Qualquer coisa que ande sobre duas pernas é inimiga. Seja a cuidadora de sua enfermeira. Vá a uma prisão e recrie a cena central de A revolução dos bichos.
Paul B. Preciado, em Um apartamento em urano (Zahar).
O Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), criado em 1961 por um grupo de empresários do Rio de Janeiro e São Paulo e por oficiais que orbitavam em torno da Escola Superior de Guerra (ESG), foi (não só) disseminador de propaganda anticomunista e grupo de extrema-direita no Brasil, mas um núcleo golpista com agenda política própria. Ao lado dos militares, protagonizou o processo de ocupação da estrutura do Estado após (aquele!) março de 1964, funcionando regularmente até 1973.
A historiadora Heloisa Starling (UFMG), coautora de Brasil: uma biografia (Companhia das Letras), conta que o IPES sempre foi “uma organização de ingresso controlado e vida dupla”. Publicamente, se apresentava enquanto instituição de orientação política conservadora que se voltava para a realização de estudos e debates sobre o contexto sócio-histórico brasileiro. Reunia empresários e diretores de empresas multinacionais que tinham influência e atuação no país, dirigentes das principais associações de classe empresariais, militares, jornalistas e intelectuais. “Todos eram ostensivamente envolvidos em atividades de produção intelectual e de divulgação que contemplavam desde a edição de livros e filmes até a realização de palestras e pesquisas sobre a realidade brasileira”, pontua.
“O IPES agiu contra Goulart com uma política de duas vertentes. A primeira consistiu na preparação e execução de um bem orquestrado esforço de desestabilização do governo, que incluiu custear uma vigorosa campanha de propaganda anticomunista, bancar diversos tipos de manifestações públicas antigovernistas e escorar inclusive financeiramente grupos e associações de oposição ou de extrema direita. A segunda traçou estratégias de planejamento e de diretrizes para subsidiar um novo projeto de governo e de desenvolvimento para o país, aberto ao fluxo do capital internacional e vocação autoritária. Era um núcleo de conspiração golpista com agenda política própria; seus membros estavam estrategicamente informados e muito bem posicionados entre os conspiradores que derrubaram Goulart e durante o processo de ocupação da estrutura do Estado após março de 1964”, conclui Starling.
O instituto realizava edições, traduções, publicações e distribuía livros, revistas e folhetos. Comprava edições inteiras de livros publicados por outras editoras e tornava-as comercialmente viáveis, patrocinava feiras de livros com “literatura democrática” e tinha objetivo de atingir públicos variados. Um dos livros foi o Animal farm, conhecido pelo público brasileiro por A revolução dos bichos, de George Orwell (1903-1950). O livro é agora relançado pela Companhia das Letras com tradução de Paulo Henriques Britto e com o título de A fazenda dos animais.
Em conversa com Emilio Fraia, editor da Companhia das Letras, ele explica que essa nova edição pretende lançar luz sobre como A fazenda dos animais se tornou A revolução dos bichos quando lançado pela primeira vez no Brasil, em pleno 1964.
“Nossa ideia é contar esta história, abrindo um capítulo novo na trajetória brasileira deste livro tão importante — e pensamos que essa atualização/contextualização ganharia força se ao livro fosse devolvido o seu título original, A fazenda dos animais. A operação, a princípio, pode gerar alguma resistência (o título está há mais de cinquenta anos entre nós)”. Nas palavras de Fraia, o interesse é o de pensar o livro a partir de uma perspectiva diferente, a começar pelo título. “Como editor, espero que isso possa oxigenar a recepção da obra, sugerir novos caminhos críticos e de leitura”.
*
A história do livro é das mais conhecidas: os animais da Fazenda do Solar estão cansados da exploração a que são submetidos pelos humanos, se revoltam e tomam posse do lugar no intento de instituir um sistema cooperativo e igualitário. Não demora para que alguns bichos passem a usufruir de privilégios, fazendo com que o sistema de opressão que antes era elaborado pelos humanos passasse a existir de forma ainda mais forte e contraditória. Escrito durante a Segunda Guerra, A fazenda dos animais é uma grande sátira sobre governos autoritários, dispositivos de poder e suas formas sistemáticas e burocráticas de operação, ainda que tenha sido por tanto tempo considerado crítica fajuta ao regime soviético.
Orwell sempre foi crítico ferrenho de qualquer tipo de totalitarismo. Teve várias decepções com o regime soviético e mesmo tendo continuado a ser socialista — acreditava, na verdade, que o mito soviético “atrapalhava” o socialismo ocidental –, acabou por ver seu livro verter-se em propaganda contra o socialismo.
O Pernambuco conversou com Marcelo Pen, professor e doutor em teoria literária e literatura comparada pela USP e autor do posfácio desta nova edição, que explicou um pouco sobre o episódio um tanto orwelliano, diga-se, de como A fazenda dos animais tornou-se A revolução dos bichos e foi instrumentalizado como arma ideológica no Brasil.
Pen conta sobre quando notou o longo intervalo entre o lançamento do original, em 1945, e o lançamento da edição brasileira em pleno 1964. “Me pus a ler sobre a história da recepção dessa obra, no exterior e aqui: o papel da CIA e do serviço secreto inglês, a atuação da viúva do Orwell, o filme de animação e a atuação do IPES/Ibad, aqui no Brasil etc etc”, ele comenta. Até mesmo a CIA ajudou a divulgar o livro e a espalhar a ideia de que toda revolução descamba em um regime de horrores. Àquela altura, Marcelo havia notado que nada dessa história de manipulações era novidade; os fatos haviam sido contados e documentados fartamente, mas ainda se encontravam muito dispersos.
O livro foi traduzido pelo capitão Heitor de Aquino Ferreira, auxiliar mais próximo do general Golbery do Couto e Silva e seu discípulo de vida – foi também secretário de Golbery de 1964 a 1967 e de Ernesto Geisel de 1971 a 1979. Os arquivos do IPES, que possuíam dados de cerca de 400 mil brasileiros, serviram de base para Golbery criar o Serviço Nacional de Informações (SNI), em junho de 1964. Golbery coordenava a elaboração de diretrizes, projetos e difusão de doutrina do IPES. E Heitor considerava A fazenda dos animais um livro eficiente como propaganda anticomunista; o traduziu e enviou para a Editora Globo, de Porto Alegre. O IPES se encarregou de comprar parte da edição. Mais tarde, em 1966, o instituto bancou também a publicação de 1984.
É interessante pensar que os fatos sobre esse contexto não foram escondidos: foram esquecidos, deixados de lado. O público passou a receber A revolução dos bichos como “a” grande obra de Orwell e já não se pensava mais no título ou mesmo no fato de que se trata de uma versão da obra, historicamente e politicamente elaborada, por sinal, no contexto da ascensão do regime ditatorial brasileiro.
Nova edição
A fazenda dos animais faz parte de um projeto de reedição pela Companhia das Letras junto com outra obra de Orwell, 1984, que ganhou nova e belíssima edição pela editora. A ideia, segundo Fraia, é dar ao leitor opções variadas para estas obras emblemáticas. “Até o fim deste ano, aliás, teremos: 1984 nas edições especiais, Penguin, trade [tipo de brochura] e graphic novel (adaptada por Fido Nesti); A revolução dos bichos nas edições trade e graphic novel; e A fazenda dos Animais nas versões especial e Penguin”, diz.
“Acho que os leitores lerão a nova e ótima tradução do Paulo Henriques Britto e seguirão lendo A revolução dos bichos, na tradução do Heitor Aquino Ferreira. Novas edições com o título A revolução… fariam sentido hoje em dia? Não sei. Mas a tradução do Heitor, além de muito boa, é parte da história do livro, e a partir dela podemos pensar em aspectos importantes relacionados à política e literatura, tradução e política”, conclui Fraia.
A obra de Orwell ainda será retomada por outras editoras nos próximos meses. A L&PM vai publicar A fazenda dos animais em 2021, também seguindo a ideia de manter o título original de Orwell, com tradução assinada por Denise Bottmann. A editora Autêntica também vai lançar o livro, com tradução de Fabio Bonillo, e a Antofágica encomendou uma versão da fábula em português a Rogerio Galindo, que será publicada em 2021, ainda sem uma decisão sobre que título vai estampar a capa do livro.
*
A partir de seus escritos, Orwell sempre pareceu almejar que as histórias viessem à tona, que os fatos não fossem ocultos ou escamoteados. A importância desta nova edição reside não só na possibilidade de elaboração de novas chaves de leituras críticas para nós – afinal, um livro que critica a opressão burocrática, em contextos sócio-históricos atravessados por autoritarismos e totalitarismos, faz com que Orwell seja leitura importante nesses tempos em que vivemos no Brasil –, também esboça lição valiosa: se, como aponta este aforismo foucaultiano, “a política é a guerra continuada por outros meios” – e se esses meios se elaboram pelo tensionamento conflitivo do discurso político –, resgatar a história desse título e de seu apagamento é investir contra a instrumentalização de narrativas – substância essencial do projeto literário do autor – em tempos em que a verdade, conceito-chave ao pensamento e às práticas democráticas, vem tornando-se algo cada vez mais fragilizado.
Ao realizar uma arqueologia da criação orwelliana e dos movimentos políticos que sua obra traça, a nova edição nos aponta os perigos daquilo que passa despercebido e a impossibilidade de se “esquecer” por decreto.
(Publicado originalmente no Suplemento Pernambuco)
Nenhum comentário:
Postar um comentário