pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO: O que perde a juventude sem Filosofia em sala de aula?
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sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

O que perde a juventude sem Filosofia em sala de aula?


O que perde a juventude sem Filosofia em sala de aula

Tornar opcional o ensino de Filosofia corresponde a tirar dos estudantes a disciplina mais adequada para ajudá-los a pensar sobre o que os torna verdadeiramente humanos


Na próxima semana o Senado tratará da Medida Provisória referente à reforma do Ensino Médio. Na MP está em questão tornar opcional o ensino de Filosofia (bem como de outras disciplinas) e, como o Senado tem a prerrogativa de propor emendas à MP, ainda vale tentar obter alguma clareza no debate, apostando na capacidade de lucidez e ponderação dos senhores senadores.
Certamente uma das razões para desobrigar do ensino de Filosofia é uma razão econômica, embora seja irrisória a quantidade de dinheiro público que será poupada com o corte de professores e de aulas dessa disciplina (maior será o dano social à vida dos profissionais e dos estudantes). Outra razão é burocrática e refere-se à menção explícita de nomes de disciplinas na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Outra razão, enfim, é mais séria e, vistos os debates que têm ocorrido em nosso país durante os últimos dois anos, ela parece ser o principal motor para desobrigar do ensino de Filosofia: trata-se de uma razão sócio-ideológica que diz respeito à preocupação de setores da sociedade brasileira com a “doutrinação comunista e ateia” que seria praticada nas aulas de Filosofia.
Dito dessa maneira, tudo parece uma caricatura. Na realidade, porém, não há nada de caricatural. Essa razão foi levantada por vários deputados e senadores, além de representantes da sociedade civil. Professores de Filosofia seriam marxistas, militantes petistas, anticristãos, adeptos do casamento homossexual, abortistas, anticapitalistas, contrários à meritocracia e outras coisas mais.
Assim, para além das simpatias e dos ódios, é necessário e urgente perguntar: esse diagnóstico corresponde à realidade? Seriam todos os professores de Filosofia comunistas e ateus? Seria realmente um ganho para a história mental de nosso país tornar opcional o ensino de Filosofia?
Num momento histórico em que muitas pessoas redescobrem a importância do pensamento filosófico (quando mesmo grandes empresas têm valorizado profissionais dotados de conhecimentos filosóficos, porque são capazes de análises mais globais e de pensamentos mais complexos), urge perguntar por que o Brasil pretende frear a ampliação da cultura filosófica em vez de acelerá-la? Aliás, outros países da América Latina também têm puxado o mesmo freio, o que faz pensar que a verdadeira razão para desobrigar do ensino de Filosofia talvez venha do medo de velhos fantasmas como o comunismo, a destruição do cristianismo, o ataque contra os valores da família etc.
Um parêntese histórico curioso: os partidos de direita e de centro-direita fazem hoje o que setores da esquerda fizeram no passado e fazem também atualmente. Refiro-me a todos aqueles de esquerda que são contra o ensino de Filosofia  porque, como dizem, “diante da falta de professores em alguns locais, quem dará as aulas serão padres, pastores, historiadores e gente com qualquer diploma universitário”. Hoje os membros da direita dizem que quem dá as aulas são “marxistas, comunistas, petistas, ateus, gays, lésbicas e assim por diante”.
Indo ao núcleo dessa preocupação, é urgente perguntar se esse diagnóstico corresponde à realidade. E a resposta para essa questão é redondamente negativa.
Tenho conhecimento de causa, não apenas pelo trabalho na universidade em que leciono, mas também pela observação in loco em vários pontos do Brasil. Atendo-me apenas ao ponto talvez mais sensível, o aspecto religioso, posso afirmar que o maior número de professores de Filosofia do Ensino Médio é de pessoas religiosas ou agnósticas (pessoas que não se dedicam nem a afirmar nem a negar a existência de Deus e têm grande respeito pelas pessoas religiosas). Talvez por motivos sociais (o crescimento das religiões cristãs evangélicas e de setores do cristianismo católico, do budismo, das religiões africanas e outras religiões), o fato é que a maioria dos professores nos vários pontos que tenho visitado de norte a sul é uma maioria religiosa ou respeitosa da religião. Do ponto de vista político, muitas delas são inclusive de direita ou de centro-direita, muito longe de serem petistas.
Obviamente, quando faz parte do programa curricular o estudo de pensadores ateus, todos são obrigados a lê-los, inclusive os professores religiosos. Nesse aspecto, o que conta é a importância desses filósofos para a história do pensamento; não se pode querer evitá-los como se tivéssemos o direito de “proteger” os estudantes ocultando deles a verdade histórica. Ademais, a prática de ler pensadores ateus pode converter-se em um excelente exercício de reflexão que pode ajudar os estudantes a amadurecer sua fé religiosa, pondo-a em teste, e mesmo a intensificá-la.
Queremos ou não queremos formar cidadãos livres, responsáveis e construtores de uma sociedade respeitosa e democrática? Se esse é um dos objetivos centrais da educação, filtrar aquilo que chegará aos estudantes, deixando a Filosofia em segundo plano e ao gosto das possibilidades “opcionais”, significa atacar a única disciplina que, no contexto atual, levanta a pergunta pelo sentido dos saberes, das práticas, das artes, da religião, enfim, dos vários aspectos da existência.
O caso do falso debate entre criacionismo eciência
Para dar um exemplo mais concreto do bem que a formação filosófica pode fazer mesmo a pessoas religiosas, evoco aqui uma experiência que vivi quando lecionei no Ensino Médio (e que constantemente se repete na universidade): um grupo de estudantes estava muito angustiado depois de algumas aulas de Biologia, pois haviam estudado a teoria do Big Bang ou do que se chama em geral de “a grande explosão” que teria ocorrido nos inícios do Universo, e o professor de Biologia teria afirmado que a teoria do Big Bang provava a inexistência de Deus.
A ocasião não podia ser melhor para que eu atuasse como professor de Filosofia. A primeira coisa que propus em aula foi estudar o modo como se constrói o conhecimento em Biologia e nas ciências em geral, avaliando sobretudo a base que permite construir conceitos como iníciocausafimfinitoinfinito, além de debater o que significa uma teoria e mesmo a verdade em ciência. Alguns estudantes quiseram logo tirar a conclusão de que o professor de Biologia estava errado, porque perceberam não apenas que nenhum cientista pode ter a pretensão de dizer que “viu” ou experimentou a infinitude do Universo (mesmo que ele seja infinito), mas também que não há a menor condição de provar cientificamente a inexistência nem a existência de um ser criador. Mesmo que haja evidências em um sentido ou outro, nunca haverá provas propriamente ditas. Outros estudantes, porém, estavam realmente abalados, porque percebiam que o discurso científico é extremamente bem construído e baseia-se em dados que podem ser debatidos e testados por todos os que se instruem nas regras desse discurso.
Depois de várias aulas de reflexão, de leitura de textos de Filosofia da Ciência, de Teoria do Conhecimento e de Filosofia da Religião, o ganho foi enorme, principalmente porque a conclusão mais adequada e mais lúcida era a de que a teoria do Big Bang não anula a fé na criação e que tampouco a fé na criação impede de adotar a teoria do Big Bang.
O dado comum percebido por todos era o de que o debate “criacionismo versus eternidade ou infinitude do Universo” é um falso debate, fundamentado no erro de tomar o criador do Universo por uma “parte” do mesmo Universo (e, por conseguinte, passível de ser provado ou não). Tanto os estudantes religiosos se apegavam a uma visão demasiado infantil do criador, como o professor de Biologia também era imaturo ao achar que sua briga era com aquele criador infantil. O erro conceitual do professor era explícito: ele tratava o ser divino como uma parte do mundo, querendo submetê-lo às leis da Física, da Química e da Biologia, em vez de entender que o ser divino, para ser tratado adequadamente, deve ser visto como transcendente ao mundo e suas leis.O mesmo erro era cometido pelos estudantes, pois, ao defendê-lo, o reduziam a uma parte do mundo e traíam sua transcendência.
Trocando em miúdos, o Universo pode ter surgido de uma explosão inicial, pode ter sempre existido, pode caminhar para um fim ou para a eternidade. Nenhuma dessas teorias impede pensar que um ser divino criador está no fundamento do Universo. Nunca será irracional crer que há um porquê para o dinamismo cósmico, pois provar a irracionalidade dessa crença exigiria provar o absurdo de seu fundamento mesmo, o ser divino, que, por definição, não é parte do mundo, não estando, portanto, sujeito a nenhum tipo de prova. Crer ou não crer são atitudes que envolvem não apenas o pensamento, mas também o sentimento (especificamente o sentimento religioso, na linha do que diziam Friedrich Schleiermacher e Rudolf Otto) e a vontade.
Relegar o ensino de Filosofia à categoria de “opcional” é diminuir ou anular a possibilidade de os estudantes desenvolverem exercícios desse tipo. É construir uma visão formativa em que os saberes técnicos têm prioridade, caindo-se na ilusão de que mais aulas de Português e Matemática vão realmente fazer os estudantes pensar e exprimir-se com correção.
Nós, brasileiros de hoje, temos uma grave responsabilidade pelo tipo de mente que desejamos formar nas crianças e jovens. São eles que continuarão a construção do Brasil. Queremos um futuro com pessoas de mente aberta, respeitosa e madura ou de mente fechada, medrosa, imatura e agressiva? Caso o estudo de Filosofia se torne opcional, é óbvio que alguns estudantes continuarão a ter acesso a ela, porque frequentarão as melhores escolas; mas a imensa maioria sequer ouvirá falar dela. O que sentimos diante desse quadro? Vamos dar de ombros e deixar acontecer a construção de um país desigual, autoritário, exclusivista, violento e mentiroso?
Juvenal Savian Filho é filósofo e teólogo, doutor pela Universidade de São Paulo e docente da Universidade Federal de São Paulo

(Publicado originalmente no site da revista Cult)

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