Marielle Franco ajudou o Le Monde Diplomatique Brasil no momento em que mais precisamos. Em dezembro de 2017 gravou depoimento em apoio à nossa campanha de financiamento coletivo. Em janeiro de 2018, seu artigo compôs a cobertura da capa sobre a revolução feminista. No texto, ela dizia: “nós aprendemos umas com as outras, estamos buscando formas de fazer política que não sejam mera reprodução do que sempre foi feito”. Sua solidariedade jamais será esquecida. Seu exemplo será seguido. O novo sempre vem. Expressamos também nossos sentimentos aos familiares, amigos e amigas de Anderson Pedro Gomes.
Republicamos a seguir o artigo escrito por Marielle para nossa edição de janeiro. A postagem original pode ser acessada aqui.
O novo sempre vem
Por Marielle Franco
Em 1975, um grupo de mulheres organizou um evento na Associação Brasileira de Imprensa (ABI), no Rio de Janeiro, sobre a situação das mulheres no Brasil. Foram mais de quatrocentas participantes, num movimento que deu início ao Centro da Mulher Brasileira (CMB), primeira organização feminista no país. Mais de quatro décadas depois, ocupamos o mesmo espaço, agora como mulheres, negras, trans, faveladas, professoras, nordestinas, mães, enfim, mulheres em toda a sua diversidade.
No evento de outrora, mulheres negras fizeram críticas contundentes à organização que, apesar de contar com personagens importantes da luta contra a ditadura, não abarcou a diversidade de experiências do que é ser mulher. No final de novembro de 2017, fizemos da ABI um espaço de debate político. Um debate vivo, cheio de nuances, em que cinco centenas de nós afirmamos que vamos ocupar a política, os espaços de poder; contudo, não em uma ocupação meramente “cotista”. Há, inegavelmente, um novo momento, uma marcha em fermentação de mulheres rumo à apropriação dessas engrenagens.
Chegamos a 2018 colhendo frutos de décadas de lutas das mulheres por melhores condições de vida e por mais igualdade nos espaços de tomada de decisões. Nesse período, é inegável que o feminismo se tornou mais diverso, em especial com os avanços das pautas de raça, orientação sexual e identidade de gênero, e também nas reflexões sobre as diversas experiências pelas quais as mulheres passam, como a maternidade. Essa diversidade se expressa nas ruas, em manifestações, e nas redes sociais, por meio de páginas, aplicativos, blogs e vídeos.
Fala-se muito que estamos vivendo uma nova onda feminista, embora a ideia de onda indique um rompimento maior do que como acontece na história de fato. A mídia propaga a ideia de que há um “novo feminismo”, mas na verdade o que vivemos é o resultado de uma convergência de diferentes expressões do feminismo que, mesmo com estratégias de atuação muito diversas, têm em comum a compreensão de que a internet é um espaço de diálogo e articulação política. O feminismo brasileiro hoje não é só jovem e empoderado. O bonde das feministas históricas e o bonde das feministas hashtag dialogam na construção das ações. O feminismo como um todo é plural, diversificado e capaz de produzir convergências.
Desde a eleição de 2010 vivemos uma conjuntura marcada por contradições importantes no que se refere às questões de gênero. O saldo das manifestações e campanhas que se seguiram foi a necessidade de uma representação política mais diversa. As mulheres se colocaram como uma força política importante no cenário nacional, em especial as negras e indígenas. Assumimos o papel de apontar para o que seria o “novo” de verdade na política: inverter o jogo, sair da posição de subalternidade na sociedade para ocupar espaços de formulação, de desenvolvimentos programáticos e de projetos, de tomadas de decisão.
Apesar de termos chegado a alguns lugares importantes, a representação política das mulheres ainda é ínfima, e a das mulheres negras é ainda pior. Mulheres negras somos cerca de 25% da população brasileira, segundo censo do IBGE de 2010. Segundo o “Retrato das desigualdades de gênero e raça” (Ipea, 2015), somos também a maior parte das pessoas desempregadas, que trabalha sem carteira assinada, como empregada doméstica ou com menor renda domiciliar per capita. Essa situação não é por acaso, é fruto de um desenvolvimento civilizatório que foi capaz de desumanizar e objetificar o corpo das mulheres negras.
Em meio a tanta desigualdade, ao racismo e ao sexismo que insistem em nos violentar, a chegada da mulher negra à institucionalidade surpreende. Nossa presença assusta o conluio masculino, branco e heteronormativo. Ao mesmo tempo, nos vemos diante do desafio de construir um projeto político que não exclua as questões que nos trouxeram até aqui, que não as torne secundárias e que se mantenha afinado com as lutas dos movimentos.
Ironicamente, se em 1975 as mulheres reunidas estavam em luta contra a ditadura militar, agora estamos em enfrentando um governo ilegítimo e os golpes cotidianos que ele promove em nossos direitos e em nossas liberdades. Em um cenário de graves retrocessos e da ação articulada das forças religiosas no Congresso Federal, as mulheres estão conseguindo impedir as mudanças de legislação pela articulação de formas muito diversas de fazer feminismo por meio do fortalecimento mútuo. Estamos resistindo aos ataques racistas cotidianos e tentando encontrar caminhos para superar a situação de miséria em que a crise colocou as pessoas que moram nas favelas, periferias e no campo, fortalecendo as iniciativas de economia solidária e de fortalecimento de movimentos como o MTST e o MST.
Graças ao surgimento de grupos como o PretaLab, à formação sobre segurança digital da Universidade Livre Feminista, à MariaLab e às Blogueiras Negras, estamos resistindo à difusão do discurso de ódio e às novas formas de violência que acontecem no âmbito virtual. Quando ouvimos o Slam das Minas, levando a poesia falada das mulheres para os diferentes territórios e reinventando a ideia de batalha – elas não competem nos recitais, elas estão lado a lado, se complementando na performance –, sabemos quem somos, as vozes que se escutam, que se acolhem, que fazem política o tempo todo. Essa resistência é nova também em sua estética!
A PartidA Feminista está mobilizada para lançar candidatas e fazer o debate sobre a importância de eleger feministas comprometidas com os projetos de transformação. O movimento, surgido em 2015, quando ativistas se reuniram para discutir o sentido e a possibilidade de um partido feminista brasileiro, reúne coletivos de mulheres de partidos e movimentos diversos de todo o Brasil. Ou seja, de forma articulada, as eleições de 2018 estão sendo gestadas. Iniciativas para uma representação mais diversa devem ser reeditadas, além de instrumentos para o financiamento coletivo das campanhas.
Em nosso encontro recente na ABI, partimos da ideia de que “uma mulher puxa a outra” – um dos motes da Marcha das Mulheres Negras em 2017. Reunimos mulheres que se destacaram no cenário político do Rio de Janeiro e que são potenciais candidatas a diversos espaços de poder – câmaras estaduais e federal, sindicatos, partidos e associações diversas –, com destaque para as mulheres negras. Isso porque o recado foi dado nas eleições de 2016, e aqui no Rio de Janeiro seguimos à frente da Comissão da Mulher para pautar o debate de gênero na Câmara partindo da nossa perspectiva. Talíria Petroni tem enfrentado o desafio de construir um mandato negro, popular e feminista como a única mulher na Câmara de Niterói. Áurea Carolina, em Belo Horizonte, inova ao criar a “gabinetona” aberta às mais diferentes lutas e ao mesmo tempo atenta aos afetos, à poesia e ao autocuidado. Nós aprendemos umas com as outras, estamos buscando formas de fazer política que não sejam mera reprodução do que sempre foi feito, porque isso nos deixa mais fortes para ocupar espaços da institucionalidade, apesar de todos os retrocessos. Mas não queremos ficar sozinhas nesse espaço, queremos outras e que transformem a política.
O evento recente da ABI foi gestado dentro de um mandato parlamentar, mas não só por ele. Uma rede de mulheres independentes de filiações partidárias se uniu para demandar e organizar o encontro. Por si só essa movimentação descortina um novo momento. O sistema político, tal qual (não) funciona hoje precisa ser urgentemente transformado. Nossa aposta é que outras mulheres sejam fortalecidas para ocupar os espaços de poder. E, para isso, qualquer projeto político de esquerda não pode ignorar as questões que trazemos. 2018 que nos aguarde!
*Marielle Franco é vereadora do Rio de Janeiro pelo Psol.
O novo sempre vem
Por Marielle Franco
Em 1975, um grupo de mulheres organizou um evento na Associação Brasileira de Imprensa (ABI), no Rio de Janeiro, sobre a situação das mulheres no Brasil. Foram mais de quatrocentas participantes, num movimento que deu início ao Centro da Mulher Brasileira (CMB), primeira organização feminista no país. Mais de quatro décadas depois, ocupamos o mesmo espaço, agora como mulheres, negras, trans, faveladas, professoras, nordestinas, mães, enfim, mulheres em toda a sua diversidade.
No evento de outrora, mulheres negras fizeram críticas contundentes à organização que, apesar de contar com personagens importantes da luta contra a ditadura, não abarcou a diversidade de experiências do que é ser mulher. No final de novembro de 2017, fizemos da ABI um espaço de debate político. Um debate vivo, cheio de nuances, em que cinco centenas de nós afirmamos que vamos ocupar a política, os espaços de poder; contudo, não em uma ocupação meramente “cotista”. Há, inegavelmente, um novo momento, uma marcha em fermentação de mulheres rumo à apropriação dessas engrenagens.
Chegamos a 2018 colhendo frutos de décadas de lutas das mulheres por melhores condições de vida e por mais igualdade nos espaços de tomada de decisões. Nesse período, é inegável que o feminismo se tornou mais diverso, em especial com os avanços das pautas de raça, orientação sexual e identidade de gênero, e também nas reflexões sobre as diversas experiências pelas quais as mulheres passam, como a maternidade. Essa diversidade se expressa nas ruas, em manifestações, e nas redes sociais, por meio de páginas, aplicativos, blogs e vídeos.
Fala-se muito que estamos vivendo uma nova onda feminista, embora a ideia de onda indique um rompimento maior do que como acontece na história de fato. A mídia propaga a ideia de que há um “novo feminismo”, mas na verdade o que vivemos é o resultado de uma convergência de diferentes expressões do feminismo que, mesmo com estratégias de atuação muito diversas, têm em comum a compreensão de que a internet é um espaço de diálogo e articulação política. O feminismo brasileiro hoje não é só jovem e empoderado. O bonde das feministas históricas e o bonde das feministas hashtag dialogam na construção das ações. O feminismo como um todo é plural, diversificado e capaz de produzir convergências.
Desde a eleição de 2010 vivemos uma conjuntura marcada por contradições importantes no que se refere às questões de gênero. O saldo das manifestações e campanhas que se seguiram foi a necessidade de uma representação política mais diversa. As mulheres se colocaram como uma força política importante no cenário nacional, em especial as negras e indígenas. Assumimos o papel de apontar para o que seria o “novo” de verdade na política: inverter o jogo, sair da posição de subalternidade na sociedade para ocupar espaços de formulação, de desenvolvimentos programáticos e de projetos, de tomadas de decisão.
Apesar de termos chegado a alguns lugares importantes, a representação política das mulheres ainda é ínfima, e a das mulheres negras é ainda pior. Mulheres negras somos cerca de 25% da população brasileira, segundo censo do IBGE de 2010. Segundo o “Retrato das desigualdades de gênero e raça” (Ipea, 2015), somos também a maior parte das pessoas desempregadas, que trabalha sem carteira assinada, como empregada doméstica ou com menor renda domiciliar per capita. Essa situação não é por acaso, é fruto de um desenvolvimento civilizatório que foi capaz de desumanizar e objetificar o corpo das mulheres negras.
Em meio a tanta desigualdade, ao racismo e ao sexismo que insistem em nos violentar, a chegada da mulher negra à institucionalidade surpreende. Nossa presença assusta o conluio masculino, branco e heteronormativo. Ao mesmo tempo, nos vemos diante do desafio de construir um projeto político que não exclua as questões que nos trouxeram até aqui, que não as torne secundárias e que se mantenha afinado com as lutas dos movimentos.
Ironicamente, se em 1975 as mulheres reunidas estavam em luta contra a ditadura militar, agora estamos em enfrentando um governo ilegítimo e os golpes cotidianos que ele promove em nossos direitos e em nossas liberdades. Em um cenário de graves retrocessos e da ação articulada das forças religiosas no Congresso Federal, as mulheres estão conseguindo impedir as mudanças de legislação pela articulação de formas muito diversas de fazer feminismo por meio do fortalecimento mútuo. Estamos resistindo aos ataques racistas cotidianos e tentando encontrar caminhos para superar a situação de miséria em que a crise colocou as pessoas que moram nas favelas, periferias e no campo, fortalecendo as iniciativas de economia solidária e de fortalecimento de movimentos como o MTST e o MST.
Graças ao surgimento de grupos como o PretaLab, à formação sobre segurança digital da Universidade Livre Feminista, à MariaLab e às Blogueiras Negras, estamos resistindo à difusão do discurso de ódio e às novas formas de violência que acontecem no âmbito virtual. Quando ouvimos o Slam das Minas, levando a poesia falada das mulheres para os diferentes territórios e reinventando a ideia de batalha – elas não competem nos recitais, elas estão lado a lado, se complementando na performance –, sabemos quem somos, as vozes que se escutam, que se acolhem, que fazem política o tempo todo. Essa resistência é nova também em sua estética!
A PartidA Feminista está mobilizada para lançar candidatas e fazer o debate sobre a importância de eleger feministas comprometidas com os projetos de transformação. O movimento, surgido em 2015, quando ativistas se reuniram para discutir o sentido e a possibilidade de um partido feminista brasileiro, reúne coletivos de mulheres de partidos e movimentos diversos de todo o Brasil. Ou seja, de forma articulada, as eleições de 2018 estão sendo gestadas. Iniciativas para uma representação mais diversa devem ser reeditadas, além de instrumentos para o financiamento coletivo das campanhas.
Em nosso encontro recente na ABI, partimos da ideia de que “uma mulher puxa a outra” – um dos motes da Marcha das Mulheres Negras em 2017. Reunimos mulheres que se destacaram no cenário político do Rio de Janeiro e que são potenciais candidatas a diversos espaços de poder – câmaras estaduais e federal, sindicatos, partidos e associações diversas –, com destaque para as mulheres negras. Isso porque o recado foi dado nas eleições de 2016, e aqui no Rio de Janeiro seguimos à frente da Comissão da Mulher para pautar o debate de gênero na Câmara partindo da nossa perspectiva. Talíria Petroni tem enfrentado o desafio de construir um mandato negro, popular e feminista como a única mulher na Câmara de Niterói. Áurea Carolina, em Belo Horizonte, inova ao criar a “gabinetona” aberta às mais diferentes lutas e ao mesmo tempo atenta aos afetos, à poesia e ao autocuidado. Nós aprendemos umas com as outras, estamos buscando formas de fazer política que não sejam mera reprodução do que sempre foi feito, porque isso nos deixa mais fortes para ocupar espaços da institucionalidade, apesar de todos os retrocessos. Mas não queremos ficar sozinhas nesse espaço, queremos outras e que transformem a política.
O evento recente da ABI foi gestado dentro de um mandato parlamentar, mas não só por ele. Uma rede de mulheres independentes de filiações partidárias se uniu para demandar e organizar o encontro. Por si só essa movimentação descortina um novo momento. O sistema político, tal qual (não) funciona hoje precisa ser urgentemente transformado. Nossa aposta é que outras mulheres sejam fortalecidas para ocupar os espaços de poder. E, para isso, qualquer projeto político de esquerda não pode ignorar as questões que trazemos. 2018 que nos aguarde!
*Marielle Franco é vereadora do Rio de Janeiro pelo Psol.
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