(Arte Andreia Freire)
O Ministro João Otávio de Noronha, integrante do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), declarou na segunda (4) que os heterossexuais “não têm mais direito nenhum” no Brasil.
Em sua fala em um seminário sobre “Independência e Ativismo Judicial: Desafios Atuais”, Noronha defendeu que “o nosso juiz constitucional não pode ser pautado pelas minorias só. Aliás, eu já vi que eu quero meus privilégios porque o heterossexual agora está virando minoria no Brasil”.
Ainda que tivesse sido realmente em tom jocoso, conforme sugerem as matérias divulgadas na grande imprensa, a colocação do Ministro deve ser levada a sério.
Isso porque ela expressa, com contornos precisos, uma nova identidade política que tem emergido, com frequência, no debate público sobre direitos humanos: a do homem heterossexual, cisgênero, branco, bem posicionado profissionalmente, mas que se considera um “oprimido” pelas “minorias”.
Sim, a formulação é claramente uma contradição em termos. Afinal, alguém que ocupa posições de privilégio por conta de sua raça, de seu gênero, de sua orientação sexual, de sua identidade de gênero e de sua classe certamente não é a pessoa mais indicada para reclamar das opressões que, objetivamente, lhe favorecem.
No entanto, infelizmente, Noronha está longe de ser o único exemplar de homem hétero, cis, branco “oprimido”. Basta lembrar uma entrevista, publicada há poucos dias, com o deputado Rodrigo Delmasso, do Podemos, intitulada “A dura vida dos héteros”, na qual ele defende seu projeto de lei que cria uma “semana para a valorização do heterossexual”.
Segundo o raciocínio por trás da visão do Ministro e do Deputado, as “minorias” estariam, por meio de políticas identitárias, impondo uma perspectiva particularista que se materializaria em privilégios. Assim, qualquer demanda por reconhecimento de grupos vulneráveis implicaria, necessariamente, na “opressão” dos heterossexuais, brancos e cisgêneros.
Há diversos equívocos nessa visão que, propositadamente, confunde direitos com privilégios. As elites brasileiras sempre impuseram uma cultura política que desqualificava a luta por direitos dos segmentos vulneráveis como se fossem uma busca por privilégios. Assim, as leis não seriam construções forjadas nas lutas políticas desde baixo, mas dádivas ou concessões benevolentes dos donos do poder.
Não à toa, atualmente o direito do trabalho é apresentado como um “privilégio” que se deva combater pela reforma trabalhista e não como fruto da ação política e sindical da classe trabalhadora.
É preciso, portanto, afastar essa confusão perversa entre direito e privilégio. Romper com a ordem sexual heteronormativa não significa rebaixar os heterossexuais à precariedade jurídica da condição homossexual. Não se trata de inverter o sinal de uma relação de dominação e opressão. Ao contrário, trata-se de garantir aos homossexuais os mesmos direitos assegurados aos heterossexuais.
Direitos – ainda – não são como dinheiro. Ou seja, não é preciso tirar direitos de alguns para garantir direitos de outros, como se fosse uma soma zero. O reconhecimento jurídico dos homossexuais e sua cidadania plena não exige supressão de nenhuma garantia dos heterossexuais.
Aliás, heterossexuais não precisam “assumir”, em um difícil processo de (auto)aceitação, sua sexualidade. Heterossexuais não são expulsos de casa por suas famílias. Tampouco sofrem bullying nas escolas, preconceito no mercado de trabalho ou violência físicas nas ruas caso demonstrem sua sexualidade ou afeto publicamente. Heterossexuais podem casar e formar famílias. E ainda podem doar sangue.
Tudo isso são direitos dos heterossexuais e assim deve seguir sendo. No entanto, enquanto tais direitos não forem também garantidos aos homossexuais, eles não passam de privilégios dos heterossexuais. Estender esses direitos a todos e todas não torna os heterossexuais uma minoria e tampouco oprimida, pois eles seguirão tendo as mesmas garantias que todos os demais independentemente da orientação sexual.
Não reconhecer isso é sonegar reconhecimento pleno à cidadania de um expressivo segmento social em uma clara discriminação injustificada. Tal posição do Ministro é uma afronta às políticas públicas e às decisões judiciais, dentro e fora do Brasil, que já têm reconhecido, cada vez mais amplamente, a igualdade de direitos.
É evidente que nem todos heterossexuais são homofóbicos, mas é preciso reconhecer que há uma estrutura de poder que normaliza um tipo de sexualidade como a única aceitável e legítima, excluindo e discriminando todas as outras experiências dissidentes dessa ordem sexual. Isso é opressão e não o mero sentimento de desconforto pessoal do Ministro com um mundo heteronormativo que está mudando.
E ele precisa mesmo mudar e cada vez mais rapidamente, ainda que doa em alguns heterossexuais que não sabem diferenciar direitos de seus próprios privilégios, como o Ministro Noronha.
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)
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