Marcia Tiburi
A vereadora Marielle Franco em encontro do PSOL (Foto: Mídia NINJA)
Mais que isso. As mulheres negras se tornaram as representantes de um poder totalmente outro, de um poder que aparece como ameaça real ao status quo. Nesse sentido, se olharmos do ponto de vista da história de um país racista e escravagista como é o nosso, de um país misógino, de um país em que aos pobres se reserva a morte por fome e abandono, a morte de Marielle Franco surge como uma espécie de fato dedutível em um longo processo de genocídio da população negra, antes usada como escrava, depois como mão de obra barata e, sempre, como descartável.
Combinando todas as características da indesejabilidade, todas as formas de ódio caíram contra ela: racismo, misoginia, ódio ao intelectual, à ativista, à socialista, mas também ódio ao fato de que Marielle, embora fosse uma pessoa meiga e amorosa, não andava de cabeça baixa, não se escondia, não tinha uma imagem “dócil” como se espera de mulheres, de pretos e pobres. Marielle não tinha medo e, também por isso, ela foi morta. A lógica do neoliberalismo implica que os cidadãos para sobreviverem nele devem curvar-se ao medo do que ele pode fazer com cada um simbólica e economicamente, e ela nunca se curvou. Foi morta também para nos dar o exemplo de que, ativistas e mulheres, negros e pobres, todos temos um novo “dever cívico”, o de “temer”. A lei não escrita que subjaz à nação do Estado de exceção na qual se transformou o Brasil define que será morto aquele que não temer.
De certa forma, configurando tantos aspectos em si mesma, dentro da lógica assassina do sistema que sobrevive da administração de afetos tais como o ódio (acrescentemos também a inveja e a avareza), não é um exagero dizer que seu assassinato vai ao encontro da racionalidade neoliberal que torna pessoas descartáveis, em especial os inimigos políticos desse projeto. E é, nessa mesma medida, lógico que, depois de morta, queiram usá-la para fundamentar o jargão assassino da extrema-direita: “bandido bom é bandido morto”. Agora é preciso transformar Marielle em algo de “bandido”.
As fake news que surgem em profusão visam a conspurcação de sua memória e de suas lutas nas redes sociais, nos jornais impressos e na televisão. Nesse momento, distorcer sua luta contra a intervenção militar no Rio de Janeiro faz parte de um jogo cínico que já se tornou tradicional em termos de relação entre política e mídia. O jogo retórico dos donos do poder, das classes favorecidas ou dos odiadores profissionais, humanos ou robôs é evidente, mas está ameaçado pela própria população que luta pelo respeito à sua memória.
Se Marielle não for transformada em “bandido”, o que só se consegue manipulando o imaginário da população e contando com aqueles que, sem ética, já tem um ódio bem desenvolvido, ela será transformada em heroína, como já vem sendo promovido pela maior parte da população que se identifica com ela, seja porque era jovem, negra e empoderada, ou porque admirava a sua causa, a da ativista e parlamentar que lutava por direitos humanos.
O perigo de sua condição de heroína está em seu potencial revolucionário. Essa condição também torna seu assassinato inútil. Uma espécie de tiro no pé que os donos do poder dão em si mesmos. Pois como símbolo Marielle vive e a maior parte da população brasileira, composta de mulheres negras e de jovens negros que ela defendia, não deixará de ressuscitá-la a cada dia como símbolo de luta.
A morte de Marielle Franco faz ver que o ódio aos negros e às mulheres negras é um ódio fascista, ou seja, um ódio que não se contenta em matar. Na linha desse tipo de ódio, é preciso “exterminar” e é isso o que se faz quando se tenta usar sua memória e sua morte para conspurcar sua própria luta.
Marielle representava uma luta contra o que podemos chamar de mal radical, esse mal que visa o extermínio do outro. Esse mal aparece em momentos, tais como quando os nazistas deixaram claro seu desejo de que os judeus nunca tivessem existido. O exercício do mal radical está claro em todas as mortes de líderes campesinos e indígenas (de 2014 até março de 2018, mais de 20 líderes foram assassinados no Brasil e não são noticiados pela televisão), na morte de cada menino negro nas favelas cariocas, e da população LGBT. Há um projeto de extermínio que se confunde com a história passada e presente.
O mal radical tem a dimensão de um projeto. Nele há um prazer em destruir. Um verdadeiro gozo perverso. Os donos do poder, governos e corporações, são seus sacerdotes. O cidadão comum faz parte desse projeto como uma espécie de “lacaio” que serve a um senhor. Ele é como o escravo digital que faz o mesmo papel do qual um robô é capaz, mas só o faz porque foi capturado por discursos orquestrados que o atingem no vazio previamente forjado pelos meios de subjetivação capitalistas, exímios esvaziadores de subjetividades. Nos espanta que haja alguém que possa aplaudir qualquer tipo de assassinato e que possa se utilizar politicamente disso. Mas não é de espantar quando pensamos nos fins administrativos e governamentais, os fins do poder que “educa” pessoas para serem replicante de ideias prontas que não pensam no que dizem e no que fazem ao dizer.
Nesse momento, não devemos nos esquecer das manifestações nas ruas em 2013. Assim que os meios de comunicação hegemônicos perceberam que o povo estava de outro lado, resolveram “capitalizar” sobre o fato. Fazem isso quando percebem que há “capital simbólico” em disputa e que podem perder muito, basicamente audiência e lucros relacionados a elas, sem tocar em determinados assuntos. O destaque ao assassinato de Marielle Franco tem fins específicos nesse momento.
O Rio de Janeiro tem sido usado para “dar exemplo” por todos aqueles que se colocaram como donos do Brasil e da cidade do Rio de Janeiro. O assassinato de Marielle Franco tem um alto impacto simbólico que cancela a vida de uma guerreira admirável, aquela pessoa que queríamos na política, em todos os lugares, como vereadora, como senadora, como deputada, como prefeita e que sonhávamos um dia, seria nossa Presidenta. Seu assassinato é uma prova da abjeção governamental e se insere na política de terror de Estado que atinge a todos. Mas atinge sobretudo o povo da favela, marcado pra morrer em uma economia-política de extermínio que já se tornou natural no Brasil.
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)
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