Para o organizador da obra, José Rivar Macedo, todo o conhecimento produzido pelo Ocidente sobre a África corresponde a ‘formas de predação’
Com o “modesto” objetivo de apresentar as principais linhas de pensamento de autores africanos, o livro O pensamento africano no século XX reúne textos de dezesseis especialistas brasileiros que apresentam um panorama geral da intelectualidade africana no século passado.
“Conforme apontaram estudiosos eminentes, o conhecimento produzido pelo Ocidente sobre a África correspondeu a formas de predação em diversos níveis, e a restituição da autonomia plena implica na devolução aos africanos de sua capacidade de resolver seus próprios problemas, de gerir suas riquezas, de conhecer o seu passado, discutir o seu presente e esboçar as linhas de seu futuro”, afirma o organizador da obra, o professor da UFRGS José Rivair Macedo.
O anti-colonialismo, a descolonização e o pós-colonialismo da África são alguns dos temas essenciais tratados por esses pensadores africanos, que, participando dos movimentos de libertação do continente, foram chefes de Estado, filósofos, escritores, historiadores e cientistas sociais. Entre eles, estão nomes como Léopold Sédar Senghor, Joseph Ki-Zerbo, Frantz Fanon, Achille Mbembe e Paulin Hountondji.
Em entrevista à CULT, o professor falou sobre as raízes e a importância do movimento.
CULT – A África é um continente com mais de 50 países. Dentro dessa diversidade cultural, religiosa, política e social, como você definiria um pensamento africano?
José Rivair Macedo – É muito difícil formular uma definição precisa do que seria o “pensamento africano”. As conceituações são forçosamente limitadas e quase sempre restringem as possibilidades de apreensão da complexidade do real. Em última instância, não existe um “pensamento africano”, como também não existem um “pensamento europeu”, um “pensamento ocidental” ou um “pensamento brasileiro”. Entretanto, se a diversidade é o que prevalece na base das experiências locais e na originalidade das vivências compartilhadas pelas dezenas de organizações estatais e pelos inumeráveis grupos etnolinguísticos espalhados pelo continente, nos últimos séculos o processo de unificação planetária promovido pelo capitalismo ocidental classificou, hierarquizou e criou formas de domínio de caráter econômico, político e cultural e forçou a aproximação entre pessoas, grupos e instituições originalmente distintas, gerando pautas de reivindicação comuns. Então, embora a ideia de um “pensamento africano” guarde em si uma parcela de artificialidade, ela passou a existir gradualmente a partir do momento em que pessoas nascidas em diferentes partes da África – e mesmo fora dela, na Diáspora negra – passaram a reivindicar para si uma identidade ancestral comum.
Quando isso começou?
É muito provável que isso tenha acontecido pela primeira vez no princípio do século 16, quando o erudito afro-muçulmano de origem marroquina chamado Hassan al-Wazzan (c. 1486- c. 1535) foi levado prisioneiro para as cortes da atual Itália, onde se tornou secretário do papa Leão X e, com o nome católico de “João Leão o Africano” escreveu a primeira obra de caráter enciclopédico sobre o continente, a Description de l’Afrique (1530), que até o século 18 seria uma referência obrigatória de leitura sobre o Magreb e a África subsaariana pelos letrados europeus. Séculos depois, na primeira metade do século 18, no mesmo contexto em que adeptos do ideário iluminista viam os nativos do continente africano como seres desprovidos de plena humanidade, relegando-os a estágios inferiores na escala evolutiva ou negando-lhes a capacidade de gerir de modo autônomo sua existência, um homem nascido na antiga região da Costa do Ouro (atual república de Ghana), chamado Anton Whilelm Amo (1703-1753), formou-se em Filosofia e lecionou em universidades germânicas de Halle, Wittemberg e Iena, adotando para si o nome de Amo Guinea Afer, isto é, “Amo guineense, o africano”. Vê-se então que, nesses casos, o genitivo objetivo “africano” resulta de pertencimentos construídos, reivindicados. Tendo isso em mente, e em conformidade com os argumentos do filósofo marfinense Paulin Hountondji, um dos intelectuais enfocados em nosso livro, defino como “pensamento africano” um conjunto de textos escritos por intelectuais que se afirmam como africanos, elaborados com a finalidade de expressar ou interpretar a posição de seus congêneres em relação ao mundo. Este se distingue dos saberes inerentes aos sistemas religiosos tradicionais, calcados na oralidade e na ancestralidade; do pensamento negro diaspórico, com que parcialmente se identifica; e do pensamento de tipo eurocêntrico, difundido no continente no período de dominação colonial, ao qual, aliás, muitas vezes se opõe ao oferecer alternativas endógenas de explicação dos fenômenos sociais, políticos, econômicos e culturais.
Há um elemento, além da geografia, que une os pensadores trabalhados no livro, uma temática que você percebe como o centro das preocupações desses intelectuais?
Ao contrário do que ocorreu nos séculos anteriores da longuíssima história da África, quando os africanos eram plenamente senhores de seu destino, no século 20 seus povos viveram durante décadas sob dominação colonial, lutaram pela autodeterminação e foram forçados a reconstituir sua existência no contexto da descolonização e da reorganização político-social do período pós-colonial. A fratura colonial e seu duplo, o racismo, produziram aproximações potencialmente inovadoras entre africanos e afro-americanos, e movimentos de valorização cultural e de afirmação político-social lastreados na ideia de uma solidariedade transcontinental entre os povos negros – em primeiro lugar o Pan-africanismo, e os conceitos de “personalidade africana” e “negritude”. Alguns intelectuais estudados no livro participaram ativamente da história política, liderando movimentos de libertação e ajudando a criar nações (Frantz Fanon, Amilcar Cabral), certos deles alcançaram a posição de chefes de Estado (Léopold Sédar Senghor, Kwame Nkrumah). Outros são filósofos (Marcien Towa, Paulin Hountondji, V. Y.Mudimbe, Severino Ngoenha), historiadores (Joseph Ki-Zerbo), escritores (Wole Soyinka) ou cientistas sociais (Cheikh Anta Diop, Achille Mbembe) que ganharam notoriedade ao propor explicações sobre a condição dos africanos no cenário internacional, sobre as alternativas encontradas por eles para criar instituições políticas e sociais modernas, rompendo ou não com as formas tradicionais de organização vigentes em todo o continente.
Não há o perigo de homogeneizar essa diversidade ao se falar em ‘pensamento africano’?
Em face do dilema diante da escolha entre a unidade e a diversidade, seguimos a posição do eminente cientista social Elikia Mbokolo, da École dês Hautes Études en Sciences Sociales, para quem, na África como em todo lugar, a história é marcada por processos dinâmicos, com continuidades, adaptações e rupturas. Alguns desses processos aproximam povos e sociedades, outros produzem identidades locais, intercâmbios e intensa circulação de estilos de vida, crenças e ideias, modelos de organização sócio-política. Unidade e diversidade são elementos intercambiáveis para a explicação do real africano, e a escala que melhor convém escolher para interpretá-lo – única, da África, ou múltipla, das Áfricas -, depende dos objetivos pretendidos. Quanto mais o foco se deslocar do exterior para o interior do continente, mais prevalecerá a diversidade, a singularidade e a especificidade étnicolinguística, religiosa, cultural, regional. Mas convém não esquecer que, no período contemporâneo, essas dinâmicas locais são, a todo o instante, afetadas em virtude de processos de unificação econômica e políticas exteriores a que estão ligados fenômenos de extroversão desenvolvidos pelas elites africanas associadas ao capital internacional. De modo que, seja qual for a escala de análise, as formas de expressão do ser africano são eminentemente periféricas, subalternas, enquadradas segundo critérios de distinção étnico-racial impostos de fora para dentro. Entendo que o perigo da homogeneização ronda as interpretações generalizantes, globalizantes, pouco propensas a considerar a complexidade e o papel dos contextos regionais e locais, mas o acento na diversidade guarda também seus riscos, e num ensaio famoso Kwame Nkrumah denunciou o perigo da balcanização do continente como o mais perverso efeito do neocolonialismo. Gosto particularmente da posição defendida pelo escritor Chinua Achebe, citada em epígrafe num dos capítulos do livro de Anthony Kwame Appiah intitulado Na casa de meu pai (1997), quando o romancista diz: “Sou um escritor ibo, porque essa é minha cultura básica; nigeriano, africano e escritor… Não, primeiro negro, depois escritor. Cada uma dessas identidades efetivamente invoca certo tipo de compromisso de minha parte. Devo enxergar o que é ser negro – e isso significa ser suficientemente inteligente para saber como gira o mundo e como se saem os negros no mundo. É isso que significa ser negro. Ou africano – dá no mesmo: que significa a África para o mundo? Quando se vê um africano, que significa isso para o homem branco?”
O livro ajuda a colocar os povos africanos como protagonistas da história?
Espero que sim. Já se tornou lugar comum considerar a África como o “berço da humanidade”. Poucos hoje se dão conta que há sessenta anos tal assertiva seria tomada como um disparate, um absurdo. As publicações de Cheikh Anta Diop, a começar por Nações negras e cultura (1954) inovaram ao introduzir o debate sobre a anterioridade africana na História da Humanidade e ao reivindicar o vínculo matricial entre o Egito e a África negra. Envoltas em polêmica e seguidas de intenso debate, as ideias diopianas exerceram forte influência na tendência interpretativa conhecida como afrocentrismo, que, por sua vez, foi e continua a ser fundamental como base de sustentação teórico-conceitual dos movimentos negros americanos. Independente do quanto tenham, ou não, lastro em dados empíricos, do quanto comportem mais de ideologia do que de conhecimento cientificamente comprovado – e aqui a definição de “ciência” esbarra em pressupostos que não são consensuais -, a recepção e difusão do ideário afrocentrista reveste-se de grande eficácia simbólica, cultural, social. Porem, se a defesa da anterioridade, especificidade ou autenticidade africana correm o perigo de recair em essencialismos e em contra-discursos, o reconhecimento das dinâmicas africanas de longa duração defendidas nos anos 1960-1970 por Joseph Ki-Zerbo abriram outras possibilidades ao reconhecimento do protagonismo dos povos africanos na história. Os ritmos, temporalidades, circularidade e entrecruzamentos que dão sentido às diversas experiências históricas do continente provam a autonomia de suas instituições originárias e sua enorme capacidade de adaptação e resistência. Uma das marcas distintivas dos africanos no mundo tem sido sua propensão para lidar com diferentes signos, conferindo-lhes sentidos reconfigurados, recompondo-os de acordo com o contexto e com a situação em que se veem inseridos, dentro e fora do continente.
Normalmente a Grécia Antiga é colocada como o berço da filosofia. Produções intelectuais, contemporâneas aos filósofos antigos, de outras partes da África, como do Egito, muitas vezes são ignorados quando se fala do surgimento da filosofia porque não carregam o racionalismo ocidental. Você acha que ainda há esse processo de desvalorização da produção intelectual não eurocêntrica?
Seria preciso problematizar nossa ideia de “normalidade” e admitir o quanto nosso desconhecimento de outras culturas e formas de pensamento decorre de limitações inerentes a nossa condição subalterna. Desde o título de uma de suas obras, o filósofo Paulin Hountondji formula a questão que em minha opinião deveria ser central: La rationalité, une ou plurielle? (A racionalidade, una ou plural?) (2007). O que tem sido colocado em discussão é a eleição da filosofia e do logos helênico ressignificado em ambiente judaico-cristão como paradigma universal de conhecimento. Para o filósofo e filólogo V. Y. Mudimbe, da Universidade de Duke, a gnose africana resulta de sucessivas interações entre tradições, formas de conhecimento nutridos pela tradição oral, e o saber formal de tipo ocidental. Também Hountondji tem desenvolvido diversos seminários e orientado projetos de investigação sobre o que ele denomina de “conhecimentos endógenos”, em que o saber formal e o saber-fazer, o escrito e o oral, a tradição ancestral e a ciência não são colocados em confronto, e sim em interação. O importante é ter em mente que os processos de aquisição, acumulação e transmissão de conhecimento não são isolados, mas se encontram em constante circulação, sendo apropriados e utilizados de acordo com diferentes interesses e finalidades.
Qual é a importância deste livro?
A elaboração de uma obra como a que aqui se discute assume de imediato uma posição em face do etnocentrismo e reveste-se de caráter anti-racista. Não quer dizer que apenas pessoas originárias da África devam ter exclusividade nas interpretações formuladas sobre sua realidade, mas que é importante garantir a elas espaço de enunciação, de modo a conhecermos diretamente sua palavra, seus pontos de vista. Conforme apontaram estudiosos eminentes, entre os quais o historiador nigeriano Toyn Falola, o conhecimento produzido pelo Ocidente sobre a África corresponde a formas de predação em diversos níveis, e a restituição da autonomia plena implica na devolução aos africanos de sua capacidade de resolver seus próprios problemas, de gerir suas riquezas, de conhecer o seu passado, discutir o seu presente e esboçar as linhas de seu futuro, enfim, implica em lhes conferir “poder de definição”. Nosso livro não pretende atingir o público acadêmico, menos ainda os especialistas em Estudos Africanos, para quem a maior parte dos assuntos tratados é familiar. Alguns intelectuais aqui estudados (Léopold Senghor, Joseph Ki-Zerbo,Frantz Fanon, Amílcar Cabral, Severino Ngoenha) tem sido mais ou menos estudados em dissertações e teses, enquanto outros (Kwame Nkrumah, Marcien Towa, Cheikh Anta Diop, Paulin Hountondji, V. Y. Mudimbe, Achille Mbembe) carecem de estudos especializados em nosso país. O livro tem o objetivo modesto de apresentar as principais linhas de rumo da obra desses autores, cujos textos são essenciais para a compreensão do colonialismo, anti-colonialismo e pós-colonialismo na África.
Lançamento O pensamento africano no século XXQuando: Dia 09/02, às 19h
Onde: Livraria da Editora Expressão Popular, Rua Abolição, 201 – Bela Vista – SP
Onde: Livraria da Editora Expressão Popular, Rua Abolição, 201 – Bela Vista – SP
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)
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