Em 23 de junho, Bogotá e as Farc assinaram um acordo histórico que instaura um cessar-fogo definitivo e prevê o desarmamento dos rebeldes. Após cinquenta anos de conflitos, a perspectiva de uma paz duradoura implica mudança de vida para os combatentes de base – dos quais alguns nem sequer chegaram a viver outro cotidia
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por Loïc Ramirez |
Há quanto tempo caminhamos por esse mar verde monótono? Meia hora? Uma hora? Duas? De repente, a lona das barracas se destaca em meio às árvores antes de chegarmos às instalações rudimentares da guerrilha. Duas horas de viagem de avião, ônibus, moto e depois a caminhada para chegar, em 29 de junho de 2016, ao acampamento da Frente 36, das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – Exército Popular (Farc-EP), no departamento de Antioquia, noroeste do país. “Venham, vou apresentar vocês”, lança Sigifredo, que nos guia entre as folhagens e sobre os blocos de pedra utilizados para criar caminhos em meio à lama. Atravessamos o acampamento mergulhado na sombra antes de chegar a uma imensa clareira. Cerca de quarenta jovens estão alinhados, em plena ação. Estão à paisana, com um fuzil ou um bastão de madeira sobre os ombros. Os olhares mostram curiosidade com nossa chegada, e alguns sorriem, ao perder a concentração. Fruto do enfrentamento entre o campesinato colombiano e as elites econômicas do país durante os anos 1950, as Farc apareceram em 1964. A principal reivindicação: uma divisão mais igualitária das terras colombianas. Após 52 anos, permanecem como um dos últimos movimentos revolucionários armados ativos do continente americano. Desde 1964, os sucessivos governos colombianos tentaram derrotar a insurreição marxista, até que o presidente Juan Manuel Santos (eleito em 2010 e reeleito em 2014) iniciou em 2012 negociações com a guerrilha.1 No dia 23 de junho de 2016, as duas partes anunciaram um acordo de cessar-fogo, prévio a um acordo de paz. Nesse contexto, o conflito perdeu intensidade nos últimos meses. A Colômbia experimenta uma tranquilidade inédita, e as Farc se abrem pouco a pouco à visita de certos jornalistas; a nossa é a segunda em menos de seis meses. Diante das tropas, o comandante Anderson Figueroa se apresenta com uma voz calma e suave, que contrasta com sua estatura imponente. Ele dirige a Frente 36, que pertence ao Bloco Efraín Guzman.2 No fim do exercício, os guerrilheiros se dirigem a nós para nos cumprimentar com um aperto de mão: “Bem-vindos às Farc!”, lançam quase sistematicamente. São homens e mulheres jovens, claramente recém-saídos da adolescência e oriundos do campo. A maior parte conhece pouco o mundo, como demonstram algumas de suas perguntas: “Que animais existem na França?”, “O que vocês comem?”, “No país de vocês existe guerrilha?”. Têm pouco acesso a livros e em geral aprendem a ler e a escrever no seio da organização. Entre os jovens da tropa, uma morena de pouca altura, 24 anos, Maribella, ou “Mari”, como é chamada pelos companheiros. Ela passou metade da vida na guerrilha, à qual se alistou após o assassinato do pai – um trabalhador rural – pelo Exército, quando ela tinha 12 anos. Seus dois irmãos e sua irmã também são membros das Farc. “Alguns jovens entraram para a organização aos 13 anos”, declara o comandante Figueroa. E continua: “Oficialmente, é preciso ter 15 anos e sempre ser voluntário!”. Como explicar essas exceções? O homem sorri: “Nem todos integram o movimento por razões políticas. Eu mesmo entrei para as Farc aos 14 anos, porque tinha medo dos paramilitares.3 A consciência política, adquiri depois. Enfrentamos situações em que os jovens estão totalmente desfavorecidos, seja por algum conflito ou pela pobreza. A quem podem recorrer? A nós, no seio do exército do povo! Quando chegam aos 15 anos, perguntamos se querem ficar ou partir. Alguns de fato vão embora. Não mantemos ninguém à força na organização”. Segundo ele, os menores (menos de 15 anos) vivem sob um regime específico: apenas estudam, jamais entram nos combates. “Os recém-chegados passam por um longo período de reflexão e até de retração. Há casos de pessoas que buscam a organização após uma decepção amorosa ou problemas familiares, econômicos. Se as motivações não são as certas, é importante refletir sobre isso antes que seja tarde, porque aqui é ‘vencer ou morrer’”, sentencia. “Jamais perdoarei minha mãe” Sobre um aparador feito com pranchas de madeira, reina uma televisão de plasma e toda a parafernália elétrica onde estão conectados tablets e computadores portáteis. “Estamos ligados à rede elétrica pública. É a primeira vez que podemos dispor desse conforto”, explica o comandante Figueroa. Mais próxima ao rio está a cozinha e, ao lado, uma tenda, onde se amontoam pacotes de arroz, de macarrão, latas de legumes, pacotes de biscoitos, óleo, sabonete etc. Cada guerrilheiro dispõe de uma caleta onde come e dorme: trata-se de uma pequena armação de madeira protegida por uma lona, em que ficam pendurados seu saco de dormir e sua arma, sempre à mão. As caletas se espalham no acampamento por pelotão, as menores unidades da organização. Sem interrupção, a segurança funciona dia e noite, em turnos de duas horas. Na manhã seguinte, às 4h45, vozes ressoam e nos despertam. A noite ainda está impenetrável, mas na cozinha já há silhuetas em movimento. Com lâmpadas frontais na testa, guerrilheiros preparam o café da manhã. Alternadamente, em duplas, todos os membros da organização cozinham para a tropa. O resto do grupo se reúne no clarear do dia para uma sessão de exercícios físicos. Pouco a pouco, o céu se tinge de rosa e as sombras aparecem sobre a relva. Seis horas: fim dos exercícios. Os guerrilheiros se enfileiram, todos com uniforme verde-musgo (vestidos diligentemente de manhã e à noite, depois do banho no rio) e uma braçadeira com as cores das Farc. Um oficial indica as missões a serem cumpridas e as unidades designadas: limpeza do acampamento, esvaziamento das latrinas, turnos da guarda etc. Antes do início das atividades, café é servido em xícaras de ferro brancas. A jovem Laura descasca dezenas de batatas. “Há dez anos entrei para as Farc, eu tinha 12 anos, mas já conhecia a organização. Fui criada aqui praticamente”, assegura. Sem perder o sorriso, acrescenta: “Minha mãe era da guerrilha e eu segui seus passos. Ela desertou há alguns anos, e jamais a perdoarei. Ela partiu sem mim, e seu destino já não me interessa”. Às 7 horas, todos se reúnem sob a tenda central para o que a organização chama de “hora de estudo: resumo de romances”. Aníbal, membro do estado-maior da Frente 36, conduz o debate e convida cada combatente a evocar uma informação que leu, viu na televisão ou escutou no rádio. As intervenções são, na maior parte, similares e ressaltam aquilo que chamam de evidências políticas. São temas destinados aos visitantes, ou revelam os efeitos da formação ideológica da organização? A questão do processo de paz e as perspectivas do futuro alimentam os diálogos. As Farc e o governo do presidente Santos chegaram a um acordo sobre a criação de 23 “zonas de concentração” no país. No seio dessas localidades, os guerrilheiros se reagrupam sob proteção das Forças Armadas mediadoras da ONU. Os guerrilheiros terão 124 dias a partir da assinatura do acordo final para destruir seus armamentos. “Sabemos que a oligarquia apenas mudou a estratégia, porque não conseguiu nos vencer militarmente”, afirma Marcelino, membro do estado-maior. “Seu objetivo continua sendo a apropriação de nossos recursos naturais. Contudo, temos a possibilidade de seguir com nossa ação sem as armas, o que sempre quisemos.” Alguém menciona as palavras do presidente equatoriano, Rafael Correa, que teme que no fim do processo de paz alguns membros das Farc se transformem em simples delinquentes armados. Ninguém parece excluir essa possibilidade, mesmo que todos concordem que isso se reduziria a um epifenômeno. Outra intervenção evoca a chegada da empresa Uber à Colômbia e a mutação do modelo capitalista, no país e fora dele. Às 8 horas, o café da manhã (carne e arroz) marca o fim da reunião. A manhã segue com a leitura individual de jornais, manuais de história da América Latina ou ainda de trabalhos de análise marxista. Parte das obras parece ser bastante complexa, dado o nível de leitura de alguns. Sentados sob uma tenda, dois rebeldes assistem a um curso de gramática pelo tablet. Samba-canção, xampu e maquiagem Sexta-feira, 1º de julho de 2016. A chuva soou nas lonas de plástico toda a noite. O raiar do dia está úmido. O chão lamacento dispensa os combatentes dos exercícios matinais. Quando os primeiros raios de sol despontam entre as folhagens, os guerrilheiros penduram as roupas molhadas em varais amarrados entre as árvores. Alguns colocam peças e sapatos nas pedras às margens do rio, para aumentar a chance de secá-las. “É a organização que nos fornece as roupas civis”, explica Jacqueline. Ela usa um colar e um bracelete de pérolas, ambos feitos à mão. Seus longos cabelos são tingidos de um rosa quase fluorescente. “Às vezes, você pode escolher a camiseta ou a calça. Também pode pedir uma ou outra cor. O mesmo acontece para os brincos, maquiagem etc. Cada um ganha um relógio quando entra para a guerrilha.” Sigifredo conta outros detalhes: “Cada objeto que vem do exterior é verificado, porque, em um relógio ou em uma bota, o inimigo pode inserir um chip que poderia transmitir nossa localização. Essa é a razão pela qual alguns produtos são estocados, às vezes durante muito tempo, antes de serem utilizados. Às vezes também os mergulhamos na água para destruir um eventual dispositivo eletrônico de localização. Também é por esse motivo que recorremos a pessoas de total confiança para receber produtos: um camponês que conhecemos, um membro da família etc. Ninguém está autorizado a trazer qualquer coisa para o acampamento sem o conhecimento de seus superiores, por isso cada um precisa recorrer ao seu intendente sempre que precisar de algo: xampu, roupa íntima etc. A situação de cessar-fogo, contudo, nos dispensou desses controles”. E os uniformes, que tanto se parecem aos do Exército colombiano, o adversário? “Obtemos esses uniformes diretamente das lojas que vendem materiais e roupas para o Exército colombiano e para a polícia, graças à corrupção”, explica. Depois do almoço, acompanhamos Olga, escoltada por três guerrilheiros à paisana, até a casa de camponeses. Aos 31 anos, dos quais dezesseis nas Farc, ela tornou-se enfermeira e dentista da organização. Regularmente realiza cirurgias dentárias em civis – que não têm autorização de entrar nos acampamentos. Depois de alguns minutos de caminhada, chegamos ao topo de uma colina, onde vive uma família. Em meio a galinhas e porcos, Olga desembala seu material médico, que os anfitriões dissimulam. Luvas, seringas, lâmpadas de LED, ultrassom de limpeza: o conjunto de ferramentas é impressionante e provém, diz ela, de amigos médicos e dentistas que fornecem à guerrilha. Unidos em terna intimidade Em um cômodo, a jovem realiza suas intervenções, enquanto os pacientes vindos dos arredores conversam do lado de fora. “Doutora Olga!”, interpela um adolescente sorridente, Dayron, de 15 anos, sentado sobre uma cama. Ele está de férias por ali; mora em Medellín. “Sei que ela é das Farc; todo mundo aqui sabe. Eles são os melhores amigos dos camponeses.” Tratamento de cáries, aparelhos dentários: Olga trabalha nisso durante toda a tarde, com Alejandra, sua aprendiz. “Eles não têm recursos para ir ao dentista e, se vão, o serviço é feito de forma que eles precisem voltar para gastar dinheiro novamente. Mas eu trabalho por ética revolucionária, e não por dinheiro. É o que me ensinaram”, insiste a jovem. Práticas como essa também garantem às Farc o apoio solidário entre a população. Chove todas as noites. No sábado, às 5h30, os guerrilheiros se levantam e se reagrupam em quatro filas, na lama, para o chamado, como todas as manhãs. O oficial os cumprimenta, informa-se junto à tropa sobre as necessidades de higiene (Quem precisa de sabão? Talco?) e saúde (Alguém está doente? Dormiu mal?). Depois, distribui as tarefas do dia. Nesse dia, ele mobilizou todo o acampamento. A tenda central precisa ser ampliada pela chegada de outra parte da Frente no dia seguinte. Como formigas operárias, os combatentes desmontam a instalação atual, abatem uma velha árvore que reina no meio do terreno e em seguida erigem uma nova estrutura duas vezes maior. “Um acampamento desse tamanho é raro”, explica o comandante Figueroa. “Mas a situação de cessar-fogo nos permite. É recente. Estamos aqui há vinte dias. Em tempos normais, ficaríamos apenas dois, três ou no máximo quatro dias no mesmo lugar. De 1990 a 2000, nossos acampamentos duravam um mês, às vezes dois. Depois, as operações militares aumentaram.” A partir do início dos anos 2000, Washington se envolveu diretamente com o conflito por meio de seu Plano Colômbia, que previa financiamento e formação de forças militares locais para combater a guerrilha sob o disfarce de luta contra a droga.4 O envolvimento do aliado do Norte se tornou ainda mais intenso com a chegada ao poder de Álvaro Uribe, em 2002, o que permitiu certas investidas do Exército contra as Farc. Durante seus dois mandatos (o segundo até 2010), Uribe, respaldado notadamente por seu ministro da Defesa de 2006 a 2009, um tal de Juan Manuel Santos, empreendeu uma política feroz em relação à guerrilha – e de oposição à esquerda em geral. Sem resultados relevantes... “Até há pouco tempo, os computadores precisavam ficar desligados, porque o Exército possui aviões com detectores de atividade eletrônica. Quando identificavam algo na selva, bombardeavam.” Ao nos oferecer um cigarro, Valentina, de 26 anos, rememora: “Durante os períodos de ofensiva da Armada, não podíamos fumar de noite, pelo risco de sermos vistos; nos movimentávamos sem nenhuma luz, nada”. Apoiada contra uma árvore, ela desfruta uma pausa, enquanto seus companheiros terminam de montar a tenda principal, a aula. Apesar do olhar duro, depois de onze anos de guerrilha ativa, ela possui uma nécessaire singular: de um lado, o slogan das Farc, “Vencer ou morrer!”, e, do outro, imagens de Mickey e seu cachorro, Pluto. Aristizábal, 32 anos, também se lembra dos anos de guerra sob o mandato de Uribe: “Sofremos muitas deserções, mas ganhamos em qualidade de efetivos – os que ficaram são os mais motivados. Passávamos dias escondidos atrás de trincheiras ou da vegetação. Na época, não fazíamos três refeições por dia”. Esse tempo parece ter passado de fato. Sob nossos olhos, o acampamento respira um ar de descontração geral. Os guerrilheiros riem e, às vezes, se divertem durante as atividades. “Continuar a fazer política, trabalhar para a organização, na forma que ela terá no futuro”, ou ainda “continuar a estudar”, sem precisar o quê. Se existe, a preocupação, é perfeitamente dissimulada atrás da confiança que alguns passam em relação à “grande família das Farc”. Fim de tarde. Alguns jogam futebol na clareira, enquanto outros terminam suas tarefas na obra. Eficazes e rápidos, os muchachos terminaram a nova aula bem na hora do jantar (18 horas). Depois, todos se reúnem na nova aula para assistir à televisão. A sessão, seja de caráter documental ou ficcional, sempre tem um intuito pedagógico, contém uma mensagem de luta ou uma crítica social. De tempos em tempos, o acampamento assiste a jogos de futebol da seleção colombiana. Enquanto o oficial procura o documentário previsto para aquela noite, os jovens zapeiam um filme de ação hollywoodiano – que os mantém entretidos até que um dos garotos conecta o dispositivo USB com o documentário daquela noite, dedicado aos conflitos agrários da América Central. Sem reclamar, o público aceita a interrupção. “Às vezes, assistimos a filmes, como os filmes soviéticos sobre a Segunda Guerra Mundial”, indica um dos jovens. A chuva martela a lona e dificulta a visão da tela. A fila do fundo cochicha. Alguns jovens trocam sussurros e tocam-se uns aos outros. Não é fácil identificar os casais, porque as demonstrações de afeto são pudicas e dispersas: uma cabeça apoiada no ombro do companheiro, cochichos ao pé do ouvido, um braço em torno do pescoço, beliscos na cintura: sejam eles parceiros sexuais ou não, os guerrilheiros compartilham intimidade. A organização autoriza o concubinato (casais podem dormir juntos em suas barracas), mas proíbe a libertinagem. Depois do documentário, assistem ao jornal televisivo Noticias Caracol, apesar de sua hostilidade militante contra as Farc. Enfim, sob a tempestade, cada combatente vai para sua caleta. Às 4h45 do domingo, 3 de julho de 2016, as rádios começam a funcionar. Na penumbra, cerca de quarenta guerrilheiros aparecem para cumprimentar e abraçar os primeiros despertos. São os outros membros da Frente 36 que voltaram da missão. Rapidamente, o segundo grupo se retira para começar a construção de seu próprio acampamento, a alguns metros do rio. Às 7h30, depois de tomar um tinto (café), os combatentes se reúnem por pelotão para a “reunião do partido”. Cada pelotão forma uma célula do Partido Comunista Colombiano Clandestino (PC3). Por grupos de dez ou doze, debatem uma leitura coletiva de uma coluna do comandante-chefe da organização, Timoleón Jiménez, no Voz, o jornal do PC3. Henry anima uma das assembleias. Ele tem 31 anos (treze de guerrilha) e demonstra um domínio da oralidade que o destaca dos demais. Com entusiasmo, estimula seus companheiros de armas a tomar a palavra e expressar suas opiniões. Um por um, em geral com grande timidez, eles levantam-se e expõem suas considerações. Em um tom monótono, as intervenções se encadeiam e se parecem, sem nenhuma contradição; há pouco ou nenhum debate de ideias, nenhuma proposta divergente. A tomada da palavra se resume de forma geral a uma paráfrase das ideias principais do texto estudado. Sem dúvida, o nível desigual de educação política entre os mais experientes e os jovens recrutados explica em parte a ausência de trocas mais profundas, além da timidez de falar em público. No fim da manhã, um grupo de guerrilheiros à paisana deixa o acampamento para seguir a pé para uma assembleia em uma comunidade rural da região. Cerca de cinquenta camponeses se abrigam sob o teto de um celeiro, em meio a uma pradaria, para discutir os problemas da comunidade. Em meio a gritos de crianças e latidos de cachorros, o presidente da assembleia introduz a sessão e anuncia a ordem do dia. Depois de algumas questões relacionadas a finanças e organização, passam a palavra às Farc, que pacientemente aguardavam ao lado. Aníbal se ergue e propõe em primeiro lugar responder a perguntas. As principais são sobre o processo de paz em curso. Um camponês interpela: “O que vai acontecer quando vocês assinarem o acordo de paz? Quem nos protegerá? Se o paramilitarismo continuar, então nós, os civis, teremos de pegar em armas!”. Com um sorriso entre os lábios, Aníbal responde: “É exatamente o que fizemos há mais de quarenta anos. Pelas mesmas razões”. Ele sublinha: “As condições reais da paz precisam existir, senão não haverá acordo final, podem ter certeza”. Leónidas, encarregado da propaganda da Frente, se levanta. Carismático, avisa ao público: “O fim da guerra não significa a vitória. Outra batalha vai começar. As multinacionais vão aparecer para tentar se apropriar do rio, dos campos, das florestas de vocês. Será preciso muita organização para se defender. Um dos problemas que nos ameaça, por exemplo, é a Lei Zidres”. Essa lei, denunciada por diferentes vozes da esquerda, favorece a instalação de empresas privadas em zonas rurais. De todos os combatentes com quem conversamos, Leónidas e Aníbal, ambos quarentões, são os únicos que militaram na Juventude Comunista (Juco) antes de se engajarem na insurreição armada. A habilidade oratória e o conhecimento profundo da esfera política vêm sem dúvida dessa experiência. Quando terminaram suas falas, cumprimentaram a assembleia e se retiraram. No caminho de volta ao acampamento, assistimos aos preparativos que anunciam a festa da noite. Na tenda central, um grande estandarte diz “Bem-vindos à paz”, ao lado dos rostos de Manuel Marulanda Vélez, fundador histórico das Farc, e Raúl Reyes, membro do secretariado do estado-maior central (ambos morreram em 2008 – o primeiro, de morte natural, e o segundo, em um bombardeio). Para o jantar, arepas e uma bebida de chocolate. Por volta das 19 horas, cerca de cem guerrilheiros se reúnem. Como mestre de cerimônia, Henry anima essa hora cultural, enquanto voluntários cantam, fazem repentes, recitam poemas ou contam piadas. O ambiente é de diversão. Apenas os fuzis pendurados nos combatentes lembram a realidade do conflito. Enfim, as cadeiras são colocadas em um canto para abrir espaço para a pista de dança. Até meia-noite, canções animadas ecoam em meio ao silêncio da floresta. “Vai dizer que as Farc o sequestraram?” Segunda-feira, 4 de julho. A chuva lavou as marcas dos passos de dança da noite anterior. Depois do café da manhã, o comandante reúne a totalidade dos guerrilheiros ali presentes; eles estão em fila, com cabelo penteado e boina, na clareira. É o momento de saudação à bandeira. Sob o sol já quente, uma centena de uniformes se alinha em diversas filas. Apresentação das armas, marcha militar: os combatentes se aplicam a responder com diligência às ordens do chefe. Três deles se destacam das filas; eles seguram uma bandeira dobrada, que logo é pendurada no mastro improvisado para a ocasião. Uma vez hasteado, o pano sacode ao vento e se desdobra no símbolo das Farc sobre as cores da bandeira colombiana, sob o olhar atento dos presentes. O hino da guerrilha ecoa por dois alto-falantes. “Antes da visita, você tinha medo de nós? Quando você voltar para a França, vai dizer que as Farc o sequestraram?”, brinca o jovem Franki, de 24 anos (oito de guerrilha). Respondemos que sim para alimentar a brincadeira. O ambiente torna-se solene outra vez quando, durante nossa festa de despedida, Leónidas evoca o desafio do processo de paz e o “caráter universal” da luta dos comunistas e das Farc. “Venceremos!”, conclui ele no meio da tropa. Uma chuva torrencial brinda a última noite no acampamento. A algumas semanas ou meses do que se anuncia como o fim de um conflito de mais de cinquenta anos, sem dúvida seria presunçoso tentar adivinhar como se darão os acontecimentos. A transição da vida militar à vida civil não é o único desafio que as Farc deverão enfrentar. A passagem de um ambiente totalmente voltado ao coletivo e ao grupo, para o contexto individualista que reina nos grandes centros urbanos, ameaça também desestabilizar as pessoas que encontramos aqui. “Fomos demonizados pelos meios de comunicação, mas, com as negociações de paz, as pessoas aprenderão a nos conhecer”, prevê Figueroa. E os guerrilheiros, será que eles conhecem mesmo o mundo em que estão prestes a entrar?
Loïc Ramirez
Loïc Ramirez é jornalista e autor de La Rose assassinée [A rosa assassinada], Notes de la Fondation Gabriel Péri, Paris, 2015Ilustração: Daniel Kondo 1 Ler Maurice Lemoine, “Qui a peur de la vérité en Colombie?” [Quem tem medo da verdade na Colômbia?], Le Monde Diplomatique, dez. 2015. 2 Cada bloco é composto de pelo menos cinco frentes, e, cada frente, de mais de uma centena de unidades. 3 Ler Laurence Mazure, “Dans l’inhumanité du conflit colombien” [Na desumanidade do conflito colombiano], Le Monde Diplomatique, maio 2007. 4 Ler Hernando Calvo Ospina, “Aux frontières du plan Colombie” [Nas fronteiras do Plano Colômbia], Le Monde Diplomatique, fev. 2005. |
03 de Agosto de 2016 |
Palavras chave: Colombia, américa latina, paz, farc, querrilha, cuba, juan manoel santos |
quinta-feira, 13 de outubro de 2016
Le Monde: Esperando a paz com os guerrilheiros das Farc
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