segunda-feira, 16 de novembro de 2020
Umbanda: a longa resistência do sagrado brasileiro
Umbanda: a longa resistência do sagrado brasileiro
O Brasil oficial tenta enterrar sua religião mais originária — por não querer se enxergar complexo. A Umbanda recria, no plano simbólico, uma realidade fragmentada. A gira não é só um ato de fé: é alternativa à história dos poderosos
OUTRASPALAVRAS
DESCOLONIZAÇÕES
por Fran Alavina
Publicado 13/11/2020 às 18:18
Por Fran Alavina
Por ocasião do dia nacional da Umbanda, em 15 de Novembro
Quem quiser contar a história do Brasil quer pela vias da mestiçagem, quer pelas vielas da exclusão não poderá fazê-lo sem passar pela constituição da Umbanda, pois sua compreensão não se dá como simples história da religião. Diferente de outros credos, não adentramos bem na Umbanda perguntando “qual Deus professa essa religião?”, mas sim: “Quem são esses que a praticam, quem são os espíritos que nela se manifestam?”
De fato, não obstante suas contradições, a Umbanda se assume como religião nacional, como modo de fazer sagrado tipicamente brasileiro. Contudo, ante o atual cenário questionamos: como uma religião que se orgulha de sua brasilidade é alvo, cada vez com maior truculência, da intolerância e da barbárie fundamentalista? Em outros termos: Qual Brasil se persegue quando se persegue a Umbanda e outras religiões afro-brasileiras?
Para esta resposta não caberia aqui o adágio segundo o qual, “o Brasil não conhece o Brasil”, se tal vale para outras realidades, não se trata da mesma coisas no caso das perseguições sofridas pelos umbandistas. Mesmo existindo muito desconhecimento e mistificação massiva sobre a Umbanda como religião, ou seja, ignorância travestida de senso-comum; na maioria dos casos, aqueles que perseguem a Umbanda sabem muito bem qual o seu alvo. Não se trata de perseguir apenas uma religião, mas também aquilo que de uma realidade fragmentada e excluída, ela repõe no plano simbólico do sagrado: perfazendo certa integralidade que o real ainda não é capaz de oferecer.
Com efeito, a Umbanda repõe no seu interior e dá visibilidade àqueles que foram por séculos apagados, extirpados da história oficial como “resíduos” de um certo Brasil oficial que enxerga a si mesmo de modo míope e intencionalmente obtuso: são os povos originários que desçam aos terreiros como espíritos de caboclos das mais diferentes nações; negros escravizados na figura popular das pretas e pretos-velhos, homens e mulheres que dão vida a uma sabedoria resistente capaz de ultrapassar as marcas do tempo e dos açoites; os malandros que sempre nos lembram que a vida não é ditada por um tempo único. Ou seja, tipos que um certo discurso de brasilidade oficial busca extirpar como escombros exóticos que não possuem lugar em uma ideia de nação que quer se projetar como naturalmente boa.
Ademais, sendo uma religião do transe, a capa do exotismo, causadora de estranhamento, é dada a Umbanda como se fosse algo natural. Pelas lentes do exótico, ela deve ser necessariamente considerada menor, deslegitimada em sua dignidade de sagrado, depois de feito isso, associá-la como sendo intrinsecamente má é um passo que já foi dado há muito tempo nas avenidas da intolerância.
Assim, não temos um “Brasil que não conhece o Brasil”, mas sim “um Brasil que nega o Brasil”. Isto é, em torno da perseguição à Umbanda também está em questão o problema nacional e o modo como a cultura brasileira se pensa: se é capaz de elaborar para si mesma uma imagem mais fiel de sua realidade, reconhecendo suas contradições, ou se assume completa e cinicamente um ponto de vista que “varre para debaixo do tapete” tudo aquilo que considera exótico, portanto indesejável.
Nesse sentido, contra a Umbanda preponderou uma serie de preconceitos que com o passar do tempo foram naturalizados como questões aparentemente óbvias que não precisariam ser discutidas. Se até a década de ’80 ainda era possível uma certa maleabilidade e aceitação da cultura umbandista como expressão legítima da cultura nacional – recordemos fenômenos como o exu seu Sete o Rei da Lira, que incorporado ao vivo no programa do Chacrinha comandou uma gira televisionada; a expressão artística de Clara Nunes tanto no seu gestual, quanto nas músicas que a mineira ajudou a perpetuar, ou na prática popular de que não haveria contradição em ir à missa no domingo e durante a semana tomar um passe com o preto velho – hoje tudo isto parece distante. Um país que migrou pouco a pouco de si mesmo.
Em outras palavras, uma certa ideia de nação e de brasilidade expressa na Umbanda foi sendo abandonada até chegar ao limite da execração e da busca de seu aniquilamento. Desse modo, saiu-se dos discursos que lhe negavam legitimidade religiosa – alocando a Umbanda na teia generalista do folclórico – até o topo da guerra de fé que hoje ela enfrenta.
Recordar mais um dia nacional da Umbanda é afirmar que existe vividamente uma fé constituída como brasilidade, sagrado que se mantém firme apesar das rasteiras da intolerância. Não apenas como expressão daquilo que o país foi e é em suas mais determinantes contradições. Na Umbanda também repousa um desejo ainda não alcançado: toda gira não é apenas um ato de fé, é uma alternativa à história oficial, é um desejo de nação dramaticamente atual.
(Publicado originalmente no site Outras Palavras)
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