segunda-feira, 2 de novembro de 2020
Crônica: Quincas Berro D'Água no bairro do Pina.
Não sei se o leitor já passou por uma experiência do tipo, mas ontem, depois da leitura de Quincas Berro D'Água, acordei, durante a noite, sobressaltado com a expressão utilizada pelo Quincas, quando lhe ofereceram água, em vez de pinga. Não é a primeira vez que isso ocorre, o que passou a me preocupar, sobretudo em razão de manter, como livros de cabeceira, as obras do escritor theco Franz Kafka, consultadas com regularidade, em razão de um romance em construção, bem ao estilo kafkiano. Soma-se a isso os recorrentes assédios dos quais somos vítima hoje, como consequência desse momento insano e fascista que estamos presenciando no país. Basta ser um democrata, defender o Estado Democrático de Direito, colocar-se contra o fascismo para tornar-se alvo preferencial de uma trupe doente, pervertida, abjeta, incapaz de uma convivência civilizada e humanizada. O fascismo é destrutivo. Destrói as pessoas, as instituições, o meio-ambiente, o diálogo,o argumento, a razão, já que eles se dizem sempre os únicos donos dela. Nesta querentena imposta pela Covid-19, aproveitei o momento para me aprofundar sobre a origem dessa patologia política - profundamente relacionada ao romantismo alemão - suas estratégias, sua propaganda, seu programa. O fascismo tem tudo isso muito bem definido. O projeto de poder da ultradireita é muito claro, algo que parece ter sido substimado pelas forças do campo progressista.
Num país como o nosso, onde as pessoas acreditam em perna cabeluda ou, como no passado, quando os agricultores eram convencidos a vir trabalhar em Paulista aos apelos dos aliciadores da Companhia de Tecido, afirmando que, no então distrito, eles encontrariam torneiras que jorravam leite, montanhas de cuzcus e paredes de rapadura, é bem possível dimensionar os efeitos maléficos de uma fake news, nesses tempos bicudos de pós-verdade.
Jorge Amado viveu em Salvador, mais precisamente residindo nas ladeiras do Pelourinho, 68, ainda em sua juventude. Alí, convivendo com personagens locais, Jorge produziu um dos seus romances mais festejados: Suor, ainda sob forte influência do realismo socialista, quando o autor de Gabriela Cravo e Canela era uma espécie de seu representante aqui no país, ao lado do alagoano Gracilaino Ramos, autor de Vidas Secas. Quando deixou o local para residir no bairro do Rio Vermelho, sua residência foi transformada na Casa Museu Jorge Amado, que guarda alguns objetos pessoais do escritor. Como disse, Suor é um dos melhores textos de Jorge. Na minha modesta opinião e na opinião do escritor alagoano, Graciliano Ramos, cujo nível de exigência dispensaria maiores considerações. Uma das grandes sacadas deste texto de Jorge - assim como em Capitães da Areia - é a descrição fidedigna do cotidiano dos seus vizinhos de bairro, descrevendo, em minúcias, suas adversidades, sua luta diária pela sobrevivência, a promiscuidade, os embates frequentes dos seus moradores, o odor de inhaca dos cortiços.
Até recentemente, um conhecido escritor pernambucano voltou a demonstrar um enorme entusiasmo por essa fase de arte engajada do escritor, sobretudo sobre seus reflexos na linguagem literária. Passada a refrega da experiência do socialismo real, o próprio escritor renegaria esse período, onde, segundo ele mesmo, ficava preso numa camisa de força, incapaz de desenvolver sua liberdade de escrever como gostaria, em razão dos limites impostos pela ideologia. O tema é tão polêmico que o dito escrritor resolveu programar uma de suas famosas oficinas para discutir o assunto. Ressalto aqui que, hoje, tem sido recorrente essa literatura, invocando problemas sociais, de violência de gênero, violência policial nas favelas.
Mas, voltemos à Quincas Berro Dágua. A primeira vez que li este texto estava no ensino médio, por recomendação de um professor. Foi uma leitura de um fôlego só, assim como sua escrita. Amado teria escrito o texto em dois dias. Como já havia lido Suor, literalmente, voltei a Salvador do Pelourinho, seu casario, suas ruelas estreitas, seus monumentos tombados, a Baixa do Sapateiro, a rua da Baixinha, a Praça Castro Alves, suas pensões, seus tipos, como prostitutas, travestis e maconheiros. Mas recentemente, entretanto, fiquei surpreso com a informação de que Quincas Berro Dágua não seria um morador típico de Salvador, mas um pernambucano do bairro do Pina, aqui no Recife.
Em suas férias, Jorge Amado costumava frequentar a província pernambucana, onde ficava hospedado na casa de um amigo, não deixando de apreciar seus encantos e recantos, como o restaurante Leite e a Praia de Maria Farinha, já na região metropolitana do Recife, na cidade de Paulista.Zélia relembra das frondosas mangueiras dessa residência, com seus frutos deliciosos. Jorge,possivelmente, experimentou o famoso licor de pitangas, no bucólico bairro de Apipucos, já que o sociólogo Gilberto Freyre era um habitué daquele restaurante, chegando a dar nome a um dos seus pratos: Medalhão à Gilberto Freyre. Numa dessas andanças, Jorge Amado teria ouvido o relato de um cidadão com tais características, que residia no bairro do Pina. A confissão teria sido feita pelo poeta Carlos Pena Filho. Quem poderia imaginar que Quincas Berro Dágua não seria um legítimo soteropolitano, dos becos e ruelas do Pelourinho, mas um pernambucano da gema, do bairro rebelde e alagado do Pina, frequentador dos seus bares, apreciador das belas bundas expostas ao sol, que tanto chamou a atenção do filósofo francês Michel Foucault quando esteve aqui na província? Mas este já é assunto para uma outra crônica, que compartilharei com vocês depois.
José Luiz Gomes
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