pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO: Seis meses após massacre de Pau D'Arco, famílias sofrem com abandono do Estado
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sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Seis meses após massacre de Pau D'Arco, famílias sofrem com abandono do Estado

Por Júlia Dolce | Brasil de Fato | Pau D’Arco (PA), 24 de novembro de 2017
Ricardo* caminha desviando de uma série de objetos espalhados pelo mato: uma mochila suja, uma lanterna quebrada, dez escovas de dentes coloridas. Os objetos estão preservados no mesmo local em que se encontravam há seis meses: uma clareira localizada na zona rural da pequena cidade de Pau D’Arco (PA), onde ocorreu a maior chacina agrária das últimas décadas, da qual ele foi um dos sobreviventes.
O agricultor magro aponta para as marcas de tiros nas árvores, onde a seiva avermelhada já está endurecida. No dia 24 de maio deste ano, Ricardo ficou imóvel por horas, escondido entre essa mesma vegetação, enquanto 17 policiais militares torturavam e assassinavam a tiros dez camponeses que acampavam no local, sendo sete deles da mesma família.
A brutalidade do “massacre de Pau D’Arco”, como ficou conhecido, ganhou repercussão nacional em poucas horas – por meio do compartilhamento de fotos dos corpos das vítimas pela própria polícia em redes sociais – e indignou organizações pelos direitos humanos. Também causou repulsa o sadismo dos policiais envolvidos, 15 dos quais agora se encontram em prisão preventiva, após a conclusão do inquérito da Polícia Federal (PF).
O camponês conta que não se esqueceu de nada que aconteceu no dia, quando voltou ao acampamento, após uma reintegração de posse, junto a outros camponeses e à presidenta da Associação dos Trabalhadores Rurais Nova Vitória, Jane Julia de Oliveira.
Encontrando o acampamento destruído, decidiram se abrigar da chuva na clareira. Na manhã do dia seguinte, os policiais militares surpreenderam o grupo, supostamente procurando culpados pelo assassinato de um segurança que fazia a patrulha da área da fazenda Santa Lúcia, proprietária do território ocupado.
“A polícia chegou quebrando tudo no acampamento. Algumas pessoas se assustaram e correram. Nós nos cobrimos com uma lona e começou a chover, não dava para ouvir ninguém chegando. Aí eu só escutei: ‘Não corre, não, senão vai morrer todo mundo, bando de bandido'. Eu dei um passo e caí no chão, consegui me enfiar debaixo de uma moita. Parei e fiquei imóvel na posição. Ouvi muita pancada e tiro, estava a uns 15 metros do local onde mataram as pessoas. Falavam para a Dona Jane: 'Era você que a gente queria, sua velha gorda, safada', e batiam muito nela. Eu fiquei sufocando com o cheiro de pólvora”, relembra.

Miséria

Ricardo conseguiu escapar do local, como outros 16 sobreviventes do massacre. O crime vitimou, além de Jane, os camponeses Antônio Pereira Milhomem, Bruno Henrique Pereira Gomes, Hércules Santos de Oliveira, Nelson Souza Milhomem, Ozeir Rodrigues da Silva, Regivaldo Pereira da Silva, Ronaldo Pereira de Souza, Weldson Pereira da Silva e Weclebson Pereira Milhomem.
O sobrevivente, que chegou a participar do Programa de Proteção a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas do Pará (Provita-PA), conta que, seis meses após o ocorrido, sua vida se transformou. “Eu não posso ir na rua, vou na rua escondido, emprego mesmo não consigo mais. A gente fica visado por ser testemunha. Para mim, ficou horrível”, disse.
No entanto, Ricardo conta que a vontade de voltar para o acampamento, hoje chamado de Jane Julia, em homenagem à liderança assassinada, foi maior. “Aqui eu fico feliz. Desde criança eu planto, sempre quis lutar pelo meu pedaço. Lá fora sei que não tenho nada. As pessoas olham e não entendem, porque aqui não tem nada também, parece que ocupamos ontem. Mas é porque eles destruíram tudo”, disse. A fala dele foi feita para os representantes de uma Missão Ecumênica que visitou a área, no início deste mês de novembro, para conferir a situação dos acampados.
Em assembleia organizada para os visitantes, os moradores do acampamento ressaltaram a miséria e a falta de saneamento básico como problemas fundamentais da ocupação. É o que explicou Giodeth Oliveira dos Santos, que era concunhada de Jane Julia e que também perdeu o pai de seu filho no massacre.
“Depois do massacre eu resolvi vir para entrar na luta com as famílias daqui. Aqui, as pessoas não têm quase o que comer, imagina o que plantar. Muita gente não tem cisterna e poucas famílias conseguem utilizar a água do poço”, explicou.

Reforma agrária

De acordo com uma das atuais lideranças do acampamento, o coordenador regional da Liga dos Camponeses Pobres (LCP), José Dias, conhecido como Pepe, a morosidade do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para garantir a distribuição das terras entre os camponeses é o principal problema da ocupação.
“Houve um princípio de negociação, mas a proprietária pediu a revisão do preço. Com isso, estamos esperando que o Incra volte com o processo com urgência, para evitar outra tragédia na área”, apontou.
Desde que o crime ocorreu, o processo de venda da Fazenda Santa Lúcia para fins de reforma agrária foi acelerado, com oito audiências já realizadas junto ao Incra. No entanto, diante das divergências em torno do valor a ser pago à proprietária do imóvel, a empresária Maria Inez Resplande de Carvalho, uma nova liminar de reintegração de posse foi concedida pelo juiz da Vara Agrária de Redenção – cidade próxima a Pau D’Arco –, como explica o advogado do caso, José Vargas Junior.
“Depois do massacre, entenderam que era uma questão de honra que a área fosse destinada à reforma agrária. A pressão fez com que a proprietária ofertasse a área ao Incra. Estamos discutindo valores e, no último estágio, para destinar a terra aos camponeses, mas recentemente foi revigorada [concedida] uma liminar para que haja uma nova reintegração de posse, o que hoje é o ponto de maior preocupação do acampamento”, explicou.
Vargas opina que a chacina de Pau D’Arco pode ser considerada mais brutal do que a de Eldorado dos Carajás – massacre histórico que vitimou 21 sem-terra na cidade do sudeste paraense, há 21 anos.
“Foi muito chocante, por mais que saibamos que estamos em uma época na qual, cada vez mais, os direitos são violados, por mais que tivéssemos comunicado o juiz que, pelo andar das reintegrações, estivéssemos próximos de ter um novo Eldorado. A forma como eles assassinaram traz uma característica de violência moral muito forte. Até hoje as famílias não tiveram o direito de velar os corpos, até hoje não receberam nenhuma forma de suporte do Estado”, destacou o advogado.

Indenização

A indenização aos familiares das vítimas é outra das grandes lutas envolvendo a denúncia do caso. Entre os maiores impactados por essa negligência do Estado está Verônica Pereira Milhome, de 54 anos, que era mãe de duas das vítimas: Klebson e Edson. Diabética crônica e portadora de problemas renais, Verônica dependia financeira e fisicamente dos cuidados dos filhos.
“É muito triste, um coração de uma mãe sofre muito por isso, por falta deles, porque eles que me ajudavam”, relatou Verônica, enquanto mostrava a foto três por quatro de um dos filhos. Com uma perna amputada há um mês, hematomas pelo corpo e um acesso ligado ao pescoço, a senhora de cabelos brancos acariciava a foto do filho, calmamente. “Para mim, o mundo acabou, eu não tenho mais vontade de viver, mais vontade de nada”, completou.
A situação de Verônica é denunciada pelo seu sobrinho Regis Marcos Pereira da Silva, que era irmão da vítima Regivaldo Pereira da Silva e hoje abriga a tia debilitada em sua casa em Redenção. “Acho que pelo menos ela teria que ter tido uma ajuda maior do Estado, porque hoje em dia eu culpo o Estado pelo fato de ela ter perdido a perna. Um dia ela caiu e, vivendo sozinha, não tinha ninguém por perto para ajudá-la”, explicou.
Mostrando o último presente que ganhou do irmão assassinado, uma camiseta do Palmeiras, Regis relata que a saudade e a angústia pelo crime ainda são grandes. “A dor de perder uma pessoa já é grande, agora imagina sete pessoas, e com a crueldade e brutalidade que foram assassinados. Meu irmão falava que, se conseguisse a terra, ia levar todo mundo para perto dele, porque, se dependesse dele, cada irmão teria um pedacinho de terra para poder trabalhar. Infelizmente ele saiu de lá da pior forma que uma pessoa poderia sair”, lamenta.
Outro advogado que participa da defesa do caso, o representante da Comissão Pastoral da Terra (CPT) José Batista Afonso, afirma que entrará com ações judiciais com o objetivo de responsabilizar o Estado pela situação das famílias.  “Nós já fizemos duas audiências com o governador do estado, requerendo que atendesse de imediato esse direito das famílias. No entanto, até agora, o Estado não se manifestou. As famílias estão totalmente desamparadas. Foram agentes do Estado que praticaram diretamente os crimes, portanto o Estado tem a obrigação de reparar os danos”, explicou.

Mandantes

O advogado destaca ainda que, apesar do inquérito da PF já ter sido concluído, uma parte importante da investigação está inconclusa: a participação de fazendeiros e mandantes no crime. “Estamos fazendo pressão para que essa parte importante seja investigada, porque identificaria os responsáveis por financiar a operação, descobrindo se houve pagamento para os policiais executarem os trabalhadores”, pontuou.
A importância de se chegar a essa etapa da investigação também foi colocada pelo promotor de Justiça Leonardo Jorge Lima Caldas, do Ministério Público (MP) de Redenção, um dos responsáveis pela denúncia do caso.
“É importante que a gente mantenha essa chama acesa. A gente está buscando dar continuidade a esse trabalho, porque sabemos que tem algo a mais. Então, não podemos nos dar ao luxo de desconsiderar isso. Se existe indícios que foi patrocinado, nós temos que buscar, é dever do MP constatar isso. Mas não temos corpo para isso, precisamos do suporte da PF”, explicou o promotor.

Perseguição

Leonardo Caldas expôs também que a justificativa apresentada pelos policiais para realizar o massacre, em sua defesa preliminar, foi uma “limpeza social”, e opina que os “poderosos da região” tentam “desqualificar as vítimas para justificar a conduta dos policiais”. O promotor contou que já chegou a ouvir reclamações da população de Redenção sobre a prisão dos policiais, relacionando o fato a um suposto aumento no número de roubos na cidade.
A perseguição e a difamação das vítimas, seus familiares e demais camponeses sem-terra na cidade de Redenção, considerada conservadora e influenciada pelos latifundiários, são frequentes. Diante dessa realidade, segundo o promotor, o Poder Judiciário deverá realizar a última fase do processo, o julgamento com júri popular, na capital paraense, Belém. O objetivo é evitar a influência dos ruralistas de Pau D’Arco. No entanto, ainda não há previsão para o julgamento dos policiais envolvidos no caso. No momento, o processo entra na fase de instrução, na qual as testemunhas de acusação e defesa são interrogadas.
Para o comerciante Regis Marcos, a vontade de conquistar a justiça pelo assassinato de seus sete familiares é maior do que o medo de represálias na cidade.  “Medo a gente fica, porque quem fez o que fez, qualquer hora pode fazer de novo. Há bastante represálias para calar nossa voz, porque estamos presentes em todas as manifestações, para não deixar o caso cair no esquecimento. Nada vai fazer com que eles voltem, mas se a gente tiver justiça, acho que alivia um pouco a dor, saber que a morte deles não foi em vão”, concluiu.

(Publicado originalmente no site Brasil de Fato) 

**Ricardo é o nome fictício do agricultor e sobrevivente de Pau D'Arco que, por questões de segurança, preferiu não se identificar.*

Na próxima reportagem, conheça o acampamento Hugo Chávez, do MST, em Marabá, uma das áreas com despejo marcado para acontecer.

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