Belo Monte é a denominação geográfica que marca dois momentos de resistência da história brasileira. Separados por 120 anos, a destruição promovida pelo Estado brasileiro selou o destino de comunidades no sertão baiano de Canudos e na Volta Grande do Xingu.
Thaís Santi Cardoso da Silva
Thaís Santi Cardoso da Silva
No ano de 1893, nos confins do sertão baiano, Antônio Conselheiro fundava, junto de seus seguidores, uma comunidade à qual deram o nome de Belo Monte. Era o ‘arraial de canudos’, aonde cerca de 15 mil sertanejos decidiram viver uma nova condição de existência. Fugindo da dominação dos coronéis e da miséria dos latifúndios, instituíram um sistema autossustentável, fundado na fé e no comunitarismo.
Ali, no sertão da Bahia, as ruínas de Belo Monte são hoje registro do massacre pelo qual ficou conhecida a Guerra de Canudos, que está completando 120 anos.
Sim… aquele sertão tinha “dono”. E o Estado se muniu para devolvê-lo aos coronéis e reestabelecer as condições para o sistema de dominação que é um Retrato do Brasil. Um sistema de assistencialismo, servidão e dependência.
Não houve sobreviventes.
Depois das investidas frustradas do Estado da Bahia, o Governo Federal levou aos rincões do nordeste brasileiro seis mil soldados, com a ordem expressa de não deixar ninguém pra contar a história.
A Guerra de Canudos foi retratada na obra “Os Sertões” de Euclides da Cunha. Uma narrativa em que o escritor se posiciona como um narrador ‘sincero’, que pretende denunciar a barbárie. De uma campanha que, segundo ele, foi, na significação integral da palavra, um crime.
Ocorre que o jornalista Euclides da Cunha havia se posicionado a favor da atuação repressiva do Estado em Belo Monte de canudos. Já tinha expressado seu desejo político de que era necessária uma intervenção militar; como um ato heroico do Governo Federal para desfazer as hostes fanáticas de Antônio Conselheiro e dos bárbaros primitivos que o apoiavam.
É portanto nessa contradição de um crime necessário que a história da intervenção militar em Belo Monte é contada como um massacre desumano. Um massacre até criminoso… Mas um massacre justificado! Em nome do progresso. Em nome da unidade nacional. Em nome de uma modernidade que precisava ser imposta a todo o custo aos jagunços primitivos que seguiam um líder delirante.[1]
Com isso, “Euclides acaba legitimando – mais uma vez e definitivamente – o aniquilamento de canudos. […] A alegada denuncia do crime que teria sido a campanha de canudos resulta na legitimação dessa mesma campanha como um inevitável crime fundador, em nome da modernização do país.”[2]
Portanto, nessa narrativa da história do Brasil o massacre se legitima como uma externalidade negativa (ou nem tão negativa assim…) de um processo civilizatório que precisava chegar aos locais mais remotos, em especial quando ali o “Outro” reagia ao discurso oficial e aos interesses dos Donos do Poder.
A linha do progresso é parte dessa visão positivista e determinista da história e de sua narrativa linear e segura. O narrador euclideano temia o labiríntico e desconhecido sertão da Bahia. Sertão… essa ‘terra ignota’, ‘fora dos mapas’, ‘longe da beira’… Muitas são as formas de definir esse lugar …tão longínquo, diferente, selvagem, atrasado, fora da lei.
Passa o tempo e o conceito de sertão se aquilata. Se sofistica. E vai se inscrevendo não apenas naqueles lugares em que os processos de modernização não chegaram, mas também nos interiores de espaços hipermodernizados (como é o caso por exemplo das favelas urbanas).[3]
Cinquenta anos depois da narrativa da campanha de canudos, Guimarães Rosa abre sua obra-prima concluindo que: O sertão está em toda a parte![4]
Ora pois, se é assim, não há dúvida de que no labirinto desconhecido das suas curvas e de suas ilhas, de suas cheias e de suas vazantes, o Xingu é também Sertão!
E, ao que parece, um Sertão daqueles longínquos…
Mas essa distância não se conta em horas, tampouco em quilômetros. Ao atravessar as fronteiras do Xingu acessamos a poesia de uma outra dimensão de existência. Numa diversidade cultural única, que se formou do convívio histórico entre caboclos, camponeses, ribeirinhos e indígenas. Numa riqueza que não se traduz em moedas. Na palavra dita num tempo que lhe é próprio. Numa narrativa singular, de um conhecimento que nunca foi escrito. E que se mantém vivo na memória de povos para os quais o rio Xingu é o seu pai, é a sua mãe… É sagrado.
O Xingu é o seu lugar!
Mas, como sertão que é, a história do Xingu não deixa de ser também um Retrato do Brasil, marcado por um coronelismo de traços peculiares, cuja violência explícita é legitimada igualmente pelo processo modernizante.A história do Xingu é a história de uma política de povoamento dos rincões do Brasil, feita sob o slogan ‘terra sem homens para homens sem terra’. Ou seja, a violência que o Estado impôs ao Sertão do Xingu começa por compreendê-lo como uma terra “sem dono”. Por um discurso oficial que fez (e faz!) invisível o seu povo e que nega o seu lugar.
Nesse processo, primeiro, o Xingu foi cortado pela transamazônica.
Depois, teve seu curso desviado e foi expropriado do trecho de 100km aonde fazia a grande volta em direção ao rio Amazonas. Foi barrado e recriado no cimento de canais artificias pela Usina de Belo Monte, nome que o Governo brasileiro deu à sua decisão de implementar neste Sertão a maior obra do seu Programa de Aceleração do Crescimento. Nome que emprestou de uma Vila de Pescadores localizada no Xingu.
Essa Vila de Belo Monte não guarda relação com aquela Vila de Canudos, senão pelo fato de ter sido também destruída, agora para que se erguesse a casa de força principal da hidrelétrica.
No contexto de implantação da Usina de Belo Monte as chamadas externalidades negativas não mitigadas foram transferidas aos atingidos e a tragédia social e ambiental foi afirmada, inclusive pelo Poder Judiciário, como um mal necessário diante do projeto modernizador.
Mas o Xingu mantém-se vivo…
Os pescadores da Vila de Belo Monte, que perderam seu rio Xingu, junto de tantos outros ribeirinhos e indígenas, lutam hoje para reexistir num lugar que ainda entendem como seu, mas que não conhecem mais. As cheias e vazantes do Xingu, que eles identificavam pelo vento e pela lua, agora são controladas para abastecer as turbinas da hidrelétrica.
Muito mais do que os seis mil homens enviados para destruir a Vila de Canudos, aqui o Estado brasileiro fez uso de todos os seus aparatos jurídicos e de violência, para garantir que a obra, como prioridade absoluta, prosseguisse a todo custo.
Mas a resistência das vidas do Xingu para sobreviver face ao gigante Belo Monte trouxe à luz a dimensão de uma disputa, que revela a tensão entre duas concepções de existência. Uma disputa entre o passado e o futuro, em que velho e novo se confundem e se invertem. Diante de um discurso modernizador arcaico, que avança pela Amazônia para sustentar um modo de vida insustentável, esses povos assumem um papel fundamental. Mostram que uma outra relação com a natureza é possível e a fazem viva na sua luta por reexistir.
Com isso, a assertiva de um Sertão longínquo parece não dar conta de explicar o Xingu. Porque na verdade o Xingu torna-se palco de uma disputa planetária, que é real (e a natureza já nos mostrou isso!). Uma disputa que se trava nos sertões mais remotos tanto quanto no coração dos centros urbanos e de poder. Que se trava na resistência dos ribeirinhos, mas também nas decisões cotidianas de cada morador deste mundo.
Aonde quer que se trave essa disputa, ali está o Xingu. Que, portanto, passa a estar em toda a parte.
Só que os barramentos edificados por Belo Monte são muito maiores do que parecem… Não tratamos de um fato consumado, perdido no passado. Mas de um processo em curso, cujas consequências ainda não se verificaram por completo. Afinal, o que faz Belo Monte senão abrir as portas da Amazônia para a exploração de seus recursos naturais em escala industrial? E a Volta Grande do Xingu? Transformada no pórtico de largada de uma corrida pelo ouro que já começou e que potencializa os impactos da hidrelétrica a uma dimensão infinita.
Se queremos que o rio Xingu siga seu curso e que os seus filhos assumam o papel a que estão destinados – de professores do futuro – precisamos repensar seriamente as narrativas dessa história.
É necessário, desde logo, refutar os discursos denunciantes de um mal necessário, promovidos por narradores que, à semelhança do narrador euclideano, posicionam-se como que a falar de um caso distante, ao tempo em que o justificam pelo seu próprio modo de vida.
É evidente a necessidade de uma narrativa que assuma a aproximação entre o sujeito narrador e o objeto narrado. E que revisite as relações entre os centros de fala e de poder e esse “Outro”, exótico… Uma narrativa que não tema o desconhecido de um imaginário que é diferente na sua essência e que consiga ver no “Outro” algo mais que um “não-Eu”.
Nesse contexto, e releitura que Guimarães Rosa faz dos Sertões é, no mínimo, inspiradora.
Ao descrever as Gerais, entre veredas e buritis, o autor cria uma narrativa revolucionária. Pela fala de Riobaldo, a travessia das fronteiras desse labirinto é narrada por um jagunço letrado, que cruza o sertão como um rio. De dentro do próprio sistema jagunço, para muito além de um ambiente primitivo e desconhecido que precisa ser unificado, o autor apresenta uma narrativa aberta a múltiplos discursos. E as suas contradições, como toda a violência, são apresentadas muito mais como marcas das estruturas desiguais do nosso país, do que de desvios que mereçam ser corrigidos pelo Estado. Ao sistema de dominação Rosa reage criando uma linguagem própria, a partir da qual dá voz ao sertanejo e ilumina o seu universo ignoto. “Não se limita a escrever sobre o povo, mas faz com que as pessoas do povo sejam elas mesmas donas das palavras”[5]
Seguro que se pretendemos uma narrativa que permita ao Xingu assumir o papel que lhe é reservado, ela deve ser escrita na sua própria língua. Mas, para além da brilhante criação roseana, esse processo de Belo Monte já ensinou que não cabe aos “letrados” falar pelo Xingu. Na verdade muito já se escreveu sobre esse episódio da história do Brasil. Mas apesar das páginas escritas e dos gritos que se renovam nas lutas de resistência, o silêncio ainda é a marca dessa narrativa.
Até hoje o Xingu não foi ouvido!
É preciso estar atentos ao fato de que quando falamos de Belo Monte não tratamos de um projeto, mas de uma decisão. Uma decisão prévia, que foi tomada muito antes de ser anunciada neste Sertão. Uma decisão soberana, que veio de cima e de fora, e que expropriou o Xingu e o seu povo do seu lugar.
Nesse contexto, o pacote de medidas que acompanha Belo Monte (seu Plano Básico Ambiental, junto de todas as suas licenças…), não foi produzido no Xingu. Tampouco para o Xingu. Foi encomendado para viabilizar as ordens de prosseguir com as obras.
O fato de Belo Monte ter sido construída sem que as ações mitigatórias previstas fossem implementadas é apenas mais uma face desse mundo em que tudo é possível.[6] Quando dizemos que a Lei não se aplica em Belo Monte e que o direito perdeu a capacidade de impor limite é necessário esclarecer de que Lei estamos a tratar. Porque se as normas que envolvem esse empreendimento foram produzidas para viabilizar uma decisão viciada, o risco é que a nossa ação seja ela própria legitimadora da violência e que se torne parte do projeto modernizante.
Em Belo Monte, antes de qualquer coisa, foi violada a Lei primeira.
A norma fundante de um pacto constituinte essencialmente contramajoritário. Que deveria garantir o convívio e a coexistência entre os diversos grupos sociais e os respectivos interesses, sem fulminar nenhum deles. Norma que funda o Estado democrático no respeito às minorias, tornando ilegítimo o slogan do sacrifício de um “bem menor” em suposto benefício de “algo maior”.
Rompendo com esse ambiente constitucional, a hidrelétrica avançou sustentada num discurso (fictício) que desequilibra a relação entre minorias e maiorias, impondo ao Xingu decisões e normas alienígenas, às quais os destinatários não auferem significado, senão de renovação da violência.
O que estamos fazendo quando lutamos para que o pescador seja enquadrado num conceito que não faz nenhum sentido pra ele, mas que agora o define como portador de direitos? E quando o vemos se agarrar a esse conceito com a esperança de minimizar o seu sofrimento e de que sua dignidade seja menos violada?
É certo que os filhos do Xingu não foram consultados no momento em que se decidiu expropriá-los de seu rio.Mas, se o Xingu resiste, a luta é pela autoria da própria narrativa. Porque o direito de falar é o direito de ser ouvido. É o direito de interferir no seu destino.
Somente nesse processo pode emergir um discurso com-sentido, que permita ao direito (violado!) se assumir como potência, superando a lei estrangeira e renovando o pacto fundante. A luta pela autoria da narrativa é a luta por vir a ser, segundo a realização de cada sujeito em dignidade. E o caminho dessa realização é a autonomia.
Se, como dito, não há fato consumado, mas, um processo em curso, aberto ao inimaginável, não podemos perder de vista a construção de planos de vida e empoderamento face a outros impactos que já se anunciam.
A luta pela Consulta Prévia, Livre e Informada é a luta por uma narrativa capaz romper o silêncio, a expropriação e de subverter a história.
Porque, sim, a porta da Amazônia está aberta! Mas a resistência do Xingu já provou que esse lugar tem dono… E devemos efetivamente confiar que não nos é dado falar por ele, para que sua história seja narrada no seu tempo, com a palavra que lhe é própria.
Para que o Xingu possa seguir o seu curso, é necessário garantir a ele o direito de Ser…Tão simplesmente Xingu. Permitir que assuma seu papel e que ultrapasse as infinitas barreiras, para que possamos, enfim, aprender com ele. E, quem sabe, acessar a terceira margem do rio e descobrir que o sertão está dentro de nós.
(Publicado originalmente no site do Le Monde Diplomatique Brasil)
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