Existe, no Estado do Maranhão, um complexo cultural em torno do boi (boi bumbá). Certamente, em função da importância da pecuário bovina naquela região. No âmbito do complexo, há uma tradição sebastianista, na praia dos artistas, que no período de lua cheia faz D. Sebastião ressuscitar em forma de um touro, com um chifre só. 0 animal é a manifestação do espírito do monarca português, morto na batalha de Al-Kacequibir e nunca sepultado. O messianismo sebastianista é muito forte na cultura popular brasileira, sobretudo na região norte-nordeste. É como se a nossa gente simples do interior nunca tivesse sido socializada - politicamente - pelos rituais da República laica e positivista. E seguisse acreditando numa ordem teológica, animada por deuses e orixás, sempre prontos a intervir no curso da vida humana e salvá-la do precipício que a vive rondando os pobres cristãos brasileiros. Há quem diga que isso é sinal do nosso subdesevolvimento político e que o próprio instituto do presidencialismo é uma sobrevivência atávica desse messianismo político. Verdade ou não, esse sebastianismo sempre se manifesta em momento de crises na República brasileira. É como se o pai primordial ou o deus ancestral da tribo nos abandonasse. E nesse momento, temos de invocar o espírito de D. Sebastião para nos proteger das desgraças que estão sempre a desabar sobre nossas cabeças.
Pernambuco também tem seu ciclo sebastianista, já descrito por seus escritores e literatos. 0 último foi Ariano Suassuna, com a Pedra do Reino. Suassuna, por laços de família e afinidades políticas, foi o cronista oficial desses feitos antigos: chegou a defender uma modalidade de socialismo monárquico, animado por vaqueiros e beatos. Mas com certeza foi na figura dos ilustres membros da Casa dos Arraes que deve ter encontrado a reencarnação viva da figura do nosso rei encantado. Claro que a morte (trágica) sempre confere ao personagem uma aura de heroísmo, de bravura e santidade. Nada como a morte para mitificar o personagem. Eis que um rebento da "família" Arraes desaparece tragicamente num desastre de aviação. Fato corriqueiro na história da aviação civil do Brasil? - Não. O pretexto que faltava para a deificação do personagem. Mas quem escreveria a história, com Suassuna já morto? - A família do morto, com a ajuda dos meios de comunicação e do governo do Estado. Pronto. Temos a versão contemporânea, atualizada do complexo cultural do sebastianismo em nosso Estado. Só que dessa vez, D. Sebastião se manifestou na pessoa do ex-governador desaparecido. E transformado no maior cabo eleitoral da história política de Pernambuco. Eleitor de Marina Silva, eleitor de Paulo Câmara, eleitor de Aécio Neves e por aí vai. Mas era preciso ter os sacerdotes-interpretes da vontade do morto. É aí onde entra a esperteza do primo do governador eleito, João Grilo. 0 messias se expressa através do irmão (que sabe escrever e interpretar sinais), da viúva ( transformada num passe de mágica na maior política do Ocidente), no filho (o sucessor e continuador da saga intrépida da falecido), dos cortesões e cortesãs e dos apaniguados de todos os tipos. 0 que o santo, a santidade e seus sacerdotes farão por nós, pobres contribuintes, que no final pagamos a conta sem participar do festim?
Pode usar a sua bovina maioria na Assembléia Legislativa para criar um feriado dedicado à memória do chefe desaparecido. Neste dia, todo o serviço público e as escolas estaduais e municipais se dedicarão a rememorar a saga do líder tragicamente falecido. Como era bom, despojado, generoso e voltado ao bem comum do povo pernambucano. Cartazes com a sua ilustre figura devem ser espalhados por todas as ruas, pontes, avenidas, prédios públicos, estradas e ônibus permissionários de concessão pública. 0s próximos hospitais, postos de saúde, escolas, bibliotecas, viadutos e outros equipamentos públicos devem ostentar o nome: Eduardo Campos, o defensor perpétuo do povo pernambucano. Historiadores devem ser contratados com recursos do instituto João Mangabeira para escrever a biografia do líder, de forma que as novas gerações possam conhecê-lo, depois de morto. A FACEPE deve ser mobilizada para oferecer bolsas de pesquisa àqueles que produzirem a melhor tese sobre a obra administrativa e político do ex-governador.
A guarda e o culto dessa memória deve ficar sob os cuidados da família (ampliada) Campos Accioly: o irmão-literato, a viúva combalida, os filhos do casal, os primos, os concunhados, os contraparentes e a extensa legião de "clientes" e apaniguados do ex-governador. O exercício continuado de rememoração da vida do morto deve servir de alimento da fabulosa coligação política que elegeu o seu candidato, seu senador e os filhos, seus correligionários e auxiliares administrativos e o messianismo eduardiano. Com o lembrete de que a administração pública do município e do Estado não deve ser confundida com a bacia das almas deste e do outro mundo. E que algum milagre o santo deve operar na educação, na saúde, no meio-ambiente, na mobilidade urbana, na segurança, no transporte público, porque a paciência dos crentes e fiéis tem limite. 0 santo não pode fazer o milagre só em casa!
Michel Zaidan Filho é cientista político, historiador, filósofo e professor da Universidade Federal de Pernambuco.
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