A historiografia brasileira é pródiga em descobrir revoluções. Talvez, pelo fato de que nós nunca tivemos um evento digno de ser chamado de "Revolução", os autores falem tanto de revolução. Existe até mesmo um livro com o título: "Revoluções do Brasil Contemporâneo". Revoluções, no plural. Outros mais modestos falam de revoltas, sedições, insurreições etc. E até os golpistas preferem chamar os golpes de revoluções. Embora seja sempre possível descobrir grandes mudanças e transformações encobertas pela fachada de "pardieiros políticos". São as conhecidas "revoluções pelo alto", ou seja, as revoluções sem revolução", como diz Gramsci, ao tratar do caso da Itália no século XIX. País de capitalismo tardio - como a Itália - nossas "revoluções" são de fachada, de superestruturas jurídicas e políticas, não são "revoluções" propriamente ditas, enquanto processos sociais de longa duração, como queria Sérgio Buarque de Holanda. Ou são "revoluções" das classes dominantes, que atendem aos seus interesses.
Quando se trata de movimentos políticos do povo, da arraia miúda, são indisciplinas, sublevações da ordem e dos bons costumes. A isso é preciso acrescentar a "mitologia pernambucana" do estado-nação": o Brasil nasceu aqui, no marco zero, em Olinda ou nos Montes Guararapes etc. A produção de uma memória histórica a serviço da ordem, da identidade nacional, do espírito de coesão e unidade. Nisso nossos historiadores do "Instituto Histórico e Geográfico" são bons. Fabricadores de mitos, epopeias e legendas que, glorificando os feitos do passado, legitimam o presente, a dominação social do presente, abolindo as diferenças, as desigualdades.
Esse preâmbulo foi escrito para que pudesse falar do aniversário da chamada "Revolução de 1817" em Pernambuco, efeméride que já ganhou até cartazes do obscuro e incompetente governador do Estado. Neste ponto, temos de convir que a "revolução" tornou-se, há muito tempo, um campo semântico que pode ser ressignificado de acordo com os interesses do historiador ou de seus patrocinadores. Como mais um campo semântico, o evento que se quer revolucionário se presta as mais variadas formas de utilização, inclusive a da oligarquia pernambucana ora representada pela família Campos. Afinal, que "Revolução" foi essa, que já ganhou até um dia durante o ano para ser come morada?
Vamos situar a "Revolução de 1817" no marco histórico das rebeliões do período colonial contra a dominação portuguesa no Brasil e do moderno constitucionalismo liberal anglo-saxão. A importância desse evento, para além das festividades cívicas, está relacionada com a proto-história tanto da busca da autonomia política, por parte de uma província colonial, como pela instauração de um regime político contratualista entre Estado e Sociedade. Sem entrar na consideração do gesto desassombrado e corajoso dos que pagaram com a vida por terem participado da insurreição, mais importa chamar a atenção para o cadinho das inúmeras revoltas e insurreições que tomaram conta da nossa história colonial, ora só com a participação das elites ora com a participação de escravos e a população em geral.
Movimentos guiados pela ideia de autonomia e emancipação do jugo colonial lusitano e sua opressiva política fiscalista e arrecadadora, numa fase de empobrecimento da economia portuguesa, causada pelas emigração do campo para as cidades e a aventura ultramarina portuguesa. É quando a metrópole vai se tornando um mero entreposto entre as colonias do além-mar e a Inglaterra. A ação predatória da Coroa vai se intensificando sobre as possessões coloniais e vai suscitando mais revoltas e descontentamentos. O século XIX será palco de inúmeras sublevações no Brasil, beneficiando-se dos influxos externos, como a revolução americana, a revolução francesa, a revolução de quarenta e oito etc. Como já foi sobejamento demonstrado, havia uma influencia do pensamento liberal e constitucionalista nas Igrejas, mosteiros e outras corporações aqui na colonia portuguesa. A presença de autores e de obras políticas e jurídicas que anunciavam a nova era contratualista e liberal influenciou muito a mentalidade daqueles que animaram os movimentos de ruptura do pacto colonial, antevendo a instalação de um país livre e constitucional. Leia-se, por exemplo, o livro "O Diabo na livraria do Cônego" , onde se encontra a lista de livros e autores europeus lidos pelos mineiros da "inconfidência" . Era de se esperar que a infusão desse pensamento liberal produzisse seus frutos na abafada colonia de Portugal. E produziram.
A conhecida "Revolução de 1817", estudada por Amaro Quintas, Isabel Marson, Carlos Guilherme Mota e outros, foi um desses episódios da produtividade das idéias liberais e autonomistas em nosso passado colonial. Num momento crítico de constituição ou não da Monarquia portuguesa no Brasil. Caso tivesse vingado aquele movimento, o futuro de nosso país seria dominado por um conjunto de pequenas repúblicas, inviabilizando o projeto lusitano de construir um grande reinado na América do Sul. Frise-se que a dura repressão que se abateu sobre o movimento teve caráter preventivo e exemplar, com o objetivo de dissuadir outras tentativas provinciais de autonomia e constitucionalização.
Vem dai, certamente, a característica unionista e monárquica - autoritária - que ganhou o império brasileiro, sob a dinastia dos Orleans e Bragança. Caso tivesse triunfado a experiência pernambucana, dificilmente o projeto unionista e monárquico da casa de Bragança teria vencido. A excelência dos argumentos liberais e constitucionais de um Frei Caneca, imortalizada nas páginas do "Tifis pernambucano" ficaram para a História das Idéias Políticas, enquanto prosperou uma modalidade de Monarquia Constitucional" avessa a qualquer tentativa de federalismo e descentralização. O empréstimo da fantasia de um "Poder Moderador", tomado de Benjamin Constant na França, mal disfarçou o sempre presente poder interveniente do Imperador, fazendo e desfazendo os gabinetes, sob o pretexto de crise institucional.
É possível que os eventos ocorridos em Pernambuco tenham alertado Dom João Sexto e seus descendentes sobre a necessidade de uma intervenção militar rápida e eficiente, como foi feita em Minas Gerais, para preparar o caminho até a Monarquia Brasileira. Como se recorda, as rebeliões, insurreições e revoltas continuaram século dezenove a dentro, em várias províncias do reino português além-mar. Mas o tratamento impiedoso dado aos revoltosos da capitania de Pernambuco foi o sinal de que os colonizadores não tolerariam a difusão do pensamento liberal e constitucionalista entre nós, até um príncipe lusitano resolver "fazer" a independência da colonia e instaurar a sua modalidade de monarquia constitucional, autoritária, centralizadora e escravagista. Por tudo isso, as idéias dos inconfidentes de 1817 em Pernambuco merecem ser lembradas, estudadas e compreendidas no seu devido contexto histórico.
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE
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