Que atitude tomar diante do golpe parlamentar e da destruição de um legado civilizatório, construído em décadas de inúmeras parcerias entre as agências de cooperação internacional, como representantes de suas respectivas sociedades, instituições e governos, e os movimentos sociais e entidades da sociedade brasileira?
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por Paulo Maldos |
Início dos anos 1970, auge da ditadura militar no Brasil. Nos campos e nas cidades reinava a paz dos cemitérios. Trabalhadores rurais e urbanos viviam quase como escravos nas fazendas e fábricas, a política estava abolida das conversas cotidianas, o noticiário explorava as práticas esportivas, as igrejas pregavam a vida depois da morte. Que estava por toda parte. Nas prisões, com milhares de presos políticos, nas câmaras de tortura, a morte imperava soberana, e seu poder transbordava para o dia a dia da sociedade brasileira.
Aos poucos, uma rede de pequenos coletivos populares foi se formando por todo o país, muitos chamados de Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), outros de Comissões de Fábrica, outros de Clubes de Mães, outros de Roça Comunitária. Surgiam para refletir sobre a situação concreta da população e realizar pequenas ações políticas e sociais que aliviassem um pouco o sofrimento cotidiano.
Um general, um dos principais articuladores do golpe de Estado de 1964, estava atento a tudo isso. Seu nome era Golbery do Couto e Silva; sua especialidade era a atividade de “inteligência”, ou a antecipação de cenários para a atuação militar. Ele logo percebeu que algo estava errado no país, um excesso de silêncio para uma população sempre extrovertida, um conjunto grande de problemas vividos sem canal para se expressar. Em 1972 formulou sua hipótese e proposta: “Ou mudamos algo, ou terminaremos todos pendurados num poste”. Explicou que, “quanto mais você concentra o poder, mais ele perde força real e, por outro lado, gera um núcleo de contrapoder forte”. O estrategista militar explicitou sua proposta: a ditadura deveria imediatamente tomar a iniciativa de uma “abertura lenta, gradual e segura”. Essa estratégia foi, pouco depois, colocada em prática pelos militares.
Parcerias por uma sociedade mais justa
Na medida em que a rede inicial de coletivos populares se expandia e se fortalecia, espaços institucionais iam se abrindo lentamente, a liberdade de reunião e de expressão era exercida de forma controlada, vigiada, mas num crescendo de participação popular. Esta ia transformando a rede em movimentos populares locais, logo regionais e, em poucos anos, em movimentos populares nacionais. Esse percurso não foi feito de forma espontânea, mas acompanhada, apoiada e refletida por militantes, religiosos, estudantes, intelectuais e profissionais em busca de alternativas de atuação.
Além disso, esse novo cenário teve a contribuição das agências de cooperação internacional. Os representantes dessa cooperação eram normalmente pessoas que conheciam muito bem nosso país e nosso povo; tinham laços de confiança com coletivos populares ou instituições como igrejas ou pequenos centros de pesquisa. Muitas vezes eram estrangeiros que viviam havia muito tempo no Brasil, radicados aqui com a família. Por meio desses laços de confiança e de identidade política, pequenos projetos eram elaborados, e os recursos, distribuídos.
Nos países europeus, então vivendo o Estado de bem-estar social, a sensibilidade para a situação de opressão nas ditaduras latino-americanas facilitava a captação e doação de recursos expressivos para os grupos que realizavam trabalho popular. A cooperação internacional tinha suas instituições, algumas vinculadas à Igreja Católica; outras, às igrejas Luterana, Presbiteriana, Anglicana e demais igrejas históricas; outras, ao movimento sindical; outras, a setores leigos independentes, ambientalistas, socialistas etc. Essas instituições também passaram a apoiar a criação de centros de assessoria, investigação e ação social, cujo papel era dar suporte e qualificação política para os grupos e dirigentes dos movimentos sociais emergentes – e para que estes criassem suas próprias instâncias nacionais e seus respectivos escritórios e estruturas nacionais. Assim surgiram as entidades de apoio (futuras ONGs) e os movimentos populares com expressão nacional.
Logo as agendas dessas entidades de apoio e dos movimentos populares passaram a se utilizar de conceitos e referências novas: formação política de dirigentes e de massa; planejamento estratégico e indicadores de resultado; metodologia de trabalho popular e sindical; história da sociedade e história do Brasil; ferramentas para a transformação da realidade; educação popular; comunicação popular etc.
Fim da ditadura e início da democracia
Estamos avançados nos anos 1980, a ditadura está enfraquecida e continua seu processo de retirada de cena “lenta, gradual e segura”, e os movimentos populares vão ocupando cada vez mais a cena política, com suas próprias lideranças, métodos de organização e ação. As agências de cooperação internacional acompanham todo o processo, colaborando de forma definitiva para dar condições operacionais para as entidades de apoio, assim como para viabilizar as estruturas do movimento popular organizado; contribuem muito também para os processos formativos e de educação popular gestados pelas entidades e movimentos, em nível local, regional e nacional. Os representantes das diferentes agências de cooperação internacional continuam com laços fortes de confiança com as lideranças locais, e as decisões sobre estratégias de luta, capacitação das lideranças e organização das entidades e movimentos populares são compartilhadas, assim como o planejamento estratégico e as possibilidades de distribuição dos recursos destinados ao trabalho político e organizativo.
A segunda metade da década de 1980 foi marcada por um processo de dimensão histórica: a eleição da Constituinte e a elaboração da nova Constituição Federal. Em 1987, os movimentos populares e sindicais, urbanos e rurais, e as entidades da sociedade civil de todo o país voltaram seus olhos para Brasília, para o Congresso e mais especificamente para a agenda e o cronograma das comissões e subcomissões nas quais se debatiam e se definiam os conceitos e termos da nova Carta. Atentos ao caráter histórico desse processo, milhares de militantes, dos mais variados movimentos e entidades, rumaram para Brasília para, no Congresso Nacional, participar ativamente de debates com deputados e senadores, buscando a construção a muitas mãos de uma nova Constituição, radicalmente democrática, que contemplasse as contribuições e esperanças da experiência coletiva em mais de uma década de lutas populares de base.
Embora muito do que foi trazido pelas caravanas populares não tenha sido assimilado pelos deputados e senadores na nova Carta, esta sem dúvida expressa o “espírito da época”, abrindo caminho para uma nova fase política no Brasil, marcada principalmente pela democratização do Estado; participação e controle social; criação de conselhos e realização de conferências; elaboração participativa de políticas públicas; participação direta dos cidadãos nas instâncias do poder municipal, estadual e federal; e construção de parcerias entre o Estado e as entidades da sociedade civil e do movimento popular.
Esse novo cenário teve um sujeito político discreto e sempre presente, uma parceira fundamental na criação, desenvolvimento, enraizamento, visibilização e qualificação dos movimentos populares e de seus dirigentes: as agências de cooperação internacional, às quais se deve um reconhecimento por sua contribuição, indireta porém significativa, para o caráter democrático da Constituição e sua posterior aplicação.
No período pós-1988, o Brasil viveu uma experiência democrática intensa, com forte participação direta da sociedade na formulação de políticas públicas e de sistemas estatais para a aplicação dessas políticas, alicerçados em novos espaços institucionais com representação paritária governamental e da sociedade civil, espaços esses de monitoramento, avaliação e planejamento de uma ampla gama de programas sociais.
Embora tais espaços estejam presentes em todos os governos do período democrático, os últimos quatro mandatos presidenciais, dos presidentes Lula e Dilma, foram marcados pelo aprofundamento dessas novas formas de criação, monitoramento e introdução das políticas públicas, com a corresponsabilidade das entidades da sociedade civil e dos movimentos populares na gestão de recursos públicos significativos. Participação social no Plano Plurianual (PPA), na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e na execução orçamentária; processos conferenciais; conselhos de direitos; comissões temáticas; espaços e mecanismos de diálogo; secretarias de participação social nos ministérios; mobilizações sociais e interlocução com gestores públicos: todas essas novas formas de interação e de participação social foram experimentadas nestes últimos treze anos de governo federal, com bons resultados em termos de democratização das decisões políticas e da gestão dos recursos públicos.
O conjunto desse cenário contemplava parcialmente as expectativas e esperanças históricas das agências de cooperação internacional, no sentido de melhoria das condições de vida da população brasileira e da democratização do Estado com participação social. Em razão da redução dos recursos disponíveis da cooperação internacional e do surgimento de outras áreas prioritárias para a cooperação no mundo, mas também em razão do fato de que o Brasil vinha superando sua condição de país com ampla parcela da população na pobreza extrema e na exclusão social, as agências de cooperação internacional no Brasil vinham buscando campos específicos para a atualização de sua missão institucional.
Nesse sentido, as agências passaram a se dedicar a apoiar projetos específicos de segmentos vulneráveis; projetos situados em regiões empobrecidas e de pouca presença do Estado; projetos de visibilização de questões sociais pouco conhecidas; projetos de formação e capacitação de gestores de ONGs, dioceses e pastorais sociais; projetos de comunicação social alternativa à mídia hegemônica; processos de articulação e reflexão em torno de temas que interessam aos setores populares e aos parceiros, tais como mudanças climáticas, agroecologia, produção orgânica, tecnologias sociais e projetos exemplares com potencial de replicabilidade.
Democracia e legado civilizatório sob risco
Este cenário político democrático, que vem sendo construído ao longo das últimas décadas, por meio das lutas contra a ditadura, da emergência de novos sujeitos políticos, da Constituição Federal de 1988, das experiências de criação de espaços, processos e instâncias de participação social, e da produção de políticas públicas e novos sistemas nacionais para sua implementação, com controle social, está a ponto de ser desmontado com o golpe parlamentar ocorrido no Brasil.
As elites políticas e econômicas, que se encontravam fora do centro de poder nos últimos anos, insurgiram-se contra o pacto governamental estabelecido desde 2003 e planejaram o golpe parlamentar que acaba de destituir a presidenta eleita Dilma Rousseff, encerrando o ciclo de treze anos de um projeto democrático-popular no governo federal do Brasil.
Por que afirmamos que é um golpe parlamentar o que ocorreu? Trata-se de um golpe parlamentar porque atende à formalidade do processo de impeachment, pois cumpre os procedimentos constitucionais previstos, culminando com uma votação política pela maioria absoluta do Senado Federal, porém com um conteúdo jurídico precário, que não prova em nenhum momento a existência de um crime de responsabilidade por parte da presidenta Dilma. Ou seja, condenou-se e afastou-se uma presidenta da República porque se formou uma maioria parlamentar eventual na Câmara e no Senado Federal, mas não porque, do ponto de vista jurídico, se provou qualquer crime por parte da autoridade maior do país. Num regime presidencialista como o brasileiro, o impeachment teria de reunir causas políticas e jurídicas para o afastamento da presidenta, o que não ocorreu.
De acordo com as declarações públicas e com as práticas já encaminhadas pelo presidente golpista Michel Temer e seu novo ministério, o que podemos esperar nos próximos dias e meses, talvez anos, é um amplo e profundo desmonte dos direitos sociais, das políticas públicas e dos espaços de participação social construídos ao longo das últimas décadas, procurando anular, inclusive, as principais conquistas democratizantes expressas na Constituição Federal de 1988.
O desafio que se coloca hoje para as agências de cooperação internacional que atuam no Brasil desde os anos 1970 é: que atitude tomar diante do golpe parlamentar e da destruição de um legado civilizatório, construído em décadas de inúmeras parcerias entre as agências, como representantes de suas respectivas sociedades, instituições e governos, e os movimentos populares e entidades da sociedade civil brasileira?
Direitos sociais foram reconhecidos, políticas públicas foram construídas, sistemas para sua aplicação foram colocados em prática, instâncias governamentais paritárias de participação social para monitoramento e planejamento das ações foram criadas; uma sociedade brasileira menos desigual estava surgindo depois de quase meio século da antiga “paz dos cemitérios”, que a caracterizava no início dos anos 1970. Ao longo da “abertura lenta, gradual e segura” – e muito depois dela –, os setores populares e as agências de cooperação internacional vinham produzindo uma mudança real na sociedade e no Estado brasileiro. Hoje, toda essa conquista histórica está sendo ou se encontra sob risco de ser anulada.
Movimentos populares e agências de cooperação
O bispo emérito de São Félix do Araguaia, dom Pedro Casaldáliga, ao avaliar o cenário político atual do Brasil, afirmou: “Aconteça o que acontecer, nosso sonho é mais forte”. Isso significa que, por mais que se procure anular o já conquistado, os movimentos populares e seus aliados não desistirão de seguir construindo uma sociedade mais justa, lutando pela manutenção de direitos e pela conquista de novos direitos. Por mais que se desmonte o que se construiu, o patamar atual é outro, uma sociedade muito mais organizada e consciente a respeito da história de seu país, a respeito do Estado, a respeito de suas possibilidades de transformação.
Não se trata agora de um novo começar, mas de uma retomada do percurso, após uma mudança institucional profunda e inesperada, fruto de um golpe de Estado de novo tipo. Trata-se de recuperar a memória do processo vivido até aqui; sistematizar as experiências, aprender com elas; traçar linhas para um novo acúmulo; juntar forças e capacidade política e desenhar novos horizontes a serem perseguidos. Tudo terá de ser revisto: país, Estado, modelo político, representação política, modo de fazer política e de fazer a gestão pública.
Uma coisa ficou clara nesse processo histórico: o “novo” trazido pela participação popular não cabe, como não coube, nas velhas estruturas e nas velhas formas de fazer política no Brasil. O “velho” não suportou o “novo” e tomou a decisão de destruí-lo. Agora, trata-se de a participação popular avançar para transformar também as velhas estruturas e as velhas formas de fazer política.
Enfim, as agências de cooperação internacional têm um novo desafio. Para começar a definir como enfrentá-lo, é importante lembrar como tudo começou, nos tempos da “abertura lenta, gradual e segura”: reunir-se com o povo onde ele vive e trabalha, ouvir o que ele pensa e sente, planejar junto com o povo, principal sujeito político, o presente e o futuro – e os novos caminhos dessa nova construção coletiva.
Juntamente com os movimentos populares e as entidades da sociedade civil brasileira, as agências de cooperação internacional podem definir como defender o legado civilizatório de uma sociedade mais justa e solidária.
Caminhando juntos, numa atitude respeitosa de escuta, reflexão, divisão de tarefas e construção conjunta, nosso sonho será mais forte.
Paulo Maldos
Paulo Maldos é do Centro de Assessoria e Apoio a Iniciativas Sociais (Cais)Ilustração: Tulipa Ruiz |
sábado, 12 de novembro de 2016
Le Monde: Novo desafio, nova perspectiva
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