modinha do Projeto Miami e, mais recentemente, o Projeto Portugal), como também ganharam espaço cativo no topo das urgências sociais que, segundo a percepção geral, a política tem que resolver.
Mas o que o sentimento geral da população considera problemas e urgências sociais é em geral um construto da própria sociedade. Explico. O que não falta no mundo são problemas e aflições, mas toda sociedade em um determinado momento elege aqueles que são mais urgentes e que, por conseguinte, precisam estar no topo da agenda. Mas tudo tem limite, até o centro das preocupações sociais. Assim, lembramos de e ficamos aflitos com algumas poucas coisas de cada vez e vamos substituindo os temas e problemas conforme vai se deslocando o foco da atenção pública. Os cidadãos, em um dado momento, precisam pôr-se de acordo, por exemplo, que o que lhes impede de serem felizes e de terem uma vida com qualidade são agora X e Y e que A e B, que ocupavam, até o momento, o topo das suas aflições, podem ser deslocados para o segundo plano.
Assim, preocupações com saúde pública e desemprego parecem estar no centro das nossas preocupações em razão de uma imposição da realidade, mas o fato é que, em um determinado momento, uma sociedade pode decidir que temas como imigração, ajuste das contas públicas, matriz enérgica, sustentabilidade, aquecimento global, educação, violência urbana ou corrupção podem assumir o seu lugar. E é assim que os temas vão e vêm das arenas da atenção pública.
Além disso, problemas sociais não são propriamente “fatos naturais”, mas fatos interpretados, segmentos intermediários de uma sequência que inclui pelo menos um diagnóstico e uma solução preconizada. As expressões genéricas “crime” ou “corrupção” são, na verdade, um feixe de noções envolvidas em uma competição social pela interpretação das raízes do crime e da corrupção e do modo como estes temas podem ser resolvidos. Esta competição envolve, naturalmente, todas as forças sociais que disputam o mercado de interpretação e opiniões: as pessoas comuns, a comunicação massiva e as pessoas que conseguem se expressar por meio dela, intelectuais, autoridades, políticos etc. Não é simplesmente “corrupção”, mas corrupção causada por X e que deve ser resolvida pelos meios Y e Z. Idem para o crime urbano.
Por fim, depois que as pessoas se põem em suficiente acordo sobre as emergências sociais e sobre o ângulo de abordagem a ser adotado, chega o momento em que elas, as emergências, de alguma forma, estruturam as campanhas políticas. É na relação com as emergências que aparecem na percepção social que são avaliados os cacifes eleitorais dos candidatos, planejadas as narrativas da campanha e construídas as imagens dos candidatos. Assim, uma vez que a maioria admite que a corrupção é causada por X (e não por A) e será resolvida por meio da providência Y (e não B), o ator mais adaptado para o papel e a narrativa mais coerente com as premissas socialmente adotadas no esquema causa-problema-solução têm mais chances eleitorais que os seus concorrentes.
Por outro lado, as grandes contraposições políticas frequentemente desempenham um papel na estrutura das urgências sociais e da resposta política, tanto no que tange às narrativas quanto no que se refere à imagem de pessoas e instituições necessárias para disputar a opinião pública e os votos. A esquerda e a direita, por exemplo, novamente voltam, nestes dias, ao terreno da disputa acerca do tema do crime. Não é opcional. Como disse na coluna anterior, a agenda do crime ocupou o centro da atenção pública e está orientando, como nunca, as decisões eleitorais na eleição presidencial.
O problema, para a esquerda e para o centro, é que estão sendo derrotados fragorosamente no tema do crime, na arena da percepção pública. E esta é provavelmente uma das razões porque esta eleição, noves fora Lula, vem se inclinando para a direita. Antes de tudo, isso tem a ver com cultura e mentalidades relacionadas aos segmentos políticos: a direita, sobretudo a direita conservadora, consegue tradicionalmente lidar melhor com os temas do crime e da violência do que o centro liberal ou a esquerda progressista. Tudo tem a ver com a competição pela interpretação do esquema causa-problema-solução. Competição, naturalmente, para ver qual será o ponto de vista adotado pela maioria das pessoas, se o meu ou do meu concorrente. Assim, por exemplo, se o tema é o crime violento, o pacote completo inclui a disputa para ver quem consegue convencer mais pessoas sobre as causas do crime violento e as soluções ao alcance da mão para resolvê-lo.
O fato é que a esquerda em geral, e a esquerda brasileira em particular, não tem uma resposta com sucesso de público e crítica para a violência urbana. O sucesso da direita, por sua vez, tem a ver com o enquadramento que adota, as associações que evoca e com o fato de as suas explicações serem simples, intuitivas e coerentes com a matéria prima fartamente disponível no imaginário social – medo, moralização e punição -, enquanto os concorrentes fazem associações complexas e abstratas, correlacionam causas remotas e demandam muito em termos de cognição e informação do público para serem assimiladas e aceitas.
Há, naturalmente, muitas alternativas possíveis para o esquema causa-problema-solução no que se refere ao crime violento urbano. A direita conservadora costuma recorrer a duas delas. Na primeira, há crime porque indivíduos tomam a decisão de praticá-los e o fazem de caso pensado. Há racionalidade envolvida, pois o criminoso sopesa vantagens e riscos e decide que os potenciais benefícios de, por exemplo, praticar um latrocínio, superam os potenciais custos envolvidos. O sujeito põe na balança, de um lado, os benefícios do crime e, de outro, as chances de ser apanhado, multiplicadas pelas penas a que estaria sujeito se fosse condenado. E se inclinará para o prato que pesar mais.
Como, em geral, acredita-se que no Brasil é baixíssima a chance de um criminoso violento ser apanhado e que, quando ocorre identificação e condenação, as penas não são severas o suficiente, parece à população que o temor de ser apanhado e a perspectiva de punição não são o bastante para desencorajar o crime. Antes, ao contrário, o crime compensa e a escolha pelo crime, acreditam, tem fundamento racional.
Poder-se-ia perguntar, claro, por que razão, se o crime compensaria para todo mundo, nem todo mundo é criminoso. Teoricamente, a teoria da escolha racional, aplicada ao crime, é pouco consistente, mas a opinião pública não é um simpósio filosófico e a responsabilização individual pelo crime (“se eu me privo, mas não pratico o crime, os outros também poderiam fazer o mesmo”), que a acompanha, acaba desviando a atenção das inconsistências conceituais da ideia.
O passo seguinte, naturalmente, é a política pública para resolver o problema. Do diagnóstico do crime decorre que uma solução necessariamente há de passar pelo aumento das chances de identificação e captura do criminoso (vigiar) e pelo aumento das penalidades pelo crime violento (punir). Precisa-se, portanto, de mais vigilância, mais controle, mais polícia, mais exibição de força do Estado, de um lado, e do aumento das penas (tudo vai virando “crime hediondo”) e da diminuição da menoridade penal, de outro.
A fórmula parece simples: se mais vigilância, penas mais severas e mais gente podendo ser punida (até crianças), o prato da balança dos custos do crime começará a pesar mais que o prato dos benefícios, e o crime violento deixará de compensar. A banalização da violência cessaria com a distribuição de punições mais frequentes, mais severas e a mais gente.
O segundo modelo adotado para explicar a violência urbana transfere a causa do crime para o plano dos valores. A responsabilização tira o peso do indivíduo e dos seus cálculos de perdas e ganhos e o transfere para o julgamento de caráter, individual, e para a estrutura intermediária onde o caráter é formado, que são os valores. Crime tem a ver com maldade, com fraqueza de caráter, com ausência de valores.
Há uma teoria sobre a decadência moral da sociedade por trás desta explicação: se no passado o crime urbano não assombrava as pessoas e todos se sentiam seguros é porque no passado os valores compartilhados eram do tipo X (valorizava-se a honestidade, o trabalho, a integridade, o respeito, a religião, a distribuição tradicional dos papeis de gênero, um padrão normativo de comportamento sexual, etc.), de muito melhor qualidade, e não do tipo Y que agora “querem nos impor”. A violência seria um sintoma de um profundo desarranjo no nível dos valores e na formação do caráter das pessoas. Assim, os jovens são piores que os velhos, os costumes antigos são melhores que os modernos e as sociedades do passado são melhores do que as do presente: O tempora! o mores!.
O antídoto à dissolução moral, naturalmente, estaria em preservar valores morais consistentes, restaurando antigos padrões e reeducando. Naturalmente, quem está disposto a diagnosticar esta causa não tem tempo nem paciência para reeducar uma inteira sociedade degenerada, preferindo mais rapidamente punir, afastando a “maçã podre” da sociedade antes que se estrague todo o cesto.
Nesta perspectiva, educar evita o aumento do dano, mas não o que já está acontecendo. De forma que tudo o que caberia ao Poder Público, dado o estado de disseminação do crime, seria punir exemplarmente a marginalidade, aumentando por este meio o medo de ser apanhado e, de quebra, reafirmando os bons valores desta sociedade. Não se deixaria de praticar o mal por virtude, mas por pavor das punições que podem ser aplicadas pelas “pessoas de bem”.
Nas duas alternativas, o “vamos punir!” é a forma de aplacar o ressentimento da parte da sociedade que é vítima habitual do crime urbano. O mesmo se aplicando, ao tema aparentado da corrupção. A convicção por trás disso tudo é que a punição é o remédio que cabe ao Estado aplicar em nome da sociedade. É um esquema freudianamente até infantil: se eu não posso fazê-lo e se quando o faço sou punido, porque ele faz e não lhe acontece nada? Se o medo da punição é eficaz em mim, também será eficaz para conter os outros. E se houver algum obstáculo social à punição severa, alargada e abrangente, que nos satisfaz, tenha este obstáculo origem nos direitos e garantias das Constituições liberais ou venha do populismo da esquerda e dos Direitos Humanos, que se danem tais barreiras, passemos por cima delas. As contas precisam fechar de maneira mais favorável às “pessoas de bem”, a sua sede de justiçamento precisa ser aplacada.
O modelo causal da esquerda já é velho e gasto. A responsabilização individual desaparece da equação, a estrutura intermediária dos valores é dispensada e tudo se resume à relação entre macroestruturas determinantes e indivíduos determinados. A violência urbana, como muitas outras mazelas sociais, é determinada em sua maior parte por fatores estruturais remotos. Pobreza, miséria, abandono social, ausência de acesso a serviços de educação, saúde e amparo social, como fatores próximos, e pela própria divisão da sociedade em classes e, enfim, pelo sistema de produção capitalista, como fatores remotos. Tudo isso vai correlacionado para explicar o crime urbano e uma série de outros fenômenos associados.
As soluções, naturalmente, passam por mudanças estruturais, geralmente fora do alcance imediato dos imediatamente envolvidos: fim da miséria e da pobreza, educação (“Se os governantes não construírem escolas, em 20 anos faltará dinheiro para construir presídios”, disse Darcy Ribeiro), alteração substancial nos índices de desenvolvimento humano em geral. Os mais radicais, naturalmente, atam tudo ao fim do modo de produção capitalista e à exploração do homem pelo homem.
As políticas públicas dedicadas ao problema da violência urbana (a rigor, desaparece o problema do crime, substituído pelo tema mais genérico da “questão social”) devem vir pari passu com todas as políticas públicas dedicadas a resolver a questão social. Não há uma ênfase exclusiva ou mesmo expressiva no tema da epidemia do crime urbano que apavora as pessoas neste momento. Em vez do mais simples e aplacador “vamos punir”, entra em campo o menos emocionante, quase frígido, “vamos construir escolas, vamos incluir todos os cidadãos, vamos reduzir as desigualdades para acabar com o crime”.
Para o cidadão comum, trancado em casa e que possivelmente já experimentou no corpo ou na vida dos que ama ou amou o horror da violência, isto soa basicamente como dizer “reze e entregue tudo a Deus”. Não resolve o seu problema, nem solução lhe parece.
Ainda mais quando lhe dão a entender que ele é causa do problema e não a sua vítima. Se é de classe baixa, dizem-lhe que a culpa é da sociedade e não do criminoso; se é de classe média dizem-lhe que a culpa é do seu egoísmo, do seu consumismo, da sua indiferença; se calha de ser rico, então, a culpa é diretamente jogada nos seus ombros, quase como se a merecesse, como punição, por ser beneficiário da exploração do seu semelhante ou por não tomar as providências que poderiam pôr fim à situação.
Quem, em situação de desespero, quer ser responsabilizado pelo mal de que é vítima, tirando a responsabilidade individual do seu algoz para colocá-la em si? Melhor migrar, melhor adotar a solução “casca grossa” de Bolsonaro, qualquer coisa é melhor que o proposto. Mas isto é praticamente tudo o que a esquerda tem a oferecer e não surpreende, em termos de mera psicologia social, que as pessoas fujam da adoção deste esquema como o diabo fugiria da cruz.
Na verdade, ninguém sabe como interpretar corretamente o problema da violência urbana brasileira e, muito menos, como resolvê-la. A intervenção militar de Temer na cidade do Rio é, neste contexto, uma cartada extrema, apostando tudo na demanda punitivista da sociedade. Bolsonaro oferece perspectivas de punição, “se eleito for”; Temer aposta no aumento da presença do Estado armado, forte, amedrontador. Poderia ter mandado a Guarda Nacional, mas a palavra Forças Armadas tem mais peso dramático e só Deus sabe como Temer precisa de soluções dramatúrgicas para o seu fim de governo.
O lance é arriscado, claro, uma vez que um esquema que pode funcionar muito tempo no nível do imaginário e das narrativas pode revelar-se um engodo quando materializado em ações. E se o crime no Rio não diminuir? E se o crime voltar assim que o Exército se retirar? Os 70% que apoiam a intervenção, com o argumento de que “chegamos ao limite, alguma coisa tinha que ser feita”, terão paciência por quanto tempo se não virem o crime reduzir drasticamente?
A esquerda em geral falha no seu esquema pela impossibilidade de mostrar resultados imediatos. “Eduque o sujeito agora e não terá que o punir daqui a 20 anos” é um argumento relativamente sensato, mas 20 anos é uma vida e a violência é um transtorno existencial tremendo aqui e agora. Os esquemas interpretativos da direita conservadora parecem mais intuitivos, mas se são transformados em política de Estado precisam fazer uma entrega imediata.
Por isso é que “bancadas da bala”, candidatos eleitos por conta da agenda do combate ao crime, são geralmente bancadas legislativas e não cargos executivos – o sujeito faz basicamente discursos, atua no interesse de corporações militares e policiais e tenta fazer Projetos de Lei transformando o delito A em crime hediondo, apoiando que a população se arme ou tentando reduzir a menoridade penal. Gasta cuspe e papel, nada mais. Não tem que testar as suas ideias em campo e mostrar que o seu esquema explicativo efetivamente dá conta da realidade do crime. Há poucos meses das eleições gerais, ao fazer do Rio o seu laboratório, Temer faz uma aposta alta. Logo saberemos no que pode resultar.
Enquanto isso, a esquerda é apanhada mais uma vez sem ter o que dizer sobre um tema dominante na conjuntura política. Aconteceu o mesmo em 1994, quando o tema que se impôs na opinião pública foram inflação e máquina pública, sobre os quais o PT nada tinha a dizer e FHC nadou de braçada. As perspectivas punitivistas continuam fazendo sucesso de público, embora estejam enfrentando um teste de fogo neste exato momento.
Nas arenas da opinião e do imaginário do público, contudo, não têm adversária à altura. E, o que é pior, a esquerda sequer demonstra ser capaz de entender a importância deste tema para a população. O que tem para oferecer, até o momento, é não apenas o esforço de demonização da urgência social, como também a tentativa de demonização dos atores políticos que, por sua vez, concentram-se em surfar com sucesso a gigantesca onda de atenção que o tema produziu. Como se demonizar temas e atores fosse capaz de fazer o tema desaparecer ou de tornar desimportantes aqueles que fornecem as interpretações que o público adota e usa para tomar decisões eleitorais.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

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