pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
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sábado, 22 de outubro de 2016

Se é só para fingir que tem, fecha de uma vez


Estado deveria dialogar, ouvir, falar com os estudantes e não aceitar em hipótese alguma a prática da violência contra os estudantes por pedirem uma educação de qualidade
Aluno do Colégio Estadual Prefeito Mendes de Moraes , no Rio de Janeiro (Tânia Rêgo/Agência Brasil)
Aluno do Colégio Estadual Prefeito Mendes de Moraes , no Rio de Janeiro (Tânia Rêgo/Agência Brasil)

Nenhuma escola, seja ela pública ou privada, é boa para todos os negros, pois elas não cumprem a lei n. 10639 de 2003, que estabelece que conteúdos referentes à história e à cultura afro-brasileiras sejam ministrados nos currículos ligados às áreas de educação artística, história e literatura. No caso das escolas públicas de São Paulo, especialmente, elas estão longe de ser o espaço ideal para qualquer criança por inúmeros motivos: falta de incentivo público, ausência dos pais, violência de alguns alunos… Tudo somado, dá o caos. Entre as finalidades do Estado, está a educação, conforme prevê a Constituição Federal nos artigos n. 205 (“A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho) e n. 206 (“O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: I – igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; III – pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; IV – gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais; V – valorização dos profissionais do ensino, garantido, na forma da lei, plano de carreira para o magistério público, com piso salarial profissional e ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos, assegurado regime jurídico único para todas as instituições mantidas pela União; VI – gestão democrática do ensino público, na forma da lei; VII – garantia de padrão de qualidade”).
Pois bem, o Estado, que já era omisso, agora quer jogar a toalha de vez e deixar para o jovem decidir o que quer estudar, quando quer, a que horas quer. Com o fechamento de escolas e o congelamento dos salários dos professores, é melhor fechar logo. O Estado deveria dialogar, ouvir, falar com os estudantes e não aceitar em hipótese alguma a prática da violência contra os estudantes por pedirem uma educação de qualidade. Deveria haver programas de capacitação para todos os professores e funcionários, inclusive capacitação psicológica. No geral, uma preparação maior. Se uma criança se machuca na escola, por exemplo, não tem quem cuide dela lá. Os materiais de trabalho são obsoletos, e a merenda é ruim. (Por que não são oferecidas frutas? Não é mais barato que um salgadinho?). Hoje, a geração y não se sente nem um pouco atraída pela escola , uma instituição ultrapassada, pichada, carente de estrutura e de infraestrutura. Escola sem limites, alunos sem limites. Já as escolas da prefeitura acolhem e atendem melhor por serem um número reduzido. Mesmo assim, ainda há muito a se fazer.
Temos professores e alunos que vivem ameaçados e amordaçados. Alunos que foram mal-educados não sabem que a escola não é o lugar para o professor ensinar o que deveria ser aprendido em casa, como por exemplo, respeitar os mais velhos, ouvir quem está falando, pedir licença e por favor, aguardar sua vez na fila, chegar e sair no horário, não falar palavrões, não brigar, não dar cadeiradas, não bater no professor, não matar… Tais coisas não são obrigação do professor, e sim dos pais, tios, avós, madrastas,  padrastos e irmãos. Professor é para ensinar a viajar nas histórias, nos livros de filosofia, nas palavras dos escritores, para o aluno aprender que matemática ajuda no raciocínio, que filosofia questiona, que sociologia estuda a sociedade, a política e os cidadãos, que educação física não cuida só do corpo, mas ajuda a interagir com o outro, e a aprender a ganhar e perder.
Pais têm o dever de ser mais presentes na escola e na vida dos filhos. Crianças que têm pai e mãe por perto são diferentes, basta observar. Escolas que os pais frequentam provavelmente não serão quebradas pelos alunos. Eis um trabalho não tão difícil para quem quer ter no mínimo mão de obra qualificada, já que levar o povo a pensar não parece mesmo ser o foco da educação pública no Brasil.

Tijolinho: Olinda: racha à vista entre os socialistas?

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Diante do quadro de "judicialização" da campanha política de Olinda, dá até medo dizer alguma coisa sobre aquele cenário. Ali, hoje, se processa por tudo. Basta se ter nascido numa maternidade do Recife e, nas primeiras horas, ser transferido para um berço do bairro de Peixinhos, e isso já pode representar uma grande dor de cabeça para um candidato. Até o momento, não tomamos conhecimento de nenhuma pesquisa de intenção de votos, neste segundo-turno, na Marim dos Caetés, mas, grosso modo, o quadro parece mesmo "embolado". O candidato socialista, Antonio Campos(PSB), liderou a corrida no primeiro turno, mas com uma diferença bastante equilibrada em relação ao candidato do Solidariedade, Prof. Lupércio. 

(Conteúdo exclusivo, liberado apenas para os assinantes do blog)

Tijolinho: Eleições disputadíssimas na Princesa do Agreste.


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As eleições municipais deste ano, em Caruaru, estão acirradíssimas. Mais de um instituto de pesquisa aponta um empate técnico entre os candidatos Tony Gel(PMDB) e Raquel Lyra(PSDB). As diferenças são mínimas entre ambos, não atingindo sequer um dígito, o que pode significar uma eleição ganha por meia dúzia de votos. Em razão das indisposições dos Lyras com o Palácio do Campo das Princesas, o governador Paulo Câmara aposta todas as suas fichas no candidato Tony Gel. Aliás, há muita gente apostando no Tony Gel, como a alta cúpula do PMDB tupiniquim, de olho na correlação de forças que testará sua musculatura política na composição da chapa governista que disputará a reeleição em 2018. Vislumbrando este mesmo cenário, o Ministro das Cidades, Bruno Araújo(PSDB), não se faz de rogado em emprestar irrestrita solidariedade à candidata da família Lyra, chegando ao limite de antecipar possíveis investimentos federais naquele município.

Caruaru é uma das cidades mais importantes na geografia política do Estado de Pernambuco. É uma das cidades do chamado "Triângulo das Bermudas", decisiva em disputas majoritárias estaduais e até federais. Não é apenas por alguma curiosidade que uma boa parte dos candidatos presidenciais vão conhecer o Alto do Moura e posar ao lado de Severino Vitalino, o filho do mestre Vitalino, principalmente no período dos festejos juninos. A mesma leitura pode ser feita, por exemplo, a cidades como Campina Grande, no Estado da Paraíba. Uma velha raposa política local, em razão das disputas polarizadas entre dois troncos familiares locais, costumava afirmar que, na Princesa do Agreste, ou se era carne de sol ou se era carne de charque. A referência era às famílias Lyra e Queiroz. 

Ao longo dos anos, motivadas pela dinâmica natural das disputas políticas, essas famílias foram se recompondo com outras forças políticas menores e, até mesmo, celebrando um armistício entre si, disputando eleições municipais unidas, diluindo suas divergências nos famosos forrós da Fazenda Macambira. Claro que os tapinhas nas costas, não raro, não passavam de meras formalidades. Comendo o minguau quente pelas beiradas, aliado à família Lacerda, o ex-locutor Tony Gel, gradativamente, foi introduzindo a chã de bode - de preferência a do Alto do Moura - ao cardápio político local. Já foi prefeito da cidade e hoje disputa, voto a voto, a hegemonia política local com uma filha da família Lyra, Raquel Lyra. Numa eleição tão disputada, é imprevisível fazer algum diagnóstico, mas, qualquer que seja o resultado daquela disputa, isso terá reflexos nas eleições de majoritárias estaduais de 2018. Como disse, até mesmo nas composições de chapa.  


O texto e o contexto da prisão de Eduardo Cunha




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No nosso contexto político adverso, o pedido de prisão preventiva do ex-deputado Eduardo Cunha(PMDB), por mais incrível que possa parecer, soou com um ar de surpresa entre os brasileiros de todas as tribos políticas. Entre os "coxinhas", por saberem que Eduardo Cunha era um ator "blindado". Entre os "mortadelas" por entenderem - não sem motivos - que as ações da Operação Lava Jato sempre tiveram um endereço certo: foi concebida para apear do poder e encarcerar os "desafetos" dessa nova correlação de forças que tomou o poder político no país. Num clima de plena vigência do Estado Democrático de Direito, um cidadão como Eduardo Cunha já era para estar vendo o sol nascer quadrado faz algum tempo. Num clima onde o direito funciona consoantes algumas "conveniências", seu "capital político" poderia poupá-lo desses constrangimentos, como, aliás, vinha poupando até então. 

(Conteúdo exclusivo, liberado apenas para os assinantes do blog)

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Aviso aos navegantes, leitores, leitoras e assinantes.





Nossos estimados leitores passaram a nos reclamar acerca da ausência dos editoriais, aqui publicados à média de um por dia, no calor da crise institucional que sacudiu o país, notadamente na agonia política que culminou com o afastamento da ex-presidente Dilma Rousseff, num processo cheio de falhas, cujo discurso de "golpe" por muito pouco não passou a ser "criminalizado". Estamos vivendo sob um clima de absoluta insegurança jurídica no país, num Estado de Exceção que a muito deixou de ser episódico, tornando-se permanente. O convite da senhora ministra do STF, Carmem Lúcia, à cúpula do aparelho repressor do Estado, para discutir questões de segurança pública - que mereceu o reparo do Ministro da Defesa, Raul Jungmann, de que não seria missão do Exército fazer segurança de rua - é motivo, sim, para ficarmos sob alerta quanto ao desfecho desse "seminário".

"Seminários" que podem gerar, de fato, bons fluidos para a saúde de nossa frágil democracia, na realidade, são os seminários diários promovidos pela Plataforma Político Social e o jornal Le Monde Diplomatique, que discutem questões relativas às violações de direitos todos os dias. Um verdadeiro observatório em defesa da democracia política e substantiva. Aliás, aqui na UFPE, tive a oportunidade conhecer pessoalmente o editor do Le Monde, Sílvio Caccia Bava, num debate no auditório do CCSA. Nos últimos dias, praticamente todos os dias, sou obrigado a fazer um pente fino nos meus perfis das redes sociais apenas para excluir fakes que procuram nos "seguir", prestigiar nossa página, ou a nossa "amizade", obviamente, para acompanhar o que estamos publicando. Alguns de nossas amigos, até deixaram de usar as redes sociais. Os tempos são bicudos. Outro dia, uma "jovem" sem rosto, uma Ana de dois "n" e um sobrenome estranho, passou a nos acompanhar. Pouco tempo depois, sem nenhum histórico de publicações no perfil, ela mostrou o rosto. Era a coisa mais linda do mundo. Uma destruidora de lares, como diria minha sogra, que acabou de completar 90 anos de idade. Por muito pouco não me apaixonei, mas até aquele rosto lindo era falso. 

Por medida de segurança, os conteúdos mais substantivo do blog estão sendo encaminhados diretamente às caixas de e-mails dos nossos valorosos amigos e amigas que assinam o blog, como conteúdo restrito. O blog é mantido basicamente com essas assinaturas e a venda de livros de nossa autoria, anunciados na margem esquerda. Mantemos uma relação ótima com os nossos assinantes e leitores. É um grupo ainda pequena, em razão de diversos fatores, mas é algo que nos deixam bastante feliz. O blog, que nasceu como uma brincadeira do meu filho, Victor Hugo, editor adjunto, já gerou seu primeiro fruto, um blog destinado exclusivamente à pesquisa escolar, hoje indexado a alguma universidade, colégio ou biblioteca americana, o que nos permitem o acesso diário de 1.500 internautas, em média. Curiosamente, 90% dos acessos do blog são dos Estados Unidos. 

Ao longo dos anos, o exercício diário da crônica política nos posicionou num patamar bastante relevante nesse ramo. Aqui em Pernambuco, sem falsa modéstia, desconhecemos outro analista com a nossa desenvoltura e grau de independência, salvo, claro, o nosso professor e cientista político Michel Zaidan Filho. Num universo de blogs "comprometidos" e "tolhidos" por um conjunto de interesses nada republicamos, o nosso se sobressai pelo grau de autonomia, altivez e pela absoluta liberdade de expressão, um diferencial ímpar, cumprindo um papel importante do "fazer jornalismo", mesmo editado por um não jornalista. 

Como bem informou uma internauta ao elogiar o nosso trabalho - para ela eu sou o Pelé da crônica política - o grande diferencial do nosso texto é que ali existe "teoria". Claro que a nossa leitora cometeu algum exagero por aqui. A gente mata a bola no peito, faz alguns gols, mas a nossa referência no campo futebolístico é outro negão, aquele que jogava no Cruzeiro de tempos idos: Dirceu Lopes. Na crônica política, com o perdão do Fernando Brito, do Miguel do Rosário, do Noronha, do Renato Rovai, aponto o Luis Nassif como o melhor na atualidade. Em termos de editoriais, ninguém escreve melhor do que o Sílvio Caccia Bava, do Le Monde. Se Deus nos permitir, ainda chegaremos lá, de preferência num ambiente político menos turvo, mais oxigenado, o que nos permitiriam ampliar o universo de leitores.  

Aproveito para informar que o livro de crônicas: Os Melhores Dias da Vida de Orson Welles está esgotado. Mas temos uma notícia muito interessante sobre esta crônica que deu título ao livro: um conhecido roteirista e cineasta americana, do circuito duro do campo cinematográfico, para usar um conceito do sociólogo Pierre Bourdieu, ao acessá-la pelo blog de pesquisa escolar, teceu ótimos elogios à mesma. Quem sabe isso um dia vira filme? Na realidade, salvo engano, há um filme sobre a passagem de Orson Welles no Brasil, mas creio que o autor se limita a registrar apenas o "histórico" dessa viagem. 

Aquele Orson Welles que nós conhecemos nessa crônica, da ciobinha frita com uma cervejinha bem gelada; das pescarias com os nativos da praia de Iracema; do namoro com as cearenses de pele vermelha; das conversas de fim de tarde,ao por-do-sol nas dunas; este Welles apenas na crônica deste humilde escriba. A foto publicada ao lado, onde Welles aparece sentado na areia da praia, dá bem a dimensão de sua preocupação por ter sido deixado à míngua pelo Estúdio que o patrocinava, após as gestão do Governo Getúlio Vargas junto ao Governo Americano. Um abraço a todos vocês, um pedido de perdão sincero àqueles que discordam da medida e pedimos que continuem nos prestigiando, indicando o blog àqueles que se colocam ao lado da democracia. A primeira recomendação ao assinante é o envio do seu endereço de e-mail. Como diria Gilles Deleuze, um pouco de possível se não eu sufoco. 

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Le Monde: Simone Weil, o engajamento absoluto


O pensamento e a trajetória de Simone Weil (1909-1943) permanecem desconhecidos fora dos círculos especializados. Além de filósofa destacada do século XX, ela foi uma mulher de luta: implicada nas batalhas e debates de seu tempo, Weil deixou sua marca na cultura política da esquerda. Após sua morte, sua obra foi em gra
por Olivier Pironet


Em 1931, Simone Weil, aos 22 anos, recém-nomeada professora de Filosofia, instalou-se em Puy-en-Velay, uma comuna da região mineradora de Haute-Loire, para ensinar ali em um liceu de moças. O diretor da Escola Normal Superior (ENS) de Paris, Célestin Bouglé, comemorou. Aquela que ele via como um “misto de anarquista e carola” o exasperava por seu espírito de contestação e militância, por isso ele desejava vê-la nomeada “o mais longe possível, para que nunca mais ouvisse falar dela”.1
A chegada de Simone Weil a Puy representou uma etapa importante no percurso da filósofa, inteiramente marcado pelo engajamento na bandeira da solidariedade para com os desafortunados: “Desde a infância, minhas simpatias se voltaram para os agrupamentos que se reclamavam como as camadas desprezadas da hierarquia social”, confiou em uma carta de 1938 a Georges Bernanos.
No Liceu Henri IV, o filósofo Émile Chartier (cujo pseudônimo era Alain), humanista e fervoroso pacifista, ensinou a ela que a reflexão e a ação são inseparáveis e que o saber só se torna autêntico por meio da experiência. Ela colocou a lição em prática... Era uma época de marchas militares, com o crescimento do fascismo na Europa. Logo explodiu a crise de 1929, que provocou o aparecimento do espectro do desemprego em massa. A vida política do país estava então dominada pelo Partido Radical (centro-esquerda) e pela instabilidade parlamentar. Socialistas e comunistas rivalizavam para conquistar para si a classe operária.
Desde 1927, Simone Weil integrava um coletivo pacifista do qual participava ativamente. No ano seguinte, ela assinou uma petição contra a preparação militar obrigatória imposta aos estudantes do curso normal e lançou pedidos de doações para os desempregados junto de seus camaradas. Em paralelo a seus estudos na ENS, ela dava aulas de Literatura para os condutores de trem, no mesmo espírito das universidades populares. Assim, pretendia se diferenciar “das formas de ensino burguês” em proveito de uma “empresa de instrução mútua”, na qual “o instrutor talvez tenha de aprender com aquele que ele instrui”. Essas reflexões entravam em ressonância com a conclusão de sua monografia sobre René Descartes: “Os trabalhadores sabem tudo; mas, fora do trabalho, eles não sabem que possuem toda a sabedoria”.
Uma vez em Puy, a jovem filósofa, que colocava sua esperança “na ação dos sindicatos, e não na dos partidos políticos”, entrou completamente no mundo operário das regiões de Haute-Loire e Loire.2 Ela integrou os meios militantes, fez sua carteirinha no Sindicato Nacional dos Professores (Confederação Geral do Trabalho, CGT), mas também na Federação Unitária de Ensino (sindical revolucionária), e deu cursos sobre marxismo e economia política aos “caras pretas” na Bolsa do Trabalho de Saint-Étienne. Ela contribuiu para o desenvolvimento dos Colegiados do Trabalho, institutos de ensino geral e profissional criados em 1928 pela CGT na periferia de Saint-Étienne, com o objetivo de abolir o que ela mesma qualificava como “vergonhosa separação entre o trabalho intelectual e o manual”.
Ela também se aliou aos desempregados de Puy. Em um comunicado que redigiu para seu comitê, advertia: “Se obrigamos os desempregados a reconhecer que eles só podem obter alguma coisa na medida em que provocam o medo, eles terão isso por dito”. A imprensa local a tratou de “mensageira do evangelho moscovita” e de “virgem vermelha da tribo de Levi”. Repreendida por sua hierarquia, interrogada pela polícia, ela vivia com pouco, transferindo a quase totalidade de seu salário para as famílias atingidas pelo desemprego e para a Caixa de Solidariedade dos Mineradores.
Sua estadia na Alemanha, no verão de 1932, a convenceu de que uma revolução popular não estava prestes a acontecer. Ao constatar o jogo perigoso dos sociais-democratas, então no poder, e a “atitude passiva” dos comunistas, ela considerou que “os operários alemães não estavam de maneira nenhuma dispostos a capitular, mas eram incapazes de lutar”. Convencida por suas correspondências com Boris Souvarine (1893-1984), um dos fundadores do Partido Comunista (PC) francês, excluído em 1924 por trotskismo, ela também atacou a URSS, um sistema que, em muitos pontos, “é exatamente o contrapé” do regime “que Lenin acreditava instaurar”.
Em 1934, ela decidiu se “retirar de qualquer tipo de política, salvo para a pesquisa teórica”. As greves da primavera de 1936, que ela apoiou, não a fizeram mudar de opinião, pois, desde essa época, ela fez sua a concepção maquiavélica do conflito social entre aqueles que comandam e aqueles que obedecem como sendo inerente a qualquer corpo político e sem resolução definitiva possível:3 “As lutas entre concidadãos [...] são vinculadas à natureza das coisas e não podem ser acalmadas, apenas abafadas pela coação”. Quando empreendeu a redação daquilo que chamou de sua “grande obra”, as Reflexões sobre as causas da liberdade e da opressão social, ela denunciou o “caráter mitológico” atribuído às virtudes do progresso, à potência libertadora da máquina e às forças produtivas, cujo poder revolucionário seria “pura ficção”. As raízes da opressão social, em vez de serem intrinsecamente ligadas ao modo de produção capitalista fundado sobre a exploração operária, estariam vinculadas à própria natureza da “grande indústria”, cujo caráter opressivo não depende de um regime político específico, já que também se encontra no sistema socialista: “A força que possui a burguesia para explorar os operários reside nos próprios fundamentos de nossa vida social e não pode ser aniquilada por nenhuma transformação política e jurídica. Essa força é, primeiro e essencialmente, o próprio regime da produção moderna”. Então não basta abolir o sistema capitalista – e a exploração – para suprimir a opressão; esta é engendrada pelo próprio progresso técnico, que “rebaixa a humanidade a ser a coisa das coisas inertes” e pelas relações sociais de “dominação do homem pelo homem” que o induzem. A emancipação passaria pela reapropriação do aparelho produtivo dentro de uma sociedade descentralizada se apoiando na “cooperação metódica de todos” e liberta desse “ídolo social” que representa o “maquinismo”.
Desejosa de não ser mais “uma ‘professora associada’ dando uma volta na classe operária”, Simone Weil pretendeu fazer a prova real do que tinha acabado de analisar. Ela pediu uma licença junto à Educação Nacional e foi contratada em uma fábrica para partilhar plenamente a sorte das classes trabalhadoras. “O homem é feito de tal forma que aquele que esmaga não sente nada, e é aquele que é esmagado que sente. Enquanto não nos colocarmos do lado dos oprimidos para sentir com eles, não poderemos nos dar conta”, explicou um dia a seus alunos. Entre dezembro de 1934 e agosto de 1935, ela foi cortadora de gráfica na Alsthom, operária na J.-J. Carnaud et Forges e perfuradora na Renault. Em seu Diário de fábrica, ela descreveu as tarefas e as cadências, o tipo de máquinas que utilizava, a organização da produção etc. O sofrimento físico, o cansaço, as irritações que sofria e o sentimento de ser reduzida a um estado de quase servidão mexeram com ela. Dessa experiência, ela tirou a lição de que “o fato capital não é o sofrimento, mas a humilhação”.
Ao longo do verão de 1935, de férias em Portugal, ela assistiu a uma procissão de mulheres de pescadores. “Ali, eu tive a repentina certeza de que o cristianismo é por excelência a religião dos escravos, que não podem deixar de aderir a ela, e eu entre eles.” Marcada pela figura do Cristo, ela se voltou para o catolicismo em 1938, mesmo permanecendo uma “cristã fora da Igreja”. Essa dimensão mística seria mais tarde frequentemente valorizada, enquanto seu radicalismo político tenderia a ser minimizado.
Os “escravos” também são os nativos nas colônias francesas, os povos invadidos por uma potência estrangeira. A ferocidade da repressão do levante nacionalista de Yen Bai, na Indochina, em fevereiro de 1930, veio até ela por meio da imprensa. Ela assinou diversos artigos sobre a questão indochinesa e a situação da Argélia, encontrou o dirigente nacionalista Messali Hadj,4 de quem tomou a defesa depois de ele ter sido condenado a dois anos de prisão, e se disse contrária à criação de um Estado judeu na Palestina: não se deve, estimava, “criar uma nação que, daqui a cinquenta anos, poderá se tornar uma ameaça para o Oriente Médio e para o mundo”.5
Depois do início da guerra civil entre fascistas e republicanos na Espanha, em julho de 1936, ela partiu, sozinha, para Barcelona. Em razão de suas posições pacifistas, ela apoiou a política de não intervenção da França, mas sentiu a “necessidade interior” de “participar moralmente”. Assim, juntou-se em Aragão aos milicianos anarquistas da coluna formada por Buenaventura Durruti. Uma semana depois, porém, ela se queimou gravemente e teve de deixar o front. A experiência da guerra, “quando não há nada de mais natural [...] do que matar”, reforçou seu pacifismo e alimentou suas Reflexões sobre a barbárie (1939). Mas esse mesmo ideal faria dela uma oponente feroz à entrada na guerra contra Adolf Hitler, até a invasão da Tchecoslováquia pelas tropas alemãs em março de 1939. Pouco depois, ela admitiu ter cometido um “erro criminoso”. Ela se uniu à Resistência em Londres e redigiu O enraizamento, que seria publicado em 1950 graças a Albert Camus: um esboço do que deveria ser uma “nova civilização” fundada sobre a “espiritualidade do trabalho”, o amor pelo bem público e a igualdade.
Durante uma greve de fome em solidariedade aos franceses submetidos ao racionamento alimentar pelo ocupante alemão, Simone Weil contraiu tuberculose e morreu em 24 de agosto de 1943, aos 34 anos. Sua obra só foi publicada após sua morte.



Olivier Pironet
*Olivier Pironet é jornalista


1    Salvo menção contrária, as citações de Simone Weil foram tiradas das Œuvres complètes [Obras completas], Gallimard, Paris (em processo de publicação desde 1998) e das Œuvres [Obras], Florence de Lussy (dir.), Gallimard, 1999. As que dizem respeito aos elementos biográficos provêm da obra de Simone Pétrement, La Vie de Simone Weil [A vida de Simone Weil], Fayard, Paris, 1997.
2    Cf. Jean Duperray, Quand Simone Weil passa chez nous. Témoignage d’un syndicaliste et autres textes inédits [Quando Simone Weil passou em nossa casa. Depoimento de um sindicalista e outros textos inéditos], Mille et Une Nuits, Paris, 2010 (1. ed.: Les Lettres Nouvelles, Paris, 1964).
3    Ler “Machiavel contre le machiavélisme” [Maquiavel contra o maquiavelismo], Le Monde Diplomatique, nov. 2013.
4    Ler Alain Ruscio, “Messali Hadj, père oublié du nationalisme algérien” [Messali Hadj, pai esquecido do nacionalismo argelino], Le Monde Diplomatique, jun. 2012.
5    Nouveaux Cahiers, n.38, Paris, fev. 1939.

03 de Agosto de 2016
Palavras chave: feminismosimone WellSartrepolíticaatvismotrotskismo

terça-feira, 18 de outubro de 2016

Le Monde: Os anseios populares de transformação cooptados pela via eleitoral da dominação


Eleições se converteram em um verdadeiro mercado em que vence partidos com mais dinheiro, que se utilizam da máquina pública para campanhas e maior capacidade de comunicação através do marketing, processo o qual individualiza o eleitor e oculta às formas coletivas presentes na política.
por Sandro Barbosa de Oliveira


Que a via eleitoral não é a saída para as necessidades populares muitos de nós já sabemos há tempos. Mas entender a manifestação dos trabalhadores periféricos nas recentes eleições é o desafio de qualquer meio de comunicação, coletivo, organização e movimento que se propõe a lutar por transformação social. Nas últimas eleições municipais ocorridas em 2 de outubro a população da periferia de São Paulo deu um recado evidente aos partidos políticos e candidatos: 21,84% de abstenções, 11,35% nulos e 5,29% brancos – cerca de 38,48% não votaram ou se abstiveram de votar em qualquer candidato. A somatória de votos brancos e nulos mais as abstenções totalizaram 3.096.304, superior aos 3.085.187 votos que elegeram o candidato vitorioso nessas eleições. O que isso significa? A hipótese de que quase a metade da população da maior cidade do país está desiludida com o sistema político vigente e que continua intocável, sem mudanças e reformas necessárias exigidas pela população que foi às ruas em 2013 em luta por garantias de direitos e participação popular nas decisões políticas.
Toda sociedade democrática precisa garantir ao conjunto da população instância e participação nas decisões políticas, pois são essas decisões que afetam a vida cotidiana das pessoas. No entanto, na democracia burguesa brasileira os limites de participação se limitam aos grupos organizados em partido político, que representam uma parcela pequena da população. Para se ter a dimensão dessa forma de representação política, a população estimada da cidade de São Paulo em 2016 é de 12.038.175 (milhões),[1] o que representa cerca de 5,8% da população do país. Por sua vez, os partidos que tiveram maior visibilidade midiática reúnem parcela restrita de filiados entre a população paulistana: o Partido dos Trabalhadores (PT), cujo candidato a reeleição foi Fernando Haddad, têm 137.299 filiados na cidade de São Paulo e 462.497 no estado,[2] enquanto o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), que venceu as eleições com João Dória, têm 60.074 filiados na cidade e 410.410 no estado. O Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), da candidata Marta “ex-Suplicy”, têm 100.327 filiados na cidade e 617.224 no estado, enquanto que o Partido Republicano Brasileiro (PRB), do candidato foi Celso Russomanno, têm 10.211 filiados na cidade e 72.938 no estado. O Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), que correu por fora com a candidata Luiza Erundina que teve cerca de 10 segundos do tempo de televisão na propaganda eleitoral, têm 6.779 filiados na cidade e 29.885 no estado. Parte dessas candidaturas se articulou por coligações com outros partidos, para que tivessem tempo de televisão e consolidassem uma coalizão de forças partidárias na gestão municipal.
Ademais, o que os dados acima informam? Que somados só os filiados desses partidos (sem contar os filiados de outras siglas) se chega a 314.620 pessoas que estariam organizadas em partidos políticos na cidade de São Paulo, o que representa cerca de 2,6% da população, parcela muito pequena para dizer que vivemos em uma cidade e numa sociedade democráticas. Por um lado, sabe-se que boa parte das pessoas filiadas não participa ativamente das discussões e instâncias partidárias, por outro, existem outras organizações sociais, políticas e econômicas para além dos partidos que também influenciam nos rumos da política partidária e estatal.
Mas por que a população de São Paulo não está filiada e participativa nos partidos políticos? Ao que parece, os 38,48% da população que se manifestou “contra” as eleições e as candidaturas estão desacreditados e não se reconhecem nessa forma política de organização da sociedade. Por qual motivo? Talvez pelo simples fato de não participarem das decisões políticas que afetam suas vidas cotidianas, já que sua participação efetiva foi reduzida ao mero voto a cada quatro anos e a cada eleição, e por sentirem que suas reivindicações não são ouvidas e/ou atendidas pelos partidos políticos. Mesmo aqueles que participam de partidos tendem a ser cooptados por interesses de pequenos grupos ou tendências que disputam posições predominantes no interior dessas organizações, de modo que tais grupos passam a “dar a linha” política em favor de seus interesses e de seus aliados, aspecto que tende a afastar as pessoas.
A Constituinte de 1988 acabou de completar 28 anos. Ainda jovem e sem atingir sua fase adulta, foi despojada de seus atributos legais com o recente golpe parlamentar em nível federal, que acabou por decretar sua morte precoce em proveito de interesses de grupos econômicos alheios aos interesses da população sob o mote de “combate a corrupção”. De lá para cá, a Constituição permitiu a criação de conselhos municipais, estaduais e federal, promoveu a ampliação dos partidos políticos e a organização da chamada sociedade civil através de instituições e associações representativas, após longo processo de reabertura política e “redemocratização”. Em vez de sociedade civil, entendemos por sociedade de classes as relações em que indivíduos estão inseridos mediados por conflitos da divisão social do trabalho e da propriedade privada. A forma política da sociedade de classes e das relações econômicas de produção é a da organização institucional regulada pela máquina do Estado, que faz a mediação entre capital e trabalho e garante a reprodução capitalista por meio da separação entre economia e política. Esta forma política aprisionou em uma “camisa de força” os anseios, desejos e possibilidades de construção de outras formas de atuação política de trabalhadores periféricos que contestam a desigualdade e lutam por direitos sociais, pelo simples fato de se limitar ao voto direto de representantes. Não por acaso, houve a proliferação de inúmeros coletivos e movimentos que não se pautam pela via institucional da Constituição e buscam ir além dessa forma política eleitoral que separa quem pensa de quem faz, forma que acaba acarretando um status de privilégio para quem participa dela e se reduz aos cargos políticos negociados no varejo.[3]
Eleições se converteram em um verdadeiro mercado em que vence partidos com mais dinheiro, que se utilizam da máquina pública para campanhas e maior capacidade de comunicação através do marketing, processo o qual individualiza o eleitor e oculta às formas coletivas presentes na política. Prova disso foi a vitória de João Dória na cidade, que se elegeu em primeiro turno com 53,29% dos votos válidos em uma campanha com o discurso de que João é “trabalhador”, não é político mas sim gestor, e não precisa do salário de prefeito porque já é rico. Marketing preciso, porém enganoso, pois João Dória é de família rica e abastada, sua atuação será mais política do que administrativa e o salário de prefeito provavelmente irá para seu partido. Curiosamente, foi o único candidato que se utilizou do discurso de que “é trabalhador”, ao contrário do PT que focou no discurso de que governou para a cidade (uma abstração), o que mostra o mito de que feitos administrativos de realização de obras pesasse na decisão do voto. Além do mais, as intenções de votos em Dória deslancharam quando o governador e padrinho político Geraldo Alckmin (PSDB) entrou na campanha para apoiar seu afilhado. Todos devem lembrar que Alckmin se elegeu também em primeiro turno nas eleições de 2014, aspecto que mostrou uma força eleitoral ilusória em um contexto de difusão sistemática do “antipetismo” e associação do PT como único partido corrupto no imaginário popular. Para acabar com a corrupção, bastava acabar com o PT, algo que amoldou a percepção das camadas populares das quais o petismo havia se distanciado e que sem dúvidas se originou entre as classes médias ao qual o partido sempre quis ampliar sua influência, basta ver a política de Haddad para o centro expandido e Pinheiros. Em contrapartida, o debate sobre as causas da corrupção no sistema político não é feito, o que parece time de futebol: é mais fácil culpar o técnico e demiti-lo do que encarar os problemas estruturais que envolve o time e o clube (econômicos, políticos, sociais).
Como disse o sociólogo Mauro Iasi em artigo sobre as eleições municipais no Brasil: o PT foi o maior derrotado nessas eleições.[4] Mas quem ganhou? A mídia monopolista usou o argumento de que o grande vencedor teria sido o PSDB, mas este partido já estava em segundo lugar no número de prefeituras, enquanto que o PMDB permaneceu em primeiro. O PT, que perdeu o terceiro lugar, caiu muito de posição, o que mostra seu “desaparecimento” repentino da política municipal em nível nacional e a mudança do realinhamento eleitoral apontado por André Singer.[5] Iasi destacou ainda que o petismo no governo, da mesma forma que nacionalmente, optou por uma governabilidade pelo alto e às vezes contra sua base social e sua identidade de esquerda, ao mostrar que Haddad empenhou-se em conseguir acordos com os empresários do transporte, afirmando a necessidade de aumentar as tarifas no momento em que a juventude explodia nas ruas nas jornadas de junho de 2013.
Cabe lembrar que as intensas manifestações de ruas que eclodiram em junho de 2013 anunciaram um novo ciclo de lutas entre forças políticas por transformação social, que talvez tenha terminado com o recente impedimento da presidenta Dilma Rousseff do PT pelo Congresso Nacional conduzido por forças conservadoras. Essas lutas foram organizadas inicialmente pelo Movimento do Passe Livre de São Paulo (MPL-SP) contra o aumento das tarifas, ao reunir o acúmulo de revoltas populares que já havia se manifestado recentemente nas cidades brasileiras, se massificar por todo o país e reintroduzir na pauta política o direito à cidade a partir do problema dos transportes coletivos e públicos. Essas lutas contribuíram para “desvelar o véu” que encobria a máquina de lucro das empresas de transportes coletivos, permitindo repensar as formas de gestão nas cidades[6] e exigindo participação popular na condução das políticas. No entanto, “novos personagens” entraram em cena nas ruas: uma nova geração de pessoas que “nunca” havia participado de manifestações políticas foi para as ruas e que, de certo modo, foi influenciada por forças conservadoras que modificaram o conteúdo das manifestações – de luta pelo direito à cidade e revolta contra o aumento da tarifa passou-se a predominar a pauta da “anticorrupção”. Como se viu, a direita organizada em camadas médias da pequena burguesia e da classe média saiu de casa pela porta da esquerda[7] e direcionou, com o apoio da mídia monopolista, os rumos desse movimento ao impedimento de Dilma em 2016 após perceber, junto às frações burguesas, que o PT não conseguia conter mais as lutas populares em sua política de conciliação de classes.
Entre junho de 2013 e o impedimento de Dilma houve um processo de muitas lutas dos Comitês Populares sobre a Copa do Mundo até as eleições presidenciais e de governos estaduais de 2014. O que aconteceu? O Tribunal Superior Eleitoral fez intensa campanha sob o lema “vem pra urna”, convocando a juventude para o voto. Qual foi o problema dessa campanha? Descaracterizar e desestimular a juventude rebelde de que a luta nas ruas era o caminho, já que o lema do MPL foi “vem pra rua vem, contra o aumento”. As forças políticas de esquerda, que estiveram nas ruas, "deixaram" o palco político após o anuncio da revogação do aumento e o fim da Copa e deram espaço para as forças políticas conservadoras em continuar seu pleito: a pauta da anticorrupção, que tem sido tratada com reducionismo, sensacionalismo e despolitização, ganhou força e ficou difusa entre as diversas camadas da população encabeçada por “novos” agentes como o Movimento Brasil Livre (MBL)[8] e o movimento “Vem pra rua”, que em seu oportunismo liberal-conservador reforçaram o ódio ao PT e as ilusões meritocráticas ao defenderem o neoliberalismo, se empoderando às avessas da sigla e do mote do MPL.
Após vitória eleitoral acirrada de Dilma com o discurso de ricos versus pobres sabia-se das dificuldades de seu segundo mandato, devido ao fato de ter sido eleita para a Câmara e o Senado a maior ala conservadora das últimas décadas. O que não se sabia é que as forças políticas conservadoras, aquelas que querem preservar privilégios de acesso aos recursos do Estado e mantê-los direcionados para seus interesses de classes, iriam jogar pesado e articular um golpe parlamentar que derrubou a presidenta. Ao não aceitarem a derrota nas urnas, os partidos de oposição ao governo não deixaram Dilma governar. Cabe destacar que a máquina do Estado político é constituída por três poderes que se supõem independentes: executivo (governo), legislativo (parlamento) e judiciário (juízes e ministros), por isso, a presidenta não governa sozinha, como nenhuma pessoa governa sozinha sua casa, empresa ou instituição. Com efeito, a ingovernabilidade do executivo agravou a crise econômica, o que se desdobrou em inevitável crise política e institucional nas manifestações massivas de ruas pelo impeachment de Dilma em 2015 e meados de 2016, convocados pelo MBL e Vem pra rua, com inteira adesão e apoio da mídia monopolista que transmitia ao vivo as manifestações aos domingos (alterando até horário de partidas de futebol). Houve também manifestações de movimentos da Frente Brasil Popular e Frente Povo sem Medo em defesa do governo e do mandato de Dilma.
A crise política, que vem desde 2013 com a revolta da tarifa sob matizes e circunstâncias distintas, revelou forte insatisfação da classe trabalhadora, mas também das camadas médias e das classes dominantes. Será preciso distinguir a insatisfação de acordo com cada classe e fração de classe para entender a complexidade do processo. Contudo, a insatisfação universalizada da classe média de certa maneira foi canalizada para o PT, num momento de oportunismo dessas forças conservadoras entre 2015 e 2016, ainda que forças políticas tenham se mantido na base do partido. O PT também foi responsável (ainda que menor nessa ciranda política) por ter acreditado na possibilidade de apaziguar o conflito social e conciliar os interesses de classes. O fim da negociação já estava delineado nas eleições de 2014 e, ainda assim, Dilma sinalizou ao “mercado financeiro”, com a nomeação do ministro Joaquim Levy, que continuaria o governo de perspectiva monetária com aumento dos juros (para “atrair” investimentos), cortes de gastos do Estado e manutenção dos programas sociais. Talvez Dilma gostasse de ser encarada como benfeitora de todas as classes, mas, como nos ensinou Marx em O dezoito de Brumário, não se pode dar a uma classe sem tirar de outra.
Para dificultar o avanço esperado no processo de consciência social dos trabalhadores veio abaixo quando o PT fortaleceu a ideologia individualista através da noção de “classe C”, ao buscar nessa categoria o que seria uma “nova classe média” para fundamentar o que foi o lema da gestão de Dilma: “Brasil, país de classe média”. Para legitimar as políticas eram necessárias pesquisas e teorias que consolidassem as mudanças no âmbito da consciência popular. Por isso, nesse período foram difundidas análises empíricas que estabeleceram “novas” denominações de “classes” vinculadas a teoria da estratificação social, noções que passaram a fazer parte do imaginário popular. Marcelo Neri[9] da FGV, um dos responsáveis por essas pesquisas, mostrou as mudanças em uma década ao indicar que a renda dos mais pobres teria aumentado 68% e dos mais ricos em 10%. Segundo sua pesquisa, desde 2003, o país teria ganhado quase 50 milhões de consumidores, o que equivale ao contingente populacional da Espanha. Para Neri, somente em 2009 13,1 milhões de brasileiros teriam sido incorporados às chamadas classes A, B e C. É inegável a importância de redução da pobreza e a saída de cerca de 36 milhões de pessoas da condição de miséria. Contudo, muitos desses trabalhadores passaram a acessar celulares, televisores Led, micro-ondas, mas continuaram a viver em um barraco na favela. Disto, passou-se a predominar uma percepção de estratificação por renda e consumo que individualiza o trabalhador pela ocupação e faixa salarial e cujo objetivo era integrá-los à classe média, ao passo que as relações de classes – de que a existência de uma se vincula à outra –foram jogadas para os bastidores, já que o lulismo havia encontrado um ponto de fuga para a luta de classes sob o modelo de diminuição da pobreza com manutenção da ordem por meio de uma “revolução passiva” e reformismo fraco, que ajudou a criar um ambiente ideológico em que direita e esquerda foram reduzidas “a vozes de fundo” (Singer).
Como disse certa vez o sociólogo José Chasin: “A história só surpreende a quem de história nada entende”. Por isso, o golpe parlamentar foi a consequência lógica das ameaças da burguesia monopolista (industrial, bancária, agrária e comercial), cujas frações tem ligações com o imperialismo, e da pequena-burguesia e suas frações e camadas médias, com apoio de alguns trabalhadores de nível médio e profissionais liberais que defendem desregulamentação do mercado de trabalho e redução dos direitos sociais. O setor bancário, que lucrou no 1º semestre de 2016 cerca de R$ 30 bilhões, está vinculado ao capital monopolista e ao imperialismo na defesa da abertura comercial e financeira (privatização do pré-sal e desobrigação da Petrobrás), o que mostra os retrocessos com relação às políticas sociais sob a aparência de um projeto de ajuste fiscal que vai mutilar e reduzir os direitos em nome de uma suposta responsabilidade fiscal. Cerca de 45% do orçamento da união é destinado para pagamento da dívida e juros (títulos do tesouro ofertados aos “investidores”), o que compromete a capacidade de investimento do Estado nas políticas estratégicas e sociais para o desenvolvimento.
Diante desse cenário, o desastre para os trabalhadores está anunciado com o desgoverno Temer e o Congresso conservador que lhe sustenta: retirada de direitos trabalhista; reforma na educação sem dialogar com pais, alunos e comunidade; privatização paulatina do Sistema Único de Saúde; medidas que retirarão direitos históricos dos trabalhadores. Com o golpe parlamentar que empossou Temer e as eleições municipais, sobretudo, em São Paulo, com um empresário eleito que pretende privatizar até parques públicos, vemos como o sistema político da máquina Estatal é antidemocrático e exerce o papel de dominação sobre as classes subalternas que estarão condenadas à precarização e pauperização permanente do trabalho, a ter que pagar pela crise e por educação e saúde para sustentar as classes dominantes, seus lucros e ganhos nos negócios da cidade. Por isso, é possível dizer adeus ao período democrático (burguês, se é que existiu) com o capital monopolista e financeiro a frente do Estado que desvelou seu conteúdo capitalista de dominação. A democracia se revelou como farsa e forma aparente das relações de dominação, então, daqui para frente, repressão e contestação serão a tônica dos conflitos que se iniciam no novo ciclo de lutas sociais.
Para finalizar, tal como sintetizou o sociólogo Maurício Tragtenberg:[10] o cidadão está alienado na esfera do social e do psíquico pela ocultação do político e do inconsciente, ao passo que há uma tendência de regressão do político ao psíquico que se dá quando a luta de classes não pode se aprofundar na sociedade. Vivemos o tempo da psicologização do social nas ações de indivíduos atomizados pela ideologia liberal e de ocultação do político que desvele o ser social. Entretanto, em movimento inverso ao dominante e diante de suas contradições, esperamos que os trabalhadores percam em breve a paciência com o desmonte do que restou dos direitos sociais do Estado capitalista burguês e passem a agir como classe em defesa de suas necessidades e seus interesses materiais para sua existência e reprodução social. Para isso, será necessário a recriação da esquerda numa perspectiva de fazer com os trabalhadores e estar presente em seu cotidiano de produção e reprodução da vida social.

Sandro Barbosa de Oliveira
 Sandro Barbosa de Oliveira é cientista social, educador popular e professor. Mestre em Ciências Sociais pela UNIFESP e doutorando em Sociologia pela UNICAMP, com graduação e bacharelado em Ciências Sociais pela Fundação Santo André. Participa do Grupo de Pesquisa Trabalho e Marxismo e do Grupo LACAM da UNICAMP. Participou do Grupo de Pesquisa Classes Sociais e Trabalho da UNIFESP. É associado e cientista social da Usina CTAH





[1] Fonte IBGE Cidades 2016.

[2] Dados extraídos do Tribunal Superior Eleitoral. Disponível em:http://www.tse.jus.br/partidos/filiacao-partidaria/relacao-de-filiados. Acessado em 07/10/2016.

[3] O sociólogo Francisco de Oliveira, ao se desfiliar do PT em 2003, escreveu artigo sob o título “Tudo que é sólido se desmancha em cargos”.

[4] Mauro Iasi, Eleições 2016: Uma grande derrota, dois casos significativos e algumas hipóteses, em Blog da Boitempo. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2016/10/04/eleicoes-2016-uma-grande-derrota-dois-casos-significativos-e-algumas-hipoteses/ Acessado em 07/10/2016.

[5] André Singer, Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador, São Paulo, Cia das Letras, 2012.

[6] Ver Cidades Rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomara as ruas do Brasil, São Paulo, Boitempo, 2013.

[7]Aton Fon Filho, A direita sai de casa pela porta da esquerda, Disponível em: http//:viomundo.com, Acessado em 07/10/2016.

[8] O MBL aprovou em seu primeiro congresso nacional realizado em novembro de 2015 propostas de cunho liberal-conservador para as áreas de educação, saúde, economia e reforma política. Das propostas de educação, o Projeto de Lei “Escola sem Partido”, benefícios fiscais para pessoas físicas e jurídicas que custeiam a educação de crianças (classe média), redução de impostos das escolas privadas e gestão privada das escolas públicas. Em quase todas as propostas para educação aparece a palavra “privada”, referindo-se a iniciativa privada. Para a saúde, desburocratização dos planos de saúde, extinção de tributos que incidam sobre o sistema de saúde (medicamentos, aparelhos), e adoção de sistema de saúde similar ao alemão em substituição ao SUS. Para reforma política: proibição de publicidade de empresas públicas, revogação da Lei Rouanet, fim do voto obrigatório, fim do fundo partidário, fim da reeleição e mandato de 5 anos. O MBL, que se dizia apartidário, teve diversos candidatos eleitos para vereador em diversos municípios por partidos distintos, entre eles Fernando Holiday (Democratas), que defende o pensamento liberal-conservador e o fim do petismo na cidade ao negar as condições sociais de sua origem étnico-racial e combater as cotas raciais (política defendida por segmentos do movimento negro).

[9] Marcelo Neri, A nova classe média: O lado brilhante da base da pirâmide. São Paulo: FGV, 2011.

[10] Maurício Tragtenberg, Administração, poder e ideologia, São Paulo: Editora Unesp, 3ª Ed., 2005.


14 de Outubro de 2016
Palavras chave: EleiçãoptDóriaHaddadprefeitomunicipalcrisegolpe

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sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Rio, cidade insurgente


O que está em disputa no Rio é a passagem do Brasil fordista, nacional-desenvolvimentista para uma periferia global em que as bordas invadem o centro, que se reinventa não pela falta e nem pelo negativo, mas pela potência
Arte Andreia Freire
(Reprodução)
Ivana Bentes

E eis que se abriu um portal ou um minúsculo buraco de agulha por onde vão passar de enxurrada todas as expectativas do mundo, como o Aleph do conto de Borges que contém o infinito. Mas pode chamar de segundo turno das eleições municipais do Rio de Janeiro. Afinal, a cidade sempre foi umbigo e tambor do Brasil e surpreendeu ao derrotar e banir o PMDB e o candidato do prefeito Eduardo Paes nessas eleições.
Não teve Olimpíadas, não teve marketing, não teve VLT, não teve Porto Maravilha, não teve máquina e nem marketing capaz de salvar Pedro Paulo, o candidato pmdbista de Paes e Temer, que afrontou um limite ético: seu comportamento violento com a mulher.
Em meio a um momento profundamente reativo e conservador, no Brasil e na América Latina, novas dicções na política emergem, conectando o Rio de Pedro Paulo com os EUA de Donald Trump, também amargando um inferno astral nas eleições para presidente por seu comportamento de macho predador.
São muitas essas outras inflexões na política – quais os limites entre comportamento público e o privado? Por que um candidato que humilha mulheres se torna inelegível? Quem são os “ninguém” (a soma de abstenções, e dos votos nulos e brancos) que foram vitoriosos em várias capitais do Brasil? Quais os limites entre política e religião? Por que os direitos humanos ainda são considerados defesa de bandidos? Onde estão as mulheres, os negros, os gays, a periferia no parlamento?
O fato é que nas crises se abrem caminhos a fórceps, pós trauma, pós golpes, surgem “frentes” amplas e heterogêneas, partidos-movimentos, redes. Não se trata de um universo em desencanto simplesmente, mas um instantâneo significativo de que é preciso dar um sacode geral em tudo que se institucionalizou.
E o que se institucionalizou nessas últimas décadas foi a esquerda, no Brasil e na América Latina, em um ciclo virtuoso e vicioso que produziu avanços extraordinários, mas que também cometeu erros e sofreu um rebote pela direita. Se olharmos para os Fóruns Sociais Mundiais, expressão celebratória da onda democratizante que varreu o continente latino-americano, o interstício das democracias imperfeitas chegou ao teto, mas não ao fim.
A primavera democrática representada por Lula, Chávez, Mujica, Evo, Correa, Lugo e os Kirchner arrefeceu, se esgotou, foi deposta pelas forças conservadoras, mas o fato é que estamos falando de um ciclo vitorioso para a democracia no mundo. Um laboratório de novas institucionalidades e inovações sociais que não vão cessar de operar, mesmo em um terreno árido e que se tenta “salgar”.

“Não se trata de um universo em desencanto simplesmente, mas um instantâneo significativo de que é preciso dar um sacode geral em tudo que se institucionalizou”

A crise que estamos vivendo não é a crise das ditaduras, dos regimes autoritários e nem a crise do neoliberalismo, estamos diante da crise das democracias latino-americanas. É a nossa crise!
Nesse contexto, a vitória do neoliberalismo caboclo e do caviar lifestyle em São Paulo transformou o Rio de Janeiro em uma espécie de Nárnia temporária em um cenário Mad Max pós-apocalipse em que enfrentamos operações seletivas espetaculares anticorrupção, a perseguição e a derrota nacional do PT nas urnas, a emergência de um partido dos banqueiros, o Partido Novo, em uma reconfiguração da direita que força também um rearranjo das esquerdas.
São Paulo saiu na frente como a vanguarda da retaguarda, chancelando a nova velha direita do PSDB, elegendo um prefeito com cashemir enrolado no pescoço e mil empresas de lobby político e clubes de privilégios na mão.  São Paulo foi na contramão do Rio, que derrotou o PMDB e colocou Marcelo Freixo em um segundo turno com cara de final de Copa do Mundo.
A vitória do milionário João Doria Júnior em São Paulo, com sete empresas que “não produzem um parafuso”, mas organizam eventos, editam revistas como a “Caviar”, vivem do consumo de luxo e de verbas publicitárias do governo de Geraldo Alckmin, são a constatação de que os ricos, a elite conservadora e uma multidão de pobres e da classe média compraram o discurso neoliberal e privatista, anti-político e do “self made man” hipócrita de Doria.
Quem precisa de política pública, afinal? Os empresários, os banqueiros, a mídia se uniram para acabar com a “mediação”. Tiraram do governo uma presidenta eleita com 54 milhões de votos e colocaram Michel Temer, um operador do mercado e da política para fazer o desmonte do Estado e se apropriar da máquina de commons. Precisam de um Estado mínimo apenas, para privatizar com seus representantes o que é bem comum.
Por isso, o Rio de Janeiro já sai vitorioso, com uma candidatura alavancada do rés do chão, contra todas as regras do marketing eleitoral, com financiamento coletivo, com tempo ínfimo na TV. Uma candidatura que trouxe para o seu campo gravitacional todas as forças mais disruptivas desde junho de 2013. Freixo no segundo turno já é a vitória das Jornadas de Junho, a volta no parafuso dos que olham para as manifestações de junho como “o ovo da serpente” do fascismo no Brasil.
O Bispo e o Cavalo
Mas o jardim dos caminhos que se bifurcam ainda está aberto. Marcelo Freixo chega ao segundo turno para disputar a prefeitura da cidade do Rio com Marcelo Crivella, um Bispo da Igreja Universal do Reino de Deus.  O Bispo e o Cavalo, uma força de representação institucional e hierárquica da igreja de um lado e um “médium”, um meio, para a expressão e posse dos muitos.
Não se trata de um duelo maniqueísta e nem simplista entre o Escravizador de Almas versus o Exército de Libertação, mas de um embate simbólico e pedagógico que nos ajuda a entender ciclos mais longos e processos emergentes.
O Rio é disputado palmo a palmo por regimes de soberania, disciplina e controle que se imiscuem na máquina do Estado. Disputado pelo tráfico de drogas, por uma política de segurança, as Unidades de Policia Pacificadora (UPPs) que funcionam como polícia de comportamento e guerra contra os pobres, pelas milícias (forças paramilitares que “vendem” segurança e serviços), pela especulação imobiliária, de olho na “remoção” dos moradores pobres dos pontos turísticos da cidade; por projetos assistencialistas como os da Igreja Universal do Reino de Deus, empresas de turismo, ONGs, OS, por uma miríade de sujeitos sociais e políticos.
Crivella, Bispo licenciado da Igreja Universal, sobrinho do controverso Edir Macedo e sua religião de resultados, vocaliza uma das novas forças sociais e políticas mais poderosas do Brasil pós-redemocratização, a Igreja Evangélica, que multiplicou templos, pastores, bens, rebanhos, multiplicou “serviços”, em um processo de acumulação capitalista/fundamentalista selvagem, operando mudanças cotidianas na vida dos fiéis ali onde a vida coletiva, o pertencimento, o Estado falharam. Ajudando a sair do alcoolismo, encontrar trabalho, resolver conflitos entre casais, numa eficiente corrente de autoajuda espiritual.

“Freixo no segundo turno já é a vitória das Jornadas de Junho, a volta no parafuso dos que olham para as manifestações de junho como “o ovo da serpente” do fascismo no Brasil”

Licitações? Burocracia? CPMF? Lei Rouanet? Editais? Para quê? “Seja patrocinador da obra de Deus” com dízimos, doações, sessões de descarrego, compra de água benta e salvação. Tudo pode ser monetizado em uma pedagogia para as massas em total consonância com o espírito do capitalismo. E o mais terrível, a demonização do outro, a perseguição das religiões de matriz-africana e outras formas de religiosidade.
A exploração da fé só faz sentido quando muitas outras formas de cultura solidária, coletiva, redes de proteção, políticas públicas, atendimento cidadão, foram destruídas. Eis o drama da nossa frágil democracia e onde explodem os discursos de fascistização e preconceito, de ódio ao outro. Um fundamentalismo religioso (nem todas as correntes das Igrejas Evangélicas seguem a cartilha do ódio de Edir Macedo) que viria coroar séculos de escravização e higienização da diversidade cultural brasileira, uma força de diferenciação ingovernável.
Esse Estado enfraquecido, o discurso privatizante e liberal, o fundamentalismo religioso, se travestem em um assistencialismo piedoso e cuidador e dá-lhe “cimento social”, “zona franca social”, “UPPs sociais” nas palavras do Bispo deputado Crivella que olha para as favelas cariocas e só vê seu rebanho ocupando ordenadamente subempregos.
Mas é quase surreal imaginar a cidade libertária do Rio de Janeiro submetida a um fundamentalismo qualquer. O Rio de Janeiro passou por profundas intervenções nos últimos anos, uma cidade-laboratório global, com Copa do Mundo, Olímpiadas, e uma casta de empresas e empresários que enxergaram o Rio como cenário de seus negócios. Disputada por todos os tipos de corporações e corporativismos, nacionais e transnacionais, das milícias a máfia dos transportes, das empreiteiras as OS, que administram de bibliotecas a museus ao lixo da cidade. Um governo da Igreja Universal do Reino de Deus seria uma espécie de choque cultural nesta disputa do sensível.
 Em todo esse processo emergiram forças de resistência, embates decisivos entre corporações, mídia, governos e organizações da sociedade civil, redes e movimentos sociais que passaram também a vocalizar “a cidade que queremos”, com uma política territorializada, um novo municipalismo que ganha a centralidade das lutas contemporâneas.
 Periferia Global
O que está em disputa no Rio de Janeiro é a passagem do Brasil fordista, nacional-desenvolvimentista para uma periferia global em que as bordas invadem o centro que se reinventa não pela falta e nem pelo negativo (violência, pobreza, crise da cidade), mas pela potência.
Com estratégias intuitivas e paradoxais se multiplicam experiências de transição vindas dos empreendedores periféricos, os informais, o precariado, os autônomos, os movimentos sociais e culturais, apontando para novas formas de inovação social que estão hackeando o discurso do social e do cultural das empresas, dos governos, da mídia, do empreendedorismo. Hackeando e sendo hackeadas pelas corporações, mas inventando, errando e acertando, criando condições de possibilidade para o surgimento de novos movimentos e atores.

“Um governo da Igreja Universal do Reino de Deus seria uma espécie de choque cultural nesta disputa do sensível”

São apenas o lado mais visível de uma mutação subjetiva que se espalha por centenas de coletivos, Pontos de Cultura, produtores culturais, redes, grupos de DJs, rappers, formadores livres, agitadores, empreendedores, escritores, redes feministas, outros sujeitos do discurso que tomam posse da cidade.
Esse é um gigantesco capital real e simbólico, a riqueza das cidades e especificamente do Rio, as reais commodities, o bem comum. Não mais os pobres assujeitados e excluídos de certo imaginário e discurso, mas uma periferia conectada, a riqueza da pobreza (disputada pela Nike, pela TV Globo, pelo Estado) que faz da cultura da cidade os laboratórios de produção subjetiva.
O Rio de Janeiro é um termômetro da difícil e paradoxal tarefa de calibrar nosso desejos: da euforia ao desencanto com a era pós-Lula, o presidente Macunaíma que turbinou a potência dos pobres e das periferias e ao mesmo tempo governou com os “feitores de gente”, os  gestores de subjetividade que revertem e monetizam, se apropriam, da potência e da cultura dos pobres para as corporações, bancos, os agenciadores da “economia criativa” e do consumo.
O Levante
Mas o que fazer? Junto com as mudanças materiais, dos transportes, da saúde, das escolas, teremos que reinventar a política, teremos que lidar com o clima de caça aos políticos e o nojo da política; sair da ressaca anti-petista e anti-esquerdista, do furor anticorrupção que acha que todo politico é igual;  mas também do discurso da pureza; parar de falar no abstrato e trazer propostas concretas e que mudam o cotidiano das pessoas;  dialogar com evangélicos, umbandistas, católicos, com empresários, professores, juristas, petistas, ex-petistas, comunistas, psolistas, anarquistas, artistas, urbanistas, camelôs, garis, desempregados, subempregados, garotada da periferia, da madame a Dona Maria; desmontar as pautas bombas mentirosas, fundadas no medo, e o domínio dos factóides e “pós-verdades” produzidos pela mídia, pelos fascismos; sair da nebulosa negativa em que pouco importa o que se fala e diz, pois ninguém quer ouvir; resgatar os desencantados, os que votam nulo, os que não foram votar e os que ligaram o dane-se; caminhar para a zona oeste, a baixada, zona norte, as periferias; achar intolerável os machistas, os fascistas, entender que direitos humanos não são para defender bandido e que, sim, a vida dos policiais é importante, da mesma forma que a vida dos jovens negros não pode ser sacrificada cotidianamente pelo racismo da polícia e da sociedade.
Descobrimos que mesmo sem grana das empreiteiras, sem máquina, é possivel disputar um projeto de cidade com os muitos que se juntaram num dos mais impressionantes movimentos de ação e imaginação das cidades brasileiras.
Olhei de novo pelo buraco da agulha e “vi meu rosto e minhas vísceras, vi teu rosto, e senti vertigem”, como relata Borges, se não estamos diante do infinito do universo, se ganharmos ou não ganharmos, o fato é que já estamos no meio de um extraordinário levante.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

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Editorial: O Beco da Marinete ou a pobreza de um debate?



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A julgar pelo debate ocorrido na Rádio Jornal, entre os candidatos Antonio Campos(PSB) e o professor Lupércio(Solidariedade), que disputam a prefeitura de Olinda, neste segundo turno das eleições municipais, passamos a ficar bastante preocupado sobre o que eles poderão fazer como gestores. Se considerarmos o número de assessores jurídicos ali presentes, parece até que a disputa não é pela gestão de uma cidade, mas em torno das divergências pessoais e de campanha entre ambos. Uma perguntinha óbvia se nos impõe neste momento: como ficam os milhares de eleitores que devem ter sintonizados o programa com o propósito de formarem a sua opinião sobre o candidato que apresenta as melhores condições e o melhor programa para gerir os destinos da cidade a partir de Janeiro de 2017?  

Aqui e ali, uma "pegadinha" até alimenta um debate político. Em certa medida, ela pode mostrar alguns indicadores importantes sobre o preparo do candidato que concorre à Prefeitura de uma cidade. Lembro que, num debate radiofônico - isso já faz algum tempo - salvo melhor juízo - não vão nos processar por isso - o então Secretário de Obras do Recife, João Braga, que conhecia a cidade na palma da mão, numa referência ao candidato Roberto Magalhães, teria afirmado que, se soltássemos ele no Largo Dona Regina, ele não saberia mais voltar para casa. À época, penso que ele não estaria dizendo nenhuma mentira. Até então, era bem possível que, de fato, Roberto Magalhães não conhecesse o Largo Dona Regina, ali na entrada de Nova Descoberta, onde todos os dias tem feira livre. Depois, Roberto Magalhães assumiria a Prefeitura da Cidade do Recife e, certamente, matou a curiosidade de conhecer o Largo Dona Regina. 

Aqui em Olinda, os blogs locais informam que o candidato Antonio Campos, vítima de uma dessas pegadinhas recentemente, não esperou o resultado das eleições para conhecer o Beco da Marinete, em Rio Doce, Olinda. Durante um debate do qual participou, juntamente com o seu oponente, o Professor Lupércio, este teria indagado do candidato o que ele pretendia fazer com o posto de saúde que ficaria na comunidade de Beco da Marinete. Logicamente não havia posto de saúde nenhum, mas o candidato socialista teria respondido à pergunta como se houvesse, de fato, algum posto de saúde na comunidade, o que estaria sendo editado pelo guia do candidato do Solidariedade, professor Lupércio, com o propósito de passar a ideia para os eleitores de que o candidato Antonio Campos não conhece a cidade, pois mora em Casa Forte. 

No dia seguinte, uma guerra das assessorias jurídica dos candidatos, cada qual procurando algum elemento para processar o outro, banalizando este instrumento. Penso que Antonio Campos não gostou nenhum pouco de ter sido chamado por Lupércio de candidato Casa Forte, numa alusão ao fato de que ele reside naquele bairro do Recife. O que nos estimula a estabelecer tal raciocínio é o fato de sua assessoria já ter anunciado que irá abrir um processo contra Lupércio por falsidade ideológica, uma vez que ele induz os eleitores a pensarem que ele nasceu em Olinda, quando se sabe que ele teria nascido numa maternidade do Recife, mas passado toda a sua vida na Marim dos Caetés. Se esses intramuros estivesse compondo um debate maior sobre um programa de governo para a gestão da cidade a partir de 2017, até que se poderia entender. Mas não é este o caso. As discussões começam e terminam por aí e os eleitores que sintonizam o rádio para formarem a sua opinião de voto para o dia 30 permanecem numa tremenda falta de informação sobre o que esses candidatos pretendem para a cidade.  

A coisa é tão séria que a matéria de um blog local, acerca deste assunto, tinha como título: candidatos se processam em Olinda, em razão, como dissemos no início, dos inúmeros processos que um move contra o outro. Pelo que se sabe, ainda não foi divulgada nenhuma pesquisa de intenção de votos na cidade de Olinda, nessa reta final da campanha. Desta vez, Tonca, como Antonio Campos é conhecido, passou a contar com o apoio do Palácio do Campo das Princesas, assim como o concurso de alguns parentes antes distantes do pleito, como é o caso do Chefe de Gabinete do Governo Paulo Câmara, João Campos, embora o processo de sucessão familiar de Eduardo Campos esteja apenas no começo. 

Criando um núcleo de poder paralelo no Estado - o PSB que se cuide - o ministro das Cidades, Bruno Araújo(PSDB), também manifestou apoio ao irmão de Eduardo Campos. Ontem, por ordem expressa do Ministro da Educação, Mendonça Filho, o DEM integrou-se à sua campanha. Do ponto de vista da competição eleitoral propriamente dita, o professor Lupércio cometeu uma impropriedade ao rejeitar, de imediato, qualquer apoio da candidata Luciana Santos (PCdoB), o que deve afugentar os eleitores da candidata, que poderiam tender a votar nele. No dia de hoje, 13, ocorreu o debate entre os candidatos que concorrem à Prefeitura da Cidade Jaboatão dos Guararapes. Quem acompanhou a repercussão do mesmo pelas redes sociais, sabe que sobraram xingamentos entre os candidatos, ao passo que faltaram propostas. 

Le Monde: Esperando a paz com os guerrilheiros das Farc


Em 23 de junho, Bogotá e as Farc assinaram um acordo histórico que instaura um cessar-fogo definitivo e prevê o desarmamento dos rebeldes. Após cinquenta anos de conflitos, a perspectiva de uma paz duradoura implica mudança de vida para os combatentes de base – dos quais alguns nem sequer chegaram a viver outro cotidia
por Loïc Ramirez


Há quanto tempo caminhamos por esse mar verde monótono? Meia hora? Uma hora? Duas? De repente, a lona das barracas se destaca em meio às árvores antes de chegarmos às instalações rudimentares da guerrilha. Duas horas de viagem de avião, ônibus, moto e depois a caminhada para chegar, em 29 de junho de 2016, ao acampamento da Frente 36, das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – Exército Popular (Farc-EP), no departamento de Antioquia, noroeste do país.
“Venham, vou apresentar vocês”, lança Sigifredo, que nos guia entre as folhagens e sobre os blocos de pedra utilizados para criar caminhos em meio à lama. Atravessamos o acampamento mergulhado na sombra antes de chegar a uma imensa clareira. Cerca de quarenta jovens estão alinhados, em plena ação. Estão à paisana, com um fuzil ou um bastão de madeira sobre os ombros. Os olhares mostram curiosidade com nossa chegada, e alguns sorriem, ao perder a concentração.
Fruto do enfrentamento entre o campesinato colombiano e as elites econômicas do país durante os anos 1950, as Farc apareceram em 1964. A principal reivindicação: uma divisão mais igualitária das terras colombianas. Após 52 anos, permanecem como um dos últimos movimentos revolucionários armados ativos do continente americano. Desde 1964, os sucessivos governos colombianos tentaram derrotar a insurreição marxista, até que o presidente Juan Manuel Santos (eleito em 2010 e reeleito em 2014) iniciou em 2012 negociações com a guerrilha.1 No dia 23 de junho de 2016, as duas partes anunciaram um acordo de cessar-fogo, prévio a um acordo de paz. Nesse contexto, o conflito perdeu intensidade nos últimos meses. A Colômbia experimenta uma tranquilidade inédita, e as Farc se abrem pouco a pouco à visita de certos jornalistas; a nossa é a segunda em menos de seis meses.
Diante das tropas, o comandante Anderson Figueroa se apresenta com uma voz calma e suave, que contrasta com sua estatura imponente. Ele dirige a Frente 36, que pertence ao Bloco Efraín Guzman.2 No fim do exercício, os guerrilheiros se dirigem a nós para nos cumprimentar com um aperto de mão: “Bem-vindos às Farc!”, lançam quase sistematicamente.
São homens e mulheres jovens, claramente recém-saídos da adolescência e oriundos do campo. A maior parte conhece pouco o mundo, como demonstram algumas de suas perguntas: “Que animais existem na França?”, “O que vocês comem?”, “No país de vocês existe guerrilha?”. Têm pouco acesso a livros e em geral aprendem a ler e a escrever no seio da organização. Entre os jovens da tropa, uma morena de pouca altura, 24 anos, Maribella, ou “Mari”, como é chamada pelos companheiros. Ela passou metade da vida na guerrilha, à qual se alistou após o assassinato do pai – um trabalhador rural – pelo Exército, quando ela tinha 12 anos. Seus dois irmãos e sua irmã também são membros das Farc. “Alguns jovens entraram para a organização aos 13 anos”, declara o comandante Figueroa. E continua: “Oficialmente, é preciso ter 15 anos e sempre ser voluntário!”.
Como explicar essas exceções? O homem sorri: “Nem todos integram o movimento por razões políticas. Eu mesmo entrei para as Farc aos 14 anos, porque tinha medo dos paramilitares.3 A consciência política, adquiri depois. Enfrentamos situações em que os jovens estão totalmente desfavorecidos, seja por algum conflito ou pela pobreza. A quem podem recorrer? A nós, no seio do exército do povo! Quando chegam aos 15 anos, perguntamos se querem ficar ou partir. Alguns de fato vão embora. Não mantemos ninguém à força na organização”. Segundo ele, os menores (menos de 15 anos) vivem sob um regime específico: apenas estudam, jamais entram nos combates. “Os recém-chegados passam por um longo período de reflexão e até de retração. Há casos de pessoas que buscam a organização após uma decepção amorosa ou problemas familiares, econômicos. Se as motivações não são as certas, é importante refletir sobre isso antes que seja tarde, porque aqui é ‘vencer ou morrer’”, sentencia.

“Jamais perdoarei minha mãe”
Sobre um aparador feito com pranchas de madeira, reina uma televisão de plasma e toda a parafernália elétrica onde estão conectados tablets e computadores portáteis. “Estamos ligados à rede elétrica pública. É a primeira vez que podemos dispor desse conforto”, explica o comandante Figueroa. Mais próxima ao rio está a cozinha e, ao lado, uma tenda, onde se amontoam pacotes de arroz, de macarrão, latas de legumes, pacotes de biscoitos, óleo, sabonete etc. Cada guerrilheiro dispõe de uma caleta onde come e dorme: trata-se de uma pequena armação de madeira protegida por uma lona, em que ficam pendurados seu saco de dormir e sua arma, sempre à mão. As caletas se espalham no acampamento por pelotão, as menores unidades da organização. Sem interrupção, a segurança funciona dia e noite, em turnos de duas horas.
Na manhã seguinte, às 4h45, vozes ressoam e nos despertam. A noite ainda está impenetrável, mas na cozinha já há silhuetas em movimento. Com lâmpadas frontais na testa, guerrilheiros preparam o café da manhã. Alternadamente, em duplas, todos os membros da organização cozinham para a tropa. O resto do grupo se reúne no clarear do dia para uma sessão de exercícios físicos. Pouco a pouco, o céu se tinge de rosa e as sombras aparecem sobre a relva.
Seis horas: fim dos exercícios. Os guerrilheiros se enfileiram, todos com uniforme verde-musgo (vestidos diligentemente de manhã e à noite, depois do banho no rio) e uma braçadeira com as cores das Farc. Um oficial indica as missões a serem cumpridas e as unidades designadas: limpeza do acampamento, esvaziamento das latrinas, turnos da guarda etc. Antes do início das atividades, café é servido em xícaras de ferro brancas. A jovem Laura descasca dezenas de batatas. “Há dez anos entrei para as Farc, eu tinha 12 anos, mas já conhecia a organização. Fui criada aqui praticamente”, assegura. Sem perder o sorriso, acrescenta: “Minha mãe era da guerrilha e eu segui seus passos. Ela desertou há alguns anos, e jamais a perdoarei. Ela partiu sem mim, e seu destino já não me interessa”.
Às 7 horas, todos se reúnem sob a tenda central para o que a organização chama de “hora de estudo: resumo de romances”. Aníbal, membro do estado-maior da Frente 36, conduz o debate e convida cada combatente a evocar uma informação que leu, viu na televisão ou escutou no rádio. As intervenções são, na maior parte, similares e ressaltam aquilo que chamam de evidências políticas. São temas destinados aos visitantes, ou revelam os efeitos da formação ideológica da organização?
A questão do processo de paz e as perspectivas do futuro alimentam os diálogos. As Farc e o governo do presidente Santos chegaram a um acordo sobre a criação de 23 “zonas de concentração” no país. No seio dessas localidades, os guerrilheiros se reagrupam sob proteção das Forças Armadas mediadoras da ONU. Os guerrilheiros terão 124 dias a partir da assinatura do acordo final para destruir seus armamentos. “Sabemos que a oligarquia apenas mudou a estratégia, porque não conseguiu nos vencer militarmente”, afirma Marcelino, membro do estado-maior. “Seu objetivo continua sendo a apropriação de nossos recursos naturais. Contudo, temos a possibilidade de seguir com nossa ação sem as armas, o que sempre quisemos.”
Alguém menciona as palavras do presidente equatoriano, Rafael Correa, que teme que no fim do processo de paz alguns membros das Farc se transformem em simples delinquentes armados. Ninguém parece excluir essa possibilidade, mesmo que todos concordem que isso se reduziria a um epifenômeno. Outra intervenção evoca a chegada da empresa Uber à Colômbia e a mutação do modelo capitalista, no país e fora dele.
Às 8 horas, o café da manhã (carne e arroz) marca o fim da reunião. A manhã segue com a leitura individual de jornais, manuais de história da América Latina ou ainda de trabalhos de análise marxista. Parte das obras parece ser bastante complexa, dado o nível de leitura de alguns. Sentados sob uma tenda, dois rebeldes assistem a um curso de gramática pelo tablet.

Samba-canção, xampu e maquiagem
Sexta-feira, 1º de julho de 2016. A chuva soou nas lonas de plástico toda a noite. O raiar do dia está úmido. O chão lamacento dispensa os combatentes dos exercícios matinais. Quando os primeiros raios de sol despontam entre as folhagens, os guerrilheiros penduram as roupas molhadas em varais amarrados entre as árvores. Alguns colocam peças e sapatos nas pedras às margens do rio, para aumentar a chance de secá-las. “É a organização que nos fornece as roupas civis”, explica Jacqueline. Ela usa um colar e um bracelete de pérolas, ambos feitos à mão. Seus longos cabelos são tingidos de um rosa quase fluorescente. “Às vezes, você pode escolher a camiseta ou a calça. Também pode pedir uma ou outra cor. O mesmo acontece para os brincos, maquiagem etc. Cada um ganha um relógio quando entra para a guerrilha.”
Sigifredo conta outros detalhes: “Cada objeto que vem do exterior é verificado, porque, em um relógio ou em uma bota, o inimigo pode inserir um chip que poderia transmitir nossa localização. Essa é a razão pela qual alguns produtos são estocados, às vezes durante muito tempo, antes de serem utilizados. Às vezes também os mergulhamos na água para destruir um eventual dispositivo eletrônico de localização. Também é por esse motivo que recorremos a pessoas de total confiança para receber produtos: um camponês que conhecemos, um membro da família etc. Ninguém está autorizado a trazer qualquer coisa para o acampamento sem o conhecimento de seus superiores, por isso cada um precisa recorrer ao seu intendente sempre que precisar de algo: xampu, roupa íntima etc. A situação de cessar-fogo, contudo, nos dispensou desses controles”. E os uniformes, que tanto se parecem aos do Exército colombiano, o adversário? “Obtemos esses uniformes diretamente das lojas que vendem materiais e roupas para o Exército colombiano e para a polícia, graças à corrupção”, explica.

Depois do almoço, acompanhamos Olga, escoltada por três guerrilheiros à paisana, até a casa de camponeses. Aos 31 anos, dos quais dezesseis nas Farc, ela tornou-se enfermeira e dentista da organização. Regularmente realiza cirurgias dentárias em civis – que não têm autorização de entrar nos acampamentos. Depois de alguns minutos de caminhada, chegamos ao topo de uma colina, onde vive uma família. Em meio a galinhas e porcos, Olga desembala seu material médico, que os anfitriões dissimulam. Luvas, seringas, lâmpadas de LED, ultrassom de limpeza: o conjunto de ferramentas é impressionante e provém, diz ela, de amigos médicos e dentistas que fornecem à guerrilha.

Unidos em terna intimidade
Em um cômodo, a jovem realiza suas intervenções, enquanto os pacientes vindos dos arredores conversam do lado de fora. “Doutora Olga!”, interpela um adolescente sorridente, Dayron, de 15 anos, sentado sobre uma cama. Ele está de férias por ali; mora em Medellín. “Sei que ela é das Farc; todo mundo aqui sabe. Eles são os melhores amigos dos camponeses.” Tratamento de cáries, aparelhos dentários: Olga trabalha nisso durante toda a tarde, com Alejandra, sua aprendiz. “Eles não têm recursos para ir ao dentista e, se vão, o serviço é feito de forma que eles precisem voltar para gastar dinheiro novamente. Mas eu trabalho por ética revolucionária, e não por dinheiro. É o que me ensinaram”, insiste a jovem. Práticas como essa também garantem às Farc o apoio solidário entre a população.
Chove todas as noites. No sábado, às 5h30, os guerrilheiros se levantam e se reagrupam em quatro filas, na lama, para o chamado, como todas as manhãs. O oficial os cumprimenta, informa-se junto à tropa sobre as necessidades de higiene (Quem precisa de sabão? Talco?) e saúde (Alguém está doente? Dormiu mal?). Depois, distribui as tarefas do dia. Nesse dia, ele mobilizou todo o acampamento. A tenda central precisa ser ampliada pela chegada de outra parte da Frente no dia seguinte. Como formigas operárias, os combatentes desmontam a instalação atual, abatem uma velha árvore que reina no meio do terreno e em seguida erigem uma nova estrutura duas vezes maior. “Um acampamento desse tamanho é raro”, explica o comandante Figueroa. “Mas a situação de cessar-fogo nos permite. É recente. Estamos aqui há vinte dias. Em tempos normais, ficaríamos apenas dois, três ou no máximo quatro dias no mesmo lugar. De 1990 a 2000, nossos acampamentos duravam um mês, às vezes dois. Depois, as operações militares aumentaram.” A partir do início dos anos 2000, Washington se envolveu diretamente com o conflito por meio de seu Plano Colômbia, que previa financiamento e formação de forças militares locais para combater a guerrilha sob o disfarce de luta contra a droga.4 O envolvimento do aliado do Norte se tornou ainda mais intenso com a chegada ao poder de Álvaro Uribe, em 2002, o que permitiu certas investidas do Exército contra as Farc. Durante seus dois mandatos (o segundo até 2010), Uribe, respaldado notadamente por seu ministro da Defesa de 2006 a 2009, um tal de Juan Manuel Santos, empreendeu uma política feroz em relação à guerrilha – e de oposição à esquerda em geral. Sem resultados relevantes...
“Até há pouco tempo, os computadores precisavam ficar desligados, porque o Exército possui aviões com detectores de atividade eletrônica. Quando identificavam algo na selva, bombardeavam.” Ao nos oferecer um cigarro, Valentina, de 26 anos, rememora: “Durante os períodos de ofensiva da Armada, não podíamos fumar de noite, pelo risco de sermos vistos; nos movimentávamos sem nenhuma luz, nada”. Apoiada contra uma árvore, ela desfruta uma pausa, enquanto seus companheiros terminam de montar a tenda principal, a aula. Apesar do olhar duro, depois de onze anos de guerrilha ativa, ela possui uma nécessaire singular: de um lado, o slogan das Farc, “Vencer ou morrer!”, e, do outro, imagens de Mickey e seu cachorro, Pluto. Aristizábal, 32 anos, também se lembra dos anos de guerra sob o mandato de Uribe: “Sofremos muitas deserções, mas ganhamos em qualidade de efetivos – os que ficaram são os mais motivados. Passávamos dias escondidos atrás de trincheiras ou da vegetação. Na época, não fazíamos três refeições por dia”.
Esse tempo parece ter passado de fato. Sob nossos olhos, o acampamento respira um ar de descontração geral. Os guerrilheiros riem e, às vezes, se divertem durante as atividades. “Continuar a fazer política, trabalhar para a organização, na forma que ela terá no futuro”, ou ainda “continuar a estudar”, sem precisar o quê. Se existe, a preocupação, é perfeitamente dissimulada atrás da confiança que alguns passam em relação à “grande família das Farc”.
Fim de tarde. Alguns jogam futebol na clareira, enquanto outros terminam suas tarefas na obra. Eficazes e rápidos, os muchachos terminaram a nova aula bem na hora do jantar (18 horas). Depois, todos se reúnem na nova aula para assistir à televisão. A sessão, seja de caráter documental ou ficcional, sempre tem um intuito pedagógico, contém uma mensagem de luta ou uma crítica social. De tempos em tempos, o acampamento assiste a jogos de futebol da seleção colombiana. Enquanto o oficial procura o documentário previsto para aquela noite, os jovens zapeiam um filme de ação hollywoodiano – que os mantém entretidos até que um dos garotos conecta o dispositivo USB com o documentário daquela noite, dedicado aos conflitos agrários da América Central. Sem reclamar, o público aceita a interrupção. “Às vezes, assistimos a filmes, como os filmes soviéticos sobre a Segunda Guerra Mundial”, indica um dos jovens.
A chuva martela a lona e dificulta a visão da tela. A fila do fundo cochicha. Alguns jovens trocam sussurros e tocam-se uns aos outros. Não é fácil identificar os casais, porque as demonstrações de afeto são pudicas e dispersas: uma cabeça apoiada no ombro do companheiro, cochichos ao pé do ouvido, um braço em torno do pescoço, beliscos na cintura: sejam eles parceiros sexuais ou não, os guerrilheiros compartilham intimidade. A organização autoriza o concubinato (casais podem dormir juntos em suas barracas), mas proíbe a libertinagem. Depois do documentário, assistem ao jornal televisivo Noticias Caracol, apesar de sua hostilidade militante contra as Farc. Enfim, sob a tempestade, cada combatente vai para sua caleta.
Às 4h45 do domingo, 3 de julho de 2016, as rádios começam a funcionar. Na penumbra, cerca de quarenta guerrilheiros aparecem para cumprimentar e abraçar os primeiros despertos. São os outros membros da Frente 36 que voltaram da missão. Rapidamente, o segundo grupo se retira para começar a construção de seu próprio acampamento, a alguns metros do rio. Às 7h30, depois de tomar um tinto (café), os combatentes se reúnem por pelotão para a “reunião do partido”. Cada pelotão forma uma célula do Partido Comunista Colombiano Clandestino (PC3). Por grupos de dez ou doze, debatem uma leitura coletiva de uma coluna do comandante-chefe da organização, Timoleón Jiménez, no Voz, o jornal do PC3.
Henry anima uma das assembleias. Ele tem 31 anos (treze de guerrilha) e demonstra um domínio da oralidade que o destaca dos demais. Com entusiasmo, estimula seus companheiros de armas a tomar a palavra e expressar suas opiniões. Um por um, em geral com grande timidez, eles levantam-se e expõem suas considerações. Em um tom monótono, as intervenções se encadeiam e se parecem, sem nenhuma contradição; há pouco ou nenhum debate de ideias, nenhuma proposta divergente. A tomada da palavra se resume de forma geral a uma paráfrase das ideias principais do texto estudado. Sem dúvida, o nível desigual de educação política entre os mais experientes e os jovens recrutados explica em parte a ausência de trocas mais profundas, além da timidez de falar em público.
No fim da manhã, um grupo de guerrilheiros à paisana deixa o acampamento para seguir a pé para uma assembleia em uma comunidade rural da região. Cerca de cinquenta camponeses se abrigam sob o teto de um celeiro, em meio a uma pradaria, para discutir os problemas da comunidade. Em meio a gritos de crianças e latidos de cachorros, o presidente da assembleia introduz a sessão e anuncia a ordem do dia. Depois de algumas questões relacionadas a finanças e organização, passam a palavra às Farc, que pacientemente aguardavam ao lado. Aníbal se ergue e propõe em primeiro lugar responder a perguntas. As principais são sobre o processo de paz em curso. Um camponês interpela: “O que vai acontecer quando vocês assinarem o acordo de paz? Quem nos protegerá? Se o paramilitarismo continuar, então nós, os civis, teremos de pegar em armas!”. Com um sorriso entre os lábios, Aníbal responde: “É exatamente o que fizemos há mais de quarenta anos. Pelas mesmas razões”. Ele sublinha: “As condições reais da paz precisam existir, senão não haverá acordo final, podem ter certeza”. Leónidas, encarregado da propaganda da Frente, se levanta. Carismático, avisa ao público: “O fim da guerra não significa a vitória. Outra batalha vai começar. As multinacionais vão aparecer para tentar se apropriar do rio, dos campos, das florestas de vocês. Será preciso muita organização para se defender. Um dos problemas que nos ameaça, por exemplo, é a Lei Zidres”. Essa lei, denunciada por diferentes vozes da esquerda, favorece a instalação de empresas privadas em zonas rurais.
De todos os combatentes com quem conversamos, Leónidas e Aníbal, ambos quarentões, são os únicos que militaram na Juventude Comunista (Juco) antes de se engajarem na insurreição armada. A habilidade oratória e o conhecimento profundo da esfera política vêm sem dúvida dessa experiência. Quando terminaram suas falas, cumprimentaram a assembleia e se retiraram. No caminho de volta ao acampamento, assistimos aos preparativos que anunciam a festa da noite. Na tenda central, um grande estandarte diz “Bem-vindos à paz”, ao lado dos rostos de Manuel Marulanda Vélez, fundador histórico das Farc, e Raúl Reyes, membro do secretariado do estado-maior central (ambos morreram em 2008 – o primeiro, de morte natural, e o segundo, em um bombardeio). Para o jantar, arepas e uma bebida de chocolate.
Por volta das 19 horas, cerca de cem guerrilheiros se reúnem. Como mestre de cerimônia, Henry anima essa hora cultural, enquanto voluntários cantam, fazem repentes, recitam poemas ou contam piadas. O ambiente é de diversão. Apenas os fuzis pendurados nos combatentes lembram a realidade do conflito. Enfim, as cadeiras são colocadas em um canto para abrir espaço para a pista de dança. Até meia-noite, canções animadas ecoam em meio ao silêncio da floresta.

“Vai dizer que as Farc o sequestraram?”
Segunda-feira, 4 de julho. A chuva lavou as marcas dos passos de dança da noite anterior. Depois do café da manhã, o comandante reúne a totalidade dos guerrilheiros ali presentes; eles estão em fila, com cabelo penteado e boina, na clareira. É o momento de saudação à bandeira. Sob o sol já quente, uma centena de uniformes se alinha em diversas filas. Apresentação das armas, marcha militar: os combatentes se aplicam a responder com diligência às ordens do chefe. Três deles se destacam das filas; eles seguram uma bandeira dobrada, que logo é pendurada no mastro improvisado para a ocasião. Uma vez hasteado, o pano sacode ao vento e se desdobra no símbolo das Farc sobre as cores da bandeira colombiana, sob o olhar atento dos presentes. O hino da guerrilha ecoa por dois alto-falantes.
“Antes da visita, você tinha medo de nós? Quando você voltar para a França, vai dizer que as Farc o sequestraram?”, brinca o jovem Franki, de 24 anos (oito de guerrilha). Respondemos que sim para alimentar a brincadeira. O ambiente torna-se solene outra vez quando, durante nossa festa de despedida, Leónidas evoca o desafio do processo de paz e o “caráter universal” da luta dos comunistas e das Farc. “Venceremos!”, conclui ele no meio da tropa.
Uma chuva torrencial brinda a última noite no acampamento. A algumas semanas ou meses do que se anuncia como o fim de um conflito de mais de cinquenta anos, sem dúvida seria presunçoso tentar adivinhar como se darão os acontecimentos. A transição da vida militar à vida civil não é o único desafio que as Farc deverão enfrentar. A passagem de um ambiente totalmente voltado ao coletivo e ao grupo, para o contexto individualista que reina nos grandes centros urbanos, ameaça também desestabilizar as pessoas que encontramos aqui. “Fomos demonizados pelos meios de comunicação, mas, com as negociações de paz, as pessoas aprenderão a nos conhecer”, prevê Figueroa. E os guerrilheiros, será que eles conhecem mesmo o mundo em que estão prestes a entrar?

Loïc Ramirez
Loïc Ramirez é jornalista e autor de La Rose assassinée [A rosa assassinada], Notes de la Fondation Gabriel Péri, Paris, 2015


Ilustração: Daniel Kondo

1    Ler Maurice Lemoine, “Qui a peur de la vérité en Colombie?” [Quem tem medo da verdade na Colômbia?], Le Monde Diplomatique, dez. 2015.
2    Cada bloco é composto de pelo menos cinco frentes, e, cada frente, de mais de uma centena de unidades.
3    Ler Laurence Mazure, “Dans l’inhumanité du conflit colombien” [Na desumanidade do conflito colombiano], Le Monde Diplomatique, maio 2007.
4    Ler Hernando Calvo Ospina, “Aux frontières du plan Colombie” [Nas fronteiras do Plano Colômbia], Le Monde Diplomatique, fev. 2005.
03 de Agosto de 2016
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