Marcia Tiburi
(Reprodução/Arte Revista CULT)
Linguagem é poder. Antes de serem puros e simples atos de comunicação, todos os atos da linguagem são atos de poder.
Em um sentido puramente conceitual, poder é uma potencialidade dos corpos humanos. Poder é da ordem de algo que se exerce. Podemos dizer que ele é a ação de um corpo sobre um outro corpo que se transforma por meio dos atos que produz ou que sofre. A essa ação podemos dar o nome de linguagem.
Neste sentido inicial e primeiro, o poder existe pura e simplesmente porque somos seres de relação e todas as relações implicam forças de natureza física, justamente porque somos corpos presentes, ou seja, estamos todos em estado de presença nesse mundo. Essa presença é a materialidade bruta sem a qual não há linguagem. A linguagem é como que um esforço do corpo de ir além dele mesmo, e a esse esforço podemos dar o nome de desejo.
A presença se tornou algo tanto menos concreto quanto mais virtual, mas mesmo assim ainda implica os corpos e suas ações. A presença é o “estar”, mas é também o “aparecer”, ele mesmo um direito – o de estar em um lugar qualquer diante de outros, junto com outros, nas ruas, nas instituições, nos espaços públicos em geral. O direito de aparecer é um direito relacionado à liberdade individual que experimentamos em atos simples, tais como andar pela rua, sentar no banco de uma praça, ir ao cinema, entrar em uma igreja ou em um elevador. A questão da presença na internet também se relaciona a um direito de aparecer. Infelizmente, o que seria um simples direito em uma sociedade democrática torna-se apenas mercadoria em uma sociedade de mercado que apaga com a ideologia do econômico a função política da vida.
Ao mesmo tempo, o mundo que partilhamos hoje é povoado de imagens. Há imagens presentes (importante aqui pensar no que significa esse “estado de presença” dos corpos e das imagens no mundo) por todos os lados. E só por isso elas também exercem poder sobre os corpos que todos somos. Digo que somos corpos porque nosso corpo é nosso estar no mundo, não uma coisa, não um objeto que nós mesmos possuímos ou que é possuído por outrem.
Em nosso senso comum, esse conjunto de teorias populares que usamos no cotidiano, poder é um conceito reduzido à lógica binária maniqueísta, na qual ele é considerado algo bom ou mau. Em um sentido conceitual, poder não é nem uma coisa nem outra. A concentração ou a escassez, seu excesso ou sua falta é que tornam o poder problemático. Imaginemos uma relação entre alguém que não pode nada, ou alguém que tudo pode. Não é difícil imaginar que o simples poder pode, nessa relação desproporcional, transformar-se em violência.
Jogos de poder
Podemos usar o nome de “sujeito” para definir aquele que age sobre algo, e de “objeto” para definir aquilo ou até mesmo aquele sobre o que ou sobre quem se age. A relação entre dois sujeitos que não são reduzidos a objetos, define o mais rico dos experimentos da linguagem, o diálogo. Ele só acontece no momento em que conseguimos sustentar a condição de sujeitos. Em contextos nos quais um reduz o outro a objeto, a condição de possibilidade do diálogo está aniquilada.
Reduzimos as pessoas a objetos todas as vezes em que as usamos como meios e não como fins.
Como algo próprio dos corpos que entram em relação uns com os outros, o poder é inerente às relações. E apenas por isso ele pode se organizar como uma espécie de “jogo” regido por regras. O jogo é algo que não se joga sozinho e implica a compreensão das regras. Mas também a possibilidade de usá-las seja em benefício próprio, seja do coletivo. Damos o nome de poder político àquele que se exerce sobre corpos ou entre corpos atravessados por instituições. Corpos são atravessados por instituições em muitos momentos, e é difícil descobrir um instante em que estejam livres do poder político e totalmente lançados em uma espécie de pura relação em que a linguagem ainda não se encontrou com os jogos de força. Uma espécie de vida primitiva da linguagem, ou pura vida da linguagem. Daí que toda linguagem seja, mais cedo ou mais tarde, a forma primitiva da política e necessariamente ligada ao poder.
O jogo democrático e o estado de exceção atual
O poder político implica uma consciência das regras do jogo. Textos como a Constituição, por exemplo, são como que a regra básica de um jogo democrático. O estado de exceção no qual estamos vivendo no Brasil atual, por exemplo, implica que as regras anteriormente acordadas foram burladas ou alteradas por um grupo que resolveu romper com as regras do jogo democrático. Quando isso acontece, quando o poder político é usado em benefício próprio ele é conspurcado. O próprio jogo é aniquilado e ninguém mais pode jogar. A democracia, como um jogo possível com regras que envolvem a todos, é interrompida. Resta aos que “podem” o mando, e aos outros, a obediência.
O que se pode chamar de “jogo de poder” é estratégia de poder em seu sentido político. Todo jogo de poder é, na verdade, um jogo de linguagem. Há jogos de linguagem sem “jogos de poder”, mas não há jogo de poder sem linguagem.
A linguagem preferida do jogo de poder político em seu estado deturpado é a da dominação e da violência. O poder político – aquele que se exerce juntamente com outro, ou contra os outros com a consciência do seu efeito – é como uma engrenagem, como um dispositivo, é como um organismo que funciona para fazer sobreviver a si mesmo. Como as pessoas se relacionam com esse poder é uma pergunta que deve ser respondida por cada um.
Ninguém na sociedade humana, que é uma sociedade política – na qual mesmo quem não quer fazer política faz política, mesmo que a sua política seja uma espécie de antipolítica – , vive fora de relações de poder. Justamente porque não pode viver fora da linguagem. O poder político que não interessa a todos, a todos afeta e, na sua forma deturpada depende justamente desse desinteresse da maioria para manter-se como é.
A pergunta que nos toca, nesse momento é: podemos jogar esse jogo? Ou devemos simplesmente deixar que aqueles que se colocaram como os “donos” do poder sintam-se tranquilos sem mais adversários dispostos a jogar o jogo da democracia?
Fora do jogo da democracia, todo jogo de poder é um jogo sujo. Vamos aceitar?
(Publicado originalmente na revista Cult)
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