A Polícia Federal chega à casa do reitor da Universidade Federal de Minas Gerais, nas primeiras horas da manhã, para cumprir uma ordem de condução coercitiva, solicitada pela própria PF e autorizada pela juíza Raquel Vasconcelos Alves de Lima, apesar do parecer contrário do Ministério Público, que não viu indícios suficientes na investigação para determinar tal medida de força, desde que os indiciados sequer haviam sido comunicados das acusações que pesavam sobre eles e muito menos haviam sido convocados para depor espontaneamente. O reitor Jaime Arturo Ramires é surpreendido saindo do banho com uma toalha enrolada na cintura. Dirige-se então aos policiais dizendo que iria se trocar e logo retornaria, quando escuta a seguinte frase dita por um dos agentes da Polícia Federal: – Você não tem mais direito a privacidade, não, rapaz!
Eu fico imaginando o prazer com que o policial disse essa frase. Não há prazer maior do que humilhar aquele que no fundo você considera superior a você. O complexo de inferioridade se torna ressentimento que se torna raiva, agressão, desejo de diminuir, humilhar, rebaixar o outro. Nas operações policiais que se sucedem nas universidades, (ontem novamente a Universidade Federal de Santa Catarina foi invadida) a desforra dos ressentidos fica patente. No caso da operação desencadeada contra dirigentes, ex-dirigentes e servidores da UFMG são vários os indícios de que se trata de uma operação atravessada por ressentimentos, complexos e preconceitos que são muito presentes no interior das forças policiais e no Judiciário brasileiro.
As pessoas que possuem uma visão conservadora do mundo, que têm uma visão que costumamos nomear de direita, se pautam por preconceitos arraigados e históricos contra as universidades, vistas como antros esquerdistas, como local de comunistas, quando não vistas como lugar de práticas de contravenção e atentado a ordem e aos bons costumes. Os anos de ditadura militar, que foi responsável por solidificar uma visão autoritária de mundo, no interior das forças policiais, em todos os níveis, consagrou, também, uma visão negativa sobre as universidades, desde que foi do interior delas que partiu grande parte da resistência à ditadura. Foram estudantes e professores universitários, tanto quanto de outros níveis de ensino, que capitanearam a luta pela anistia, pela democratização do país. A morte do estudante Edson Luiz, no restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro, deu origem a uma das maiores manifestações contra o regime.
Da mesma forma que a ditadura solidificou uma visão negativa e até preconceituosa das forças policiais, no país, por parte dos defensores da democracia e de posições políticas de esquerda, a recíproca é verdadeira. Normalmente quem se identifica e procura essas carreiras dificilmente são pessoas com uma visão progressista de mundo, embora como em todas as corporações hajam exceções. O golpe abriu a oportunidade para que ressentimentos guardados, nos vários anos que fomos governados por um partido e um governo vistos como de esquerda, pudessem se manifestar. Membros da Polícia Federal, já na ocasião das últimas eleições presidenciais, e quando das manifestações pelo impeachment da presidenta da República, violando proibições constitucionais e funcionais, se manifestaram nas redes sociais a favor da candidatura de Aécio Neves, postaram matérias e opiniões ofensivas a presidenta da República, a comandante máxima do país e da própria PF, chegando a utilizarem carros oficiais para participarem de manifestações políticas, sem terem sofrido nenhuma admoestação ou punição por parte da direção da corporação e do próprio Ministério da Justiça, que assistiu passivamente o descumprimento da legislação.
Começamos, portanto, desde esse momento, a viver sob o arbítrio de delegados e agentes, que se viram liberados para irem a desforra em relação ao que consideravam humilhações. Para muitas dessas pessoas o simples fato de ter que prestar obediência funcional a um governo e um presidente de esquerda já é visto como humilhante e fonte de ressentimento. A pretensa superioridade moral de quem é de direita em relação aos pervertidos morais da esquerda faz com que se pense que as hierarquias normais do mundo, que o próprio mundo está às avessas, já que os superiores moralmente são agora subalternos de gente imoral ou amoral. O moralismo, típico da direita, está na base das decisões judiciais que autorizam conduções coercitivas desnecessárias e voltadas para produzir o espetáculo.
Desmoralizar a universidade, os seus docentes e dirigentes, soa como uma revanche para o que consideram ser o desprezo com que aqueles que nela atuam têm pelas forças policiais e judiciais. Embora a maioria dos delegados e policiais, dos operadores do direito tenham passado pelas Universidades, foram ali, muitas vezes, vítimas de hostilidade e preconceito por suas posições conservadoras. Puderam acompanhar acontecimentos e fatos ligados à predominância de uma maior liberalidade e liberdade nas maneiras de agir, de existir, de se comportar, de falar, no meio universitário, que suas subjetividades conservadoras não admitiam, guardando dessas experiências uma maneira distorcida e rancorosa de ver a instituição universitária. O preconceito de que podem ter sido vítimas, se torna desejo de revanche, de vingança, que é levada a efeito com enorme prazer quando a oportunidade se oferece.
O episódio recente envolvendo as forças policiais e professores, alunos e dirigentes da Universidade Estadual da Paraíba, deixa explícita as tensões crescentes entre forças de segurança e o meio universitário. O fato de uma professora ter impedido uma aluna policial de fazer prova armada e fardada (o que prevê a legislação universitária, pois ela ao entrar na universidade entra como aluna e não como policial, além de que o porte de arma se torna uma ameaça a colegas e professores), gerou a revolta e intervenção de outros policiais. A confusão se deu, justamente, no curso de direito, já que a professora conhecedora da legislação apenas a estava aplicando. A resposta despropositada dos policiais, inclusive com tentativa de invasão do campus e nota de sua associação, nasce da percepção de que a atitude da professora se deveu, não ao cumprimento da legislação, mas a preconceito contra os policiais. Há uma percepção generalizada, que não deixa de estar assentada em dados da realidade, de que a Universidade não gosta de policial e, por seu turno, policial não gosta da Universidade, de seus professores e dirigentes, vistos como hostis, esquerdistas, transgressores e incentivadores de comportamentos imorais e associais (a presença do consumo de maconha, o tratamento respeitoso para com as minorias e as manifestações explícitas de amores homossexuais, são alguns dos elementos que corporificam uma visão distorcida e preconceituosa da universidade).
O episódio de Minas Gerais é significativo, também, porque se trata da judicialização e criminalização da construção do Memorial da Anistia. O revanchismo da ação é explícito. O deputado Jair Bolsonaro, um ex-militar, uma eterna viúva da ditadura de 1964, um participante entusiasta do golpe de 2016, um candidato a presidente da República de enorme audiência entre as forças de segurança e repressão no país, encarna bem esse eterno espírito de revanche. Para Bolsonaro, o fim da ditadura militar, a lei de anistia, o retorno dos ex-presos políticos à cena pública, a reparação dos danos que sofreram por parte do Estado, através de indenizações, soam como revanche em relação ao período da ditadura. Para ele, assim como para muitos de seus seguidores, ver uma ex-guerrilheira, ex-presa política na presidência da República soava como uma provocação, como uma humilhação, como uma derrota, como o atestado da desordem, de que o mundo dele estava de ponta cabeça. O ódio incontido, pelo fato da ditadura ter sido derrotada pela mobilização das forças que ela quis derrotar e fazer desaparecer, faz dele um ressentido e alguém capaz de elogiar publicamente torturadores que, como sabemos, ainda existem em meio as forças policiais do país. Se a tortura não pode ser mais física, há muita gente disposta à tortura mental, psicológica e moral, muita gente disposta a, como os torturadores, obter prazer, gozar com o sofrimento alheio, mesmo que seja apenas moral e psicológico, tanto no meio policial, como no meio judiciário.
O Memorial da Anistia, uma obra encomendada por um governo de esquerda, para simbolizar a vitória sobre a ditadura e o arbítrio, soa para essa gente como o símbolo de uma derrota que eles não querem admitir. No momento em que o golpe midiático-jurídico-parlamentar, perpetrado com o apoio das forças que foram derrotadas pelo movimento de redemocratização do país, do qual a anistia é um episódio fundamental, abre a possibilidade dessas forças do atraso adquirirem novamente liberdade de expressão e movimentação, a revanche não se faz esperar. Manchar a obra do Memorial da Anistia com a suspeita de corrupção, temática moralista a arrebanhar toda a direita, é uma forma de tentar destruir o simbolismo desse monumento e desqualificar a sua mensagem. Não estou defendendo que não se apurasse possíveis desvios de recursos, mas isso devia ser feito, como em todo processo, dentro do sigilo e do devido processo legal. A espetacularização de simples suspeitas deixa claro que o objetivo não é apenas o de apurar irregularidades, mas o de macular e desacreditar o símbolo de uma luta, da qual esses setores não se veem como partícipes, mas como derrotados.
O caráter revanchista e, até mesmo de provocação, da operação fica explícito na escolha do nome para batizá-la. A retirada de uma imagem presente na música de João Bosco e Aldir Blanc, O Bêbado e a Equilibrista, que na voz de Elis Regina, se tornou um dos hinos da luta contra a ditadura, uma canção indispensável em toda manifestação política das forças de esquerda no país, para dar nome a operação, batizada de “Esperança Equilibrista”, explicita o ressentimento e o rancor conservador que está na base da ação. Aldir Blanc tem sido um dos críticos mais duros do golpe que estamos vivendo e que é apoiado por amplos setores das forças de segurança e do Judiciário. Em colunas escritas para os jornais tem explicitado o caráter primário e farsesco de muitos dos personagens que vieram para o proscênio da vida pública após o impeachment ilegal. Os artistas, vítimas de preconceito histórico por parte das forças conservadoras do país, têm se manifestado, em sua maioria, (não podemos esquecer de que muitos apoiaram o golpe) contrários a onda reacionária que vêm atingindo as manifestações artísticas. Foram aqueles ligados à cultura e à educação que, desde o início do processo golpista, capitanearam a reação e a crítica ao processo de ameaça a democracia e ao Estado de Direito em que estamos mergulhados. O ódio à inteligência, à criatividade é uma tônica entre as elites brasileiras.
O ataque às universidades, a tentativa de desmoralização de seus dirigentes e professores, visa calar as vozes críticas ao processo golpista que estamos vivendo e, a médio prazo, criar o clima favorável à privatização dessas instituições. O silêncio do Ministro da Educação diante dessas agressões a autonomia universitária, como a que assistimos no campus da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, invadido por forças policiais estaduais, convocadas pela Polícia Federal, para dar proteção a uma atividade realizada por um grupo de direita, sem a autorização da reitoria, mostra que o governo golpista é conivente com essas tentativas de desmerecer a universidade perante a opinião pública. O episódio ocorrido na UFRN, explicita outras duas coisas: de que lado as forças policiais estão, quando se trata de posicionamento político e, ao mesmo tempo, que a universidade está longe de ser esse antro de esquerdistas, comunistas, maconheiros e bichas que a estereotipia do discurso reacionário e de direita veicula (a universidade é plural, contando com entusiastas defensores do golpe e com professores de direita e de extrema-direita, responsáveis, inclusive, por formar as subjetividades dos profissionais que hoje odeiam a universidade e querem agredi-la). Sabemos que, historicamente, os cursos de direito têm sido marcados pela presença de professores extremamente conservadores, a maioria deles operadores do direito, que levam sua visão de mundo para os futuros advogados, juízes, promotores.
Chamar a operação de “Esperança Equilibrista” foi uma clara provocação àqueles que, como a professora e historiadora Heloísa Starling, uma colega que dedicou sua vida à luta pelas causas populares, pela democracia, que enfrentou a ditadura, que fez muito pela Universidade como vice-reitora da UFMG, que deu importantes contributos ao estudo do golpe de 1964 (por isso mesmo sendo um alvo daqueles que são viúvas do golpe), que muitas vezes cantou essa canção como um hino de resistência ao obscurantismo que ameaça retornar ao país e que foi uma das vítimas da condução coercitiva. Fico imaginando, como ela deve ter vivido, esse retorno do recalcado, do que já havia vivido na época da ditadura, depois de anos de luta para consolidar a democracia no país.
Outro aspecto que chama à atenção e merece ser pensado e refletido, é o fato de que tanto no episódio trágico da Universidade Federal de Santa Catarina, que culminou com o suicídio do reitor Luiz Carlos Cancellier, como no episódio da Universidade Federal de Minas Gerais, as mulheres tiveram um enorme protagonismo. Em Santa Catarina, tanto quem solicitou a condução coercitiva, quanto quem a autorizou, foram mulheres, a delegada Erika Marena e a juíza Janaína Cassol Machado, que chegou a justificar a prisão do reitor (contra o qual não havia ainda acusação formal e que nunca havia sido intimado a depor) alegando que havia risco dele interferir no caso. Em Minas Gerais foi a juíza Raquel Vasconcelos Alves de Lima que, mesmo com parecer contrário a ação por parte do Ministério Público, autorizou que ela ocorresse. O que está ocorrendo com as mulheres conservadoras? Alçadas a um lugar de poder querem provar com sua rigidez moral sua superioridade em relação aos homens, tidos como mais tendentes à corrupção? Precisam dessas aparições espetaculosas para galgarem postos de poder na disputa desigual com os homens? Vítimas da opressão machista, quando galgam posições de poder tornam-se revanchistas por serem ressentidas? Galgando postos que, até bem pouco tempo, eram vistos como exclusivamente masculinos têm que demonstrar serviço? Incorporariam a própria lógica masculina da competição, da frieza e implacabilidade diante dos outros? O que terão sofrido de discriminação e preconceito em seus cursos universitários para guardarem tal rancor do meio universitário? Com esses gestos procurariam se distanciar da imagem que possuem do que seria uma mulher de esquerda: feminista, favorável ao amor livre, ao aborto, ou seja, uma visão distorcida de uma mulher amoral ou imoral?
A nota da Polícia Federal explicando a operação deixa, no mínimo, muito clara a naturalização do arbítrio. A formação autoritária das forças de segurança no país, sempre educadas no intuito de ser forças repressoras, não forças pacificadoras ou prontas para a dissuasão, fica clara à medida que, em momento algum, responde aos questionamentos sobre a necessidade e proporcionalidade da ação. O questionamento sobre como se recorre a uma condução coercitiva espetaculosa para ouvir pessoas que sequer sabiam do que estavam sendo acusadas, que não sabiam se estavam sendo levadas para depor coercitivamente como testemunhas ou acusados, cujos advogados não tiveram acesso prévio ao processo, que hora nenhuma haviam se recusado a depor, fica sem resposta e se passa a justificar a ação por ela ser mais barata do que a prisão preventiva. Num processo que nem o principal envolvido, um ex-funcionário da universidade, foi considerado pelo Ministério Público passível de ser preso preventivamente, que nem sequer constou entre as conduções coercitivas, se dá como certa a prisão preventiva e a substituição pela condução coercitiva para se evitar gastos.
Quando as liberdades democráticas, quando os direitos fundamentais do cidadão, quando os direitos humanos (tema odiado pelas forças de segurança no país e um dos motivos de seu rancor, ressentimento e hostilidade contra os intelectuais e “esquerdistas” por defenderem “direitos humanos de bandido e não dos policiais”, como se isso fosse verdade) são medidos em termos de gastos, quando a liberdade de alguém é avaliada em função do orçamento de corporações, estamos na vigência de um Estado de exceção. A banalização das conduções coercitivas e das prisões preventivas que se arrastam indefinidamente, sendo instrumento de chantagem visando arrancar delações premiadas que se ajustem ao juízo prévio do Ministério Público, da polícia e de um juiz (como assistimos perplexo na operação Lava Jato) é a prova de que vivemos momentos de excepcionalidade institucional.
Nesse momento, as forças que estiveram contidas, nos últimos anos, por um governo que prezava os direitos humanos, a democracia, a liberdade de expressão e de manifestação, se veem legitimadas pelo golpe a partir para atitudes de revanche e de vingança, a transformar o ressentimento e o rancor contidos, durante anos, contra aqueles que não partilham seus valores autoritários, conservadores, antidemocráticos, que não concordam com suas ideias. Se veem autorizados a prender e humilhar aqueles considerados seus oponentes, se veem no direito de negar até a intimidade e a privacidade de uma autoridade universitária que precisa ser rebaixada e negada para que a autoridade do mais desautorizado agente policial possa se afirmar, para que ele possa, finalmente, se sentir por cima. Eles que estiveram por baixo ou a baixo, subordinados a um governo do qual não simpatizavam, veem agora o momento de ir a forra, de rebaixar e espezinhar aquele que esteve por cima no regime anterior. Rei posto, rei morto, parece ser a máxima reinante. Estamos diante de um claro episódio de desforra de ressentidos, de pessoas que, por algum motivo, veem na universidade, em seus dirigentes e professores seus desafetos políticos e institucionais.
Quando da tramitação da PEC que limitou os gastos públicos, uma manifestação estudantil na UFMG, foi reprimida duramente pela polícia estadual. A ação mereceu nota de repúdio do reitor Arturo Ramiro que considerou a polícia despreparada. A condução coercitiva do reitor da UFMG, pode ser uma retaliação ressentida por atitudes e declarações como essa, que calam fundo entre todos os que compõem forças de segurança e judiciais, que são formadas para subjetivar uma visão corporativa do mundo. Como pode ter sido uma retaliação ressentida e rancorosa da Polícia Federal diante do repúdio generalizado que sua atuação desastrada no caso do reitor da UFSC, mereceu por parte da comunidade universitária. Ressentimentos e desentendimentos que, no caso de Santa Catarina, já vinham num crescendo diante de operações realizadas no interior do campus, durante o reitorado anterior ao do professor Cancellier. Esses episódios afastam, cada vez mais, essas importantes instituições do Estado brasileiro. Temos que estar alertas na defesa da universidade pública brasileira, de sua autonomia e do Estado de direito.
(Durval Muniz é professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte)
(Publicado originalmente no site Saiba Mais, Agência de Reportagem, aqui reproduzido com autorização do autor)
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