Vale lembrar que, junto à sutileza, Antonio Candido prezava também pela clareza da escrita, em consonância com suas convicções políticas e com o papel que a crítica, segundo acreditava, deveria assumir no esforço de transformação social
13 de julho de 2017
No dia 12 de maio faleceu Antonio Candido de Mello e Souza. Muito se disse que, com sua morte, deu-se o fim de uma era. A frase é duvidosa. Preferível seria dizer que ele era o último expoente (sobrevivente?) de uma época fundacional e riquíssima, que como tal se exauriu e, como tal, permanece. Era o último modernista – entre os grandes que este país teve –, fosse pelo tipo de educação, pela amplitude e qualidade dos conhecimentos, pelo viés humanista das intervenções, pela perspectiva do seu trabalho como crítico.
Recebi a notícia do falecimento numa manhã pouco primaveril (embora fosse primavera lá fora), na pequena cidade americana de Princeton, onde termino a pesquisa de doutorado. Saíra do Brasil em setembro de 2016, no dia do impeachment de Dilma Rousseff; regressaria – tristes périplos – pouco depois da morte de Antonio Candido. Entre os dois acontecimentos, o Brasil reencontraria seu legado colonial, lutando outra vez contra o despotismo e o conservadorismo de suas elites, ansiosas por uma “ponte para o futuro” sobre a qual não passará (aprovadas as emendas constitucionais e as reformas propostas) a maioria da população. Não bastasse, enquanto escrevo estas linhas, o presidente-interino Michel Temer é aparentemente flagrado em embustes envolvendo seu próprio partido e a base aliada. Nova crise se instala dentro da crise.
Por alguma ironia do destino, semanas antes eu expressara a um amigo (também pesquisador-visitante nos Estados Unidos) minha preocupação com o professor. Na verdade, não possuía motivos claros. Lendo a Formação ou O Discurso e a Cidade, apenas recordava que ele completaria 99 anos em breve, no dia 24 de julho, e tentava imaginar o que pensaria destes acontecimentos recentes. Foi nesse contexto que a notícia de seu falecimento me chegou, numa espécie de misto entre frustração pessoal e – o que muitos devem ter sentido – sensação de perda de um país, envolto numa névoa de dúvida e insegurança.
Entre os depoimentos e análises que então começaram a surgir, uma parte se referia à sua obra e à sua pessoa na chave do “fim de uma era” (talvez porque ele mesmo tenha se definido, mais de uma vez, como um “homem do passado”) ou caía no poço das implicações inócuas, porque “formalistas”, o que se desvincula de maneira flagrante do nervo político que sempre animou seu pensamento. Mas eu pensava então / Na solidão dos que pereciam / E em Giordano / Que ao subir para o estrado / Não encontrou na língua humana / Nem uma palavra que fosse / Com que se despedir da humanidade / Desta mesma que perdura. Certamente, nada mais impróprio do que pensar a vida de Antonio Candido nos mesmos termos em que o polonês Czeslaw Milosz pensou a de Giordano Bruno. Das lições que Candido legou, o momento sugere um diálogo importante com algumas delas. Abaixo, sem dúvida de forma lacunar e insuficiente, está um esboço no sentido do que poderia trazer uma aposta neste diálogo.
As estripulias de uma elite “ilustrada”
No ensaio “Os sete fôlegos de um livro”, Roberto Schwarz aponta com argúcia uma das lições sobressalentes a serem tiradas do clássico de Candido, Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos (1959). Escrita – tal como outros livros fundadores da chamada “tradição crítica” – no período de nacional-desenvolvimentismo em que “a sociedade brasileira lutava para se completar no plano econômico e social”, a Formação conteria, entretanto, uma interpretação mais austera (“menos triunfalista, ou mais cética”, diz Schwarz) do que seus equivalentes nas ciências humanas. A razão para isso estaria, sobretudo, na natureza de autonomia relativa de seu objeto de estudo, a literatura, cuja organicidade, à diferença da sociedade brasileira, teria sido lograda de fato ainda no século 19, na fase realista de Machado de Assis, alcançando no século 20 grande desenvoltura no número e qualidade de obras.
Como Candido sempre notou, a literatura brasileira (pese seu processo de “rotineirização” do gosto literário) é uma literatura de elites, o que não a impediu, sobretudo depois do Modernismo da década de 1920, de cumprir – bem como a própria elite brasileira em momentos específicos – um papel progressista na renovação de valores e na incorporação de parcelas desprivilegiadas da população (o romance regionalista, que trata das vidas humildes do campo, por exemplo). A ênfase de Schwarz recai no próprio movimento de formação do sistema literário a despeito da <má formação> de nosso tecido social. Formado o sistema literário, e sendo este uma força “civilizadora”, nem por isso teria resgatado o país de suas iniquidades históricas. “O sistema literário integrado – pergunta Schwarz – funcionaria como uma antecipação de integrações futuras? Não demonstrava também que as elites podiam ir longe, sem necessidade de se fazerem acompanhar pelo restante do país?”.
A nota de austeridade e ceticismo que Schwarz saca da consecução de uma obra como a Formação, de Candido, ressoa atualíssima neste momento de reconversão conservadora operada por representantes políticos com legitimidade duvidosa, após um processo (como chamou, creio, Marcos Nobre) de “compressão a frio” de nossa democracia. Se nos valermos de outro importante interlocutor de Candido, o uruguaio Ángel Rama, para quem o sistema literário brasileiro teria se formado antes que a literatura hispano-americana, de maneira geral, alcançasse a maturidade, talvez fique ainda a sugestão de que nossas elites muito cedo puderam se “desgarrar” do corpo social, impondo um tipo especial de hegemonia apesar das cisões em seu interior.
Em ambos os casos, a Formação da Literatura Brasileira deixa uma pergunta: haverá ainda, como houve no passado, um papel progressista a ser assumido por uma elite liberal “ilustrada” diante dos impasses atuais? Não dependerá a reinvenção das esquerdas – campo político ao qual Antonio Candido sempre esteve ligado – desta mesma resposta, tendo em vista a experiência do Partido dos Trabalhadores?
Recado da malandragem
Este processo de gigantismo invertido contido no cerne da Formação – onde o topo da pirâmide social acumula as benesses (materiais e culturais) da modernização do país, destacando-se do corpo social – Schwarz nomeia “descrição do progresso à brasileira”. Vale notar que tal “descrição”, em Candido, tem outro capítulo importante no famoso ensaio “Dialética da Malandragem” (1971), sobre as Memórias de um Sargento de Milícias (1854). Sumariamente, neste ensaio Candido buscou reconhecer na forma do romance de Manuel Antônio de Almeida um movimento cuja razão, através de um processo de interiorização estética, estaria na estrutura da sociedade do Rio de Janeiro oitocentista, mais especificamente na relação (explicitada pelo próprio crítico) que a incipiente classe média urbana mantinha com os dois principais polos sociais da época: senhores e escravos. Segundo Candido, seria esta qualidade da modernidade periférica – realidade capitalista ainda pouco desenvolvida nos termos da divisão social do trabalho urbano – o contexto no qual o herói, Leonardo Pataca, transitaria malandramente entre os campos da “ordem” e da “desordem”, e onde estaria cifrada uma relação à brasileira com o universo da norma e da lei.
Este <à brasileira>, em que Candido parece ver uma relação particular do país com o modelo de Estado-nação legado pelo ocidente, sugere uma das marcas de seu modernismo (aquele inaugural, de Mario e Oswald), depois problematizado pelo próprio Schwarz em <Pressupostos, salvo engano, de ‘Dialética da Malandragem’>. Mantendo um contato exterior com “a presença constritora da lei, religiosa e civil” que nos países anglo-saxões “plasmou os grupos e os indivíduos” – qualidade que recobraria nossas raízes ibéricas até, pelo menos, a Contra-Reforma –, teríamos não apenas herdado (para o bem e para o mal, diga-se de passagem) algo do “mundo sem culpa”, “acomodatício” e “isento de males definitivos” do herói das Milícias, mas também uma inserção diversa “num mundo [futuro] eventualmente mais aberto”.
Se é verdade que a conjuntura atual, por um lado, parece desautorizar este tipo de assertiva, reputando-a “otimista” frente ao amesquinhamento das perspectivas pelo desmonte do Estado (ou mesmo “anacrônica”, tomado o abandono pós-ditadura do projeto nacional-desenvolvimentista); por outro, a perspectiva popular que advém do universo do malandro, em termos ideológicos, também manteria uma relação truncada com o presente. Ao escapar dos projetos elitistas da direita, recusa à sua maneira aqueles de uma esquerda dita “tradicional”, que a partir da década de 1930 (e, sobretudo, na década de 1960) flertou com a revolução social como a via para a superação do subdesenvolvimento. Esta <independência ideológica> do malandro deveria, supostamente, subscrever sua permanência.
Contudo, uma vez que o “progresso” na acepção liberal e a “revolução” de viés marxista, ao que tudo indica, se veem fora da ordem do dia, a malandragem (por razões que não cabem aqui, mas que teriam a ver, entre outras coisas, com a débâcle do “mundo do trabalho”) tampouco teria escapado da razia neoconservadora. Sua negação seletiva do âmbito da ordem e da lei – no que este possui de expressão dos privilégios de nossas elites – e em conformidade com uma perspectiva popular é motivo de debate: teria o malandro sido substituído pela figura do marginal, supostamente mais “em dia” com as contradições atuais da ordem burguesa?
É de se pensar, por isso, se o <crepúsculo da malandragem> não seria uma perspectiva mais reveladora para o futuro do que a ruína dos horizontes ligados ao liberalismo progressista e à esquerda revolucionária. A <morte do malandro>, se de fato ocorre, indicaria a perda de uma antiga força, não de (como defendem alguns) escamoteação dos conflitos brutais no âmago da sociedade brasileira, mas de resistência dos “de baixo” à completa integração na ordem capitalista. De qualquer maneira, é ao ensaio de Candido que devemos não apenas a delimitação desta problemática, senão também a demonstração (que inverte expectativas) de como a literatura pode revelar um conhecimento original sobre a realidade.
Raça, classe e história
Parece justo afirmar que Antonio Candido não pensava a literatura em termos raciais: uma literatura que fosse “negra” ou “branca”. O tema talvez seja tabu e demande mais elaboração do que permitem estas poucas linhas. A razão de não encará-la em termos raciais, gostaríamos de sugerir, residiria em questões de metodologia. É difícil afirmar que o crítico não tratou de uma “literatura negra” porque ignorasse a condição de opressão e as pautas políticas de primeira ordem das “minorias”; tampouco porque considerasse que a opressão racial não desempenha papel relevante nas obras de um escritor como, digamos, Machado de Assis ou Lima Barreto (para ficarmos apenas com os mais conhecidos). Ao contrário, como observador atento às expressões locais dos conflitos sociais, seu método crítico tendia a privilegiar tais conflitos em sua configuração concreta. Em outras palavras, para ele, seria difícil conceber um romance que fosse “apenas” negro (um negro universal, sem época e lugar), visto que toda questão racial está irremediavelmente trespassada pelas estruturas políticas e econômicas de cada período.
Em “De cortiço a cortiço” (1973), outro de seus ensaios fundamentais, o crítico tenta demonstrar – dessa vez lançando mão de um dito popular calunioso – como o romance de Aluísio Azevedo, O Cortiço (1890), está escorado em traços particulares assumidos pela luta de classes no Rio de Janeiro do século 19 e que ocorria às costas dos conflitos raciais e do aparato de noções pseudocientíficas que buscavam justificá-los. Indo um pouco além, acabava por demonstrar, na verdade, como os conflitos de raça e classe se uniam em condições muito brasileiras, como, por exemplo, a forte presença (menos marcante no resto da América hispânica) de “galegos/portugueses” na capital fluminense.
Trocando em miúdos, é dizer que as noções de raça e racismo estão atadas aos destinos de um país e, portanto, também à sua dinâmica interna de classe. Esta conjunção dará o tom de como o indivíduo experimenta, entre outras coisas, sua própria “cor de pele”: experiência que por fim será plasmada, junto às construções da própria língua, nas páginas de uma obra. Note-se que tal perspectiva não apenas visa resgatar o <problema do racismo> de sua generalização – o que equivaleria a rifá-lo por completo (“sempre existiu racismo”; “todos os racismos são iguais” etc.) –, reconectando-o assim a um historicismo rigoroso; como também aconselha a que não se desarticule as noções de “raça” e “classe” sob pena de recair-se em essencialismos e, assim, num divisionismo perigoso: tanto para as “minorias” quanto para a esquerda que possui, numa sociedade mais igualitária, o horizonte de aproximação e reconciliação social.
A “outra” formação
Recentemente, muito se falou esta palavra – formação –, quase sempre se referindo a um dos temas clássicos das ciências humanas no Brasil, presente no título daquela que é considerada a obra maior de Antonio Candido, Formação da Literatura Brasileira. No livro, abrangendo Arcadismo e Romantismo, entre 1750 e 1870, o autor historia a constituição de nossa literatura segundo seus nexos internos, inovando na concepção geral e aprofundando as análises particulares de autores e obras. Há, porém, outra acepção para a palavra formação no pensamento de Candido, e esta aparece com clareza em duas intervenções intituladas “A literatura e a formação do homem” (1972) e “O direito à literatura” (1989). A segunda é uma reelaboração crítica da primeira: o debate, em 1970, com os estruturalistas (sobre a qualidade do nexo social da arte) e com a censura da ditadura (uma verdadeira apologia ao “perigo” da integralidade da vida transmitida pela literatura), por exemplo, cede espaço (no texto de 1989) à relação entre literatura e Direitos Humanos, em chave progressista que, se ecoa os ventos da redemocratização, também se “atualiza” no espírito de transição acordada e gradual. Mas ambas exploram o valor insubstituível da arte na formação do ser humano, sem o que qualquer processo educacional estaria incompleto.
Estão conjugadas – neste apelo à literatura para a formação do sujeito – duas noções fundamentais. A primeira seria a de processo, que recusa, em chave lukácsiana, o niilismo decorrente de uma visão imediatista, encobridora das causas da desumanização cotidiana (o que subscreve a esperança sem cair em otimismo barato); e a de igualdade encarada a partir das “coisas do espírito”, que milita por justiça social ao mesmo tempo em que redimensiona a sua concepção, indo além das exigências puramente materiais. Se a formação do sistema literário, segundo Candido, se completou, esta “outra” formação (que fala ao sujeito) problematiza aquela: um sistema literário pujante não pode sobreviver sem o estímulo de um público leitor.
A invenção de um caminho
Impossível não tratar da forma de seus textos, fator que condensa todos os tópicos anteriores. Abordando o assunto, em “Adequação nacional e originalidade crítica”, Schwarz diz: “Ora, se houve um progresso em crítica neste século, ele com certeza esteve na ‘descoberta’ (…) da incrível complexidade interna da literatura, da natureza protéica da forma, e, sobretudo, do papel decisivo desta última”. Eis aqui, de fato, um dos legados maiores de Antonio Candido, cuja contribuição abrange desde uma interpretação do país (como exposto em “Dialética da Malandragem”) até (e muitas vezes se esquece) a delimitação de um campo de pesquisa e atuação específico da crítica literária. Se mesclamos neste ponto literatura e crítica é porque, para Candido, a <descoberta da forma> literária é também a descoberta da própria forma de exposição crítica, exposição esta desenvolvida, sobretudo, em seus ensaios.
Principalmente a partir da década de 1950 – alerta à vulgarização da crítica marxista de ranço “positivista” ou “sociologizante”, por um lado; bem como às interpretações de cariz mais ou menos “formalistas”, por outro –, Antonio Candido desenvolveu um estilo de escrita sutil, que atentava tanto ao diálogo que as obras mantêm entre si quanto à sua relação com a realidade social (o que ele chamou de “filiação de textos” e “fidelidade a contextos”). Esta providência do crítico assinala sua recusa a todo dogmatismo, atento como esteve sempre à “aclimatação” das ideologias e modelos estrangeiros nas plagas nacionais. Vale lembrar que, junto à sutileza, prezava também pela clareza da exposição, em consonância com suas convicções políticas e com o papel que a crítica, segundo acreditava, deveria assumir no esforço de transformação social.
Como disse José Guilherme Merquior, num artigo de 1988 dedicado à crítica brasileira: “o maior logro da crítica de Candido é se manter ‘dentro da vida’ sem apartar-se do texto. (…) Assim como o exemplo de sua serena resistência frente ao autoritarismo, a qualidade humanística de sua brasiliana literário-cultural tem brilhado muito alto, através de três decênios de modismos estéreis e desorientação intelectual”. A nota de Merquior sublinha a consistência e a perseverança do trabalho, norteado por uma leitura profunda da realidade brasileira e que, por isso mesmo, não se deixa superar facilmente. Dialogar com o professor Antonio Candido segue como uma tarefa desafiadora e recompensadora. E agora, talvez, ainda mais essencial.
*Fábio Salem Daie é pesquisador no programa de pós-graduação da Universidade de São Paulo.
(Publicado originalmente no site do jornal Le Monde Diplomatique)
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