Tomás Chiaverini
POUCO ANTES DAS 16h30 de terça-feira, a dona de casa Vitória Regina Penna, de 19 anos, escutou o marido gritar no meio da rua: “corre que eles estão atirando”. Ela conta que tentou obedecer, mas sentiu uma pancada na nádega, acompanhada de um choque, seguido de muita dor. Depois veio outra pancada, as pernas falharam, e Vitória caiu. Cercada pela multidão que corria desorientada, em meio a berros e bombas, viu o sangue brotar da ferida na coxa. Ainda sem entender direito o que estava acontecendo, lembra que tentou pedir ajuda a uma viatura da Polícia Militar do Recife, mas foi ignorada. Acabou amparada pelos organizadores da manifestação que a colocaram em um carro e a levaram para o Hospital da Restauração, onde deu entrada às 16h50. Ali, foi informada de que tinha sido atingida por dois tiros.
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Radiografia de Vitória Penna em que se vê bala alojada em sua bacia.

Foto: Arquivo Pessoal
Vitória não foi a única vítima da batalha campal que, na tarde desta terça-feira, tomou conta da avenida Agamenon Magalhães. Um dos principais corredores urbanos de Recife, a via foi tomada por uma confusão de bombas, gás lacrimogêneo e disparos de arma de fogo. Há relatos de uma segunda pessoa atingida por munição letal (ainda que não gravemente), e cerca 50 de feridos. Um deles segue internado, com hemorragia interna e costelas quebradas. Há vários relatos de fraturas. Uma das balas atingiu Vitória na perna, entrou e saiu.  Outra atingiu a nádega, se alojou no osso da bacia e, segundo o médico, deverá ficar para sempre por ali, a não ser que o corpo expulse por conta própria.
A Secretaria de Defesa Social, responsável pela PM, disse que não se pronunciaria sobre o incidente e não confirmou o uso de munição letal. O hospital afirmou não poder passar informações sobre estado clínico de pacientes. Mas The Intercept Brasil teve acesso ao raio-x de Vitória – em que se vê claramente o projétil alojado – e à ficha de esclarecimento do hospital, onde, como diagnóstico provável, consta: “projétil de arma de fogo em coxa e nádega”.
O estopim da batalha ocorreu na sede da Secretaria Estadual de Habitação. Segundo membros do MTST, a instituição desmarcou uma reunião sem aviso prévio, o que teria levado a um escalonamento da tensão. Já a secretaria se manifestou por nota, alegando que as reivindicações do movimento haviam sido recebidas, que o governo mantém um diálogo com os movimentos sociais, e que, mesmo assim, houve depredação do prédio por cerca de 200 manifestantes.
As negociações mais recentes entre o MTST e o governo de Pernambuco vinham se desenrolando desde de sábado, quando houve tentativa de remover 1.200 famílias da ocupação Carolina de Jesus, no bairro do Barro. Agora, diante da reação da Polícia Militar, que mantém um batalhão no mesmo prédio da Secretaria de Habitação, a tendência é que aumente a fervura.
Para o  coordenador do MTST, Guilherme Boulos, o que se viu em Pernambuco foi o caso mais grave de criminalização de movimentos sociais desde 2014, nas manifestações contra a Copa do Mundo do Rio. “Foi uma atrocidade, num nível muito grave, que a gente não via há algum tempo”, disse. Ainda segundo ele, contudo, a conduta da PM não chega a surpreender, pois faz parte de uma tentativa mais ampla, de desmobilizar as manifestações.
“Em regra, a criminalização dos movimentos sociais tem acontecido amplamente, com ações repressivas, e é reflexo de um governo que não constrói política para atender às demandas por direito social e por isso as trata como caso de polícia.”
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Ficha de esclarecimento do hospital indica “projétil de arma de fogo em coxa e nádega” de Vitória Penna.

Foto: Arquivo Pessoal
Após o choque de terça-feira, dez pessoas foram presas. Elas passaram por uma audiência de custódia na tarde de quarta-feira, no Fórum de Recife, onde foram recebidas por centenas de manifestantes. Segundo o Tribunal de Justiça, elas responderão em liberdade pelos crimes de dano qualificado, resistência à prisão e formação de quadrilha.
Vitória não está entre os indiciados. Passou a noite no hospital e teve alta às 9h21 de quarta-feira. Ela diz que não tem ligação direta com o MTST e que havia ido ao ato na esperança de conseguir uma casa para viver com o marido e com as duas filhas – hoje ela mora com a sogra. A manifestação de terça-feira foi a primeira de que participou na vida. E provavelmente a última.
(Publicado originalmente no site do Intercept Brasil)