Bloco Anti-Cárcere na Marcha da Maconha 2019 em São Paulo (Foto: Mídia Ninja)
O texto abaixo e que encerra 2020 foi escrito em coautoria com o assistente social, trabalhador da saúde mental e abolicionista, Lucas Alencar de Araújo
Tudo que nóis tem é nóis (Emicida)
Das traduções de Christie e Hulsman, nos anos 1990, aos primeiros seminários, cursos, palestras e livros brasileiros sobre abolicionismo penal, já na passagem para os anos 2000, é possível fazer algumas constatações. Por hoje, vamos nos concentrar em duas delas e seus desdobramentos.
A primeira é que este foi um debate marcado pela branquitude. Não apenas as pessoas que estavam ocupando aqueles espaços na academia e no mercado editorial eram majoritariamente brancas, mas também suas abordagens e apontamentos eram expressões dos incômodos, angústias e experiências brancas, assim como suas referências bibliográficas.
É curioso observar isso porque, quando falamos de justiça criminal, estamos falando de um sistema cujo fundamento, a inteligibilidade e a finalidade são racistas. É racismo de Estado por excelência, com muito pouco disfarce. No entanto, o abolicionismo penal enquanto movimento acadêmico, para ficar em uma das definições de Louk Hulsman, emergiu como um campo de debates e formulações entre pessoas brancas no Brasil.
E não é como se pessoas negras e os movimentos sociais antirracistas não existissem na mesma época, com críticas contundentes e fulminantes ao aparato penal. Mas como todo debate mobilizado, principalmente, a partir de operadores do direito, sobretudo ali na passagem entre os anos 1990 e 2000, o abolicionismo penal se constituiu como mais um espaço de hegemonia branca.
Dada a exiguidade do espaço e a incipiência destas linhas, não vamos conseguir aqui traçar uma genealogia de como esta conformação do abolicionismo penal brasileiro se tornou possível. Temos pistas, mas queremos apenas iniciar a discussão que nos parece incontornável. Vamos ficar apenas na constatação que pode ser aferida facilmente nas produções a que nos referimos (das quais também se pode ter uma ideia no texto inaugural desta coluna).
Essa constatação não se faz para diminuir a importância da produção abolicionista naqueles anos. Não há “porém” a ser inscrito sobre ela. Foi e é referência para nossas elaborações e lutas. O que buscamos é entender a branquitude como condição de possibilidade do debate abolicionista no Brasil para pensar as questões que se fizeram presentes e as ausências gritantes até aqui. Ou até há bem pouco tempo.
No livro da professora Ana Flauzina, Corpo negro caído no chão, já mencionado nessa coluna em outros momentos, a autora dirige a uma fração hegemônica movimento feminista questões que podemos entornar sobre nós, abolicionistas penais. Flauzina pergunta o que o feminismo eurocêntrico tem a dizer sobre e para as mulheres cujos filhos e maridos são assassinados pelo Estado todos os dias. Qual é o tratamento dado às mulheres que dão suporte a homens encarcerados? Como vivem as mulheres que têm que criar os filhos sozinhas, depois que o sistema de justiça criminal sequestra seus companheiros? Todas essas perguntas, responde a autora, não estão colocadas para o feminismo eurocêntrico porque não são problemas na vida de mulheres brancas.
Algo muito parecido se pode dizer do abolicionismo penal brasileiro, de forma que não são raros os enfrentamentos entre abolicionistas e pesquisadores(as) ou militantes antirracistas e/ou feministas, pois as questões abordadas pelos primeiros, com frequência, são expressões das urgências do pensamento e da performance de homens brancos juristas e acadêmicos.
A segunda constatação que fazemos, a partir da análise da emergência do abolicionismo penal no Brasil como campo intelectual e político marcado e definido pela branquitude, diz respeito a outra definição de Louk Hulsman: abolicionismo penal é movimento social. Durante muito tempo, o abolicionismo penal brasileiro foi pouco ou quase nada um movimento social. Acreditamos que isso é também uma decorrência de sua branquitude, sempre capaz de capturar resistências em versões de gabinete, para exibir pretensa superioridade moral, embora ausente de todo compromisso ético com as suas próprias formulações teóricas.
Mas se essas duas constatações nos parecem inescapáveis, também presenciamos e reconhecemos mudanças recentes muito significativas na produção dos abolicionismos penais. Muita gente jovem, negra, lgbttqia+, ativista/militante se apropriou do debate, ocupou os espaços e alterou seus rumos.
As inflexões e metamorfoses
trazidas pelos jovens
abolicionistas são caminhos
sem volta, que não pedem
licença ao serem abertos, e que
podem ser tomadas como efeito
da saúde e da força de um
abolicionismo penal que não se
detém nos gabinetes de vetustos
operadores do direito.
De um lado, questões como as demandas de familiares de vítimas da letalidade policial passaram a ser tratadas em pesquisas empíricas realizadas por abolicionistas penais. De outro, os movimentos de familiares e amigos de presos foram reforçados pela presença de abolicionistas, assim como aconteceu com as Frentes Estaduais pelo Desencarceramento, que surgiram das articulações da Pastoral Carcerária. Desde suas primeiras aterrisagens no Brasil, os abolicionismos penais nunca foram um movimento acadêmico tão robusto e um movimento social tão diverso como presenciamos hoje. Os fluxos entre o abolicionismo na academia e nos movimentos sociais são hoje tão intensos que não seria exagero dizê-los um só, tudo junto e misturado.
Todo esse redimensionamento gerado pela chegada de uma juventude negra e militante traz consigo os acúmulos de debates antirracistas muito anteriores ao abolicionismo penal, ao mesmo tempo em que incorpora as formulações mais recentes das perspectivas feministas decoloniais e anticoloniais. Para o campo abolicionista, traz tensões com os/as fundadores-juristas que um dia pretenderam fazer do abolicionismo um espaço fechado de debates muitos cultos para aliviar a consciência de se saberem operadores da máquina racista de extermínio conhecida como sistema de justiça criminal.
Na velocidade das redes sociais e na produção acadêmica que se sofisticou em decorrência da política de cotas nas universidades, os abolicionismos penais tecidos e trançados por uma leva de negros/as, nordestinos/as, lgbttqia+, influenciadores/as digitais, familiares de presos, dentre outros, têm encontrado resistências reativas entre os abolicionistas de primeira hora no Brasil, notadamente entre os que pertencem ao establishment jurídico/judicial, e que também dominam nichos editoriais e a produção de grandes eventos acadêmicos.
Talvez sejam necessários aqui parênteses para demarcar que, pela multiplicidade dos abolicionismos penais, estamos falando daqueles que se reivindicam antiprisionais ou antiproibicionistas, mas também antimanicomiais, de base teórica marxista e também anarquista, enfim, estamos falando de todas as frentes e maneiras pelas quais abolicionistas se apresentam e se afirmam, sem pretensão de julgar qual seria mais completa ou verdadeira.
Cabem aqui nesta crítica também os aliados da criminologia crítica e do garantismo penal, pois não são poucos os trabalhos e debates já produzidos em que o caráter branco, masculino e elitista desses parceiros foi problematizado por mulheres brancas, negros e negras, lgbttqia+ e outros. Por razões éticas e pelo compromisso que a coluna tem com tensões produtivas, trouxemos os abolicionistas para o centro da crítica, pois achamos melhor não cair no denuncismo alheio, sem fazermos uma reflexão sobre nós mesmos.
As formas que essas resistências reativas aparecem variam, mas não deixam de ter suas repetições e continuidades. Uma das principais é o pânico branco de ser apontado como racista porque, mesmo entre abolicionistas penais, racismo é muitas vezes compreendido como defeito moral. Apesar de debaterem e lutarem contra um sistema estruturalmente racista, alguns abolicionistas tratam a crítica ao racismo como ofensa pessoal. Diante disso, mobilizam o tríptico de notórios saberes, reputações ilibadas e pacto narcísico para protegerem o abolicionismo penal como se fosse um terreno do qual possuem o título de proprietários.
Mas não têm. Não poderiam ter.
Abolicionismo penal em terras
colonizadas é coisa de índio,
de preto, de travesti. É dos
sem-título, sem-teto, sem
emprego e sem plano de saúde.
Clóvis Moura, importante autor preto e comunista, em seu livro Rebeliões da senzala, cravou que negros e indígenas se aliavam a todo momento e em diversos períodos para destruir as forcas das fazendas de plantação café, símbolo significativo do poder punitivo escravocrata. Assim como também denunciava os conflitos entre os abolicionistas da elite branca e liberal com as rebeliões de mulheres e homens escravizados. Conflito que parece se repetir nos dias de hoje sempre que os alvos privilegiados se levantam contra quem pretende o privilégio da vanguarda.
É covardia se manter em silêncio diante do racismo. Coragem é saber que, entre nós, não há garantias nobiliárquicas contra críticas antirracistas e que se fazer abolicionista é se arriscar, todos os dias, ao confronto com aquilo que, em nós mesmos, oprime, limita e alimenta dinâmicas e saberes penais, do positivismo lombrosiano ao racismo recreativo das piadas sem graça.
Aline Passos é doutoranda em Sociologia pela UFS, mestre em Ciências Sociais pela PUC-SP, graduada em Direito também pela UFS. Professora de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)
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