pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO. : Drummond: Mito de começo, mito de origem
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quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

Drummond: Mito de começo, mito de origem

 Este texto foi apresentado na abertura da décima edição da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), em 2012, que homenageou Carlos Drummond de Andrade.

 

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O século XX é o irmão mais velho do poeta Carlos Drummond de Andrade, que nasce em Itabira do Mato Dentro no ano de 1902.

Em companhia do irmão mais velho, o menino Carlos vê o sulco de prata do cometa Halley a cortar em 1910 os céus de Itabira. Sabe da Grande Guerra de 1914–1918 pelos jornais da província e, entre germanófilo e descrente, vai trocando as calças curtas pelas compridas. Na década de 1920, já em Belo Horizonte, o rapaz vive a molecagem e a orgia das vanguardas internacionais. A “pedra no meio do caminho”, que publica, será divisora de águas, como uma tela de Pablo Picasso. Prepara-se para a vida pública. Forma-se em Farmácia, faz jornalismo e flerta com a política estadual. Dá certo o namoro com a política e, funcionário público federal na capital da República, descobre-se um poeta preocupado com o Homem, ser rebelde e precário, e com as grandes causas humanistas. Politiza-se à esquerda durante a Segunda Guerra Mundial. Luta com palavras e com outras armas contra a ditadura Vargas, o Eixo e a intolerância nazifascista. Com o russo entra em Berlim. Com o homem do povo Charlie Chaplin promete destruir o mundo capitalista e com o poeta francês Paul Éluard grafita a palavra Liberdade em todos os muros da cidade. A Segunda Guerra Mundial chega ao fim, cai o Estado Novo. Na busca de coerência entre arte e política, o poeta se filia ao Partido Comunista Brasileiro. Abandona as hostes getulistas, vivendo apenas da sua produção escrita. Ainda juntos — irmão mais velho e irmão mais novo — chegam à idade madura. O poema Versos à boca da noite constata: “Rugas, dentes, calva…”.

Já cinquentões, Século & Poeta entram pelos anos 1960. Veem crescer os jovens rebeldes nascidos na metade do século — os filhos de Hiroshima, como se disse na Europa, ou a multidão de universitários pertencentes ao war baby boom, como os americanos denominaram o fenômeno de maneira pragmática. São filhos de pais traumatizados pela chacina da guerra, do campo de concentração e da bomba atômica. Ao mesmo tempo, são jovens com o alto nível de escolaridade proporcionado pelas sociedades do chamado “Primeiro Mundo”. Vivem as riquezas ditas inesgotáveis do após-guerra e o clima da guerra fria.

Os novos universitários são cabeludos e radicais. Embalados pelas drogas e ao som do rock & roll, abrem as portas da percepção e declaram que os velhos — o século XX e os nascidos com ele — estão vendidos ao Sistema. Já não prometem destruir o mundo capitalista, começam a apedrejá-lo com os paralelepípedos das ruas de Paris. Se Século & Sistema aceitam de início a luta armada juvenil, amoldando-se aparentemente ao seu gosto anárquico e terrorista, é para logo retomarem o controle da situação. Nas últimas décadas de vida do poeta, Século & Sistema tornam-se repressivos, tradicionalistas e conservadores. Voltam os olhos para os regimes totalitários que sobreviveram à Segunda Guerra Mundial, para as formas autoritárias de controle da população civil e para a despreocupação da belle époque, fazendo o elogio da sociedade de consumo. O poeta maduro acompanhou o movimento geral do irmão mais velho, o Século XX, e passou a se deleitar com a lembrança da infância feliz em Itabira, ao mesmo tempo em que, no fio de alta-tensão da poesia, vivia os valores rurais e patriarcais, inscritos na “tábua da lei mineira de família”. Irmão mais velho e irmão mais novo sobrevivem no futuro do passado. Como diz Drummond em Menino antigo (1973): “Não sai para rever, sai para ver/ o tempo futuro”. E na coleção de poemas Esquecer para lembrar (1979), confessa: “Com volúpia voltei a ser menino.”

Até a década de 1950, o século XX tinha nascido para as grandes revoluções sociais pregadas pelo determinismo histórico inventado pelo século XIX. A estrutura socioeconômica da sociedade nossa contemporânea era idêntica à de um edifício frágil e carcomido, que tinha de ser demolido. No seu lugar, seria levantado o edifício justo e igualitário das utopias socialistas. Esse sentimento leva o poeta a predizer: “— Que século, meu Deus! diziam os ratos./ E começavam a roer o edifício.” De 1970 para cá, estamos compreendendo que o século XX sobrevive sob o signo de Marcel Proust e de À la recherche du temps perdu. Em busca do tempo perdido, acabam todos por passar pela experiência da madeleine e dos avós. Século das biografias e das autobiografias, século dos diários íntimos e das correspondências, século dos romances e poemas que são alimentados pela memória do artista. E tudo porque Freud descobriu, no apagar das luzes do século XIX, o inconsciente e a sexualidade infantil.

À medida que Carlos Drummond se aprofunda no inconsciente e na infância, restringe-se sua preocupação com a sociedade universal. Primeiro, restringe-se ao grupo nacional a que pertence e, em seguida, à célula familiar que se responsabiliza por ele. A crise do liberalismo dos anos 1930, gerada pelos regimes revolucionários tanto da esquerda quanto da direita, cuja redenção estaria na sociedade justa do futuro, acaba por encontrar a solução prática quando o cidadão descobre a sua comunidade e abandona as utopias universais, autodefinindo-se neoliberal. Ao final do século XX e no início do milênio, a comunidade é o melhor antídoto contra qualquer pensamento, qualquer ação revolucionária universal. Cultivamos o nosso jardim e redescobrimos o bom senso de Voltaire. A crise do liberalismo, enquanto sistema sociopolítico universal, não termina pelas utopias de esquerda ou de direita, mas pela… redescoberta do liberalismo.

Enquanto jovens, Século & Poeta gastam energia na rotina das boas ações sociais e do inconformismo político. Profissionais, racionalizam a integração ao Sistema como inevitável. E maduros, descobrem que eles e todos nós já estávamos no inconsciente e na família. E saímos em busca de nós mesmos. Mais sabidos e mais racionais, empilhamos livros, conhecimento, teorias, e deixamos a ação revolucionária transformadora do planeta para a geração seguinte. Ultimamente, com a ajuda do poeta Mallarmé, andamos redescobrindo que a carne, depois de lidos todos os livros, fica triste. “La chair est triste, hélas! et j’ai lu tous les livres”. E tome discussão sobre o prazer.

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O sucesso de público de Drummond, a validade do seu texto em termos estéticos, históricos e sociológicos, a unanimidade em torno da escolha da sua obra poética como a mais significativa do Modernismo brasileiro, tudo isso advém do fato de que a sua poesia dramatiza de forma complexa e original a oposição e a contradição entre Marx e Proust, entre a revolução político-social, instauradora de uma Nova Ordem Universal, e o gosto pelos valores tradicionais do clã familiar dos Andrades, seus valores socioeconômicos e culturais.

Ao fazer essa constatação, evitamos ver o conjunto dos poemas e livros de Drummond como articulados pela sucessão cronológica das publicações, ou como explicados pelo amadurecimento gradual do poeta. Preferimos, portanto, julgar o conjunto da obra como organizado por essas duas linhas de força paralelas e contraditórias. Ao ler os livros reunidos, temos, de um lado, textos poéticos que descrevem longa e minuciosamente o processo de decadência por que passa a oligarquia rural mineira nos seus constantes embates com a urbanização e a industrialização do Brasil e, do outro lado, poemas que traduzem a esperança em uma frutífera radicalização político-social, oriunda do otimismo gerado pelo movimento tenentista de 1930, otimismo este crítico da oligarquia rural onde, paradoxalmente, se situa o clã dos Andrades. Essas duas linhas de força se afirmam ou se negam, combinam-se, enroscam-se, enlaçam-se, caminham lado a lado, ocasionando a principal tensão dramática da poesia de Drummond.

De maneira nem sempre muito explícita, Drummond institui dois mitos como portadores das duas opções poéticas: o mito de começo e o mito de origem.

Por mito de começo entende-se o desejo de Drummond em inaugurar, por conta própria, uma nova sociedade em que pode negar totalmente os valores do passado rural e do clã. Rompe os laços de família, para poder afirmar com convicção e radicalismo os valores de individualismo e de rebeldia que julga justos para o estabelecimento de uma futura sociedade sem classes. Tal mito é representado, desde o século XVIII e na primeira poesia de Drummond, pela história de Robinson Crusoé, “comprida história que não acaba mais”, como está escrito no poema Infância, de 1930. Retirado da cultura europeia por causa de desastre marítimo, Robinson arriba sozinho a uma ilha deserta, onde tem de refazer todos os passos culturais do homem. Da solidão passa à descoberta do outro, Sexta-Feira, e se empolga com o retorno à vida social. O mito de começo é um mito de rebeldia, onde trabalho e heroísmo individual se casam. No caso da poesia de Drummond, é mito de negação do Pai como transmissor da cultura, e da Família como determinante da situação socioeconômica do indivíduo na sociedade. O passado não conta, só o presente. O mundo está para ser inventado pelo homem, desde que as mãos da solidariedade sejam dadas. Nos anos de A rosa do povo, Albert Camus torna paradoxal e engajado o cogito cartesiano: “Je me révolte, donc nous sommes”. A conscientização revolucionária da multidão tem a ver com o aprimoramento político do indivíduo enquanto rebelde.

Por mito de origem entende-se a vontade de o poeta Drummond inscrever seu projeto de vida numa ordem sociocultural mineira, em que os valores fortes da individualidade e da rebeldia perdem a razão de ser, já que são meros indícios de insubordinação passageira. Só são válidos e eternos os valores superiores do passado e da tradição. O poeta tira do rosto a máscara de Robinson Crusoé e descobre que, em si, nada vale: ele só é alguma coisa quando se identifica ao clã dos Andrades e é legitimado por ele. A ação do poeta na Terra não é uma aventura robinsoniana. A curta aventura humana no planeta é uma aproximação infinita da sabedoria dos antigos por uma nova geração, sempre menos preparada. Retorna o Filho à casa do Pai, para que, depois da insubordinação juvenil, possa assumir o seu lugar na família; volta ao lar para que seja o futuro Patriarca. Tal forma de exigência social está autenticada pela fé religiosa do grupo social — o catolicismo. A transmissão dos bens culturais se dá pela herança, assim como a transmissão dos bens econômicos. Ao se inserir na família mineira cristã e patriarcal, o poeta transcende sua vida e seu tempo, revelando seu eu autêntico na eternidade. O eu autêntico não é produto da alteridade rebelde e heroica, mas é a reprodução do mesmo, que se perpetua pela cadeia do sangue. Diz o poema Raiz: “Os pais primos-irmãos/ avós dando-se as mãos/ os mesmos bisavós/ os mesmos trisavôs/ os mesmos tetravós/ a mesma voz/ o mesmo instinto, o mesmo/ fero exigente amor/ crucificante/ crucificado”.

Rebeldia, insubordinação e aventura revolucionária, de um lado; arrependimento, reconhecimento tardio e obediência aos valores familiares, do outro.

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Já em poema que leva o sugestivo título de Infância, publicado em 1930, a não identificação com o Pai (e com a Família) vem associada com a leitura da história de Robinson Crusoé: “Meu pai montava a cavalo, ia para o campo./ Minha mãe ficava sentada cosendo./ Meu irmão pequeno dormia./ Eu sozinho menino entre mangueiras/ lia a história de Robinson Crusoé,/ comprida história que não acaba mais”.

Próximo dos seus, mas sozinho, o menino, com o livro nas mãos, começa a viver como se estivesse numa ilha banhada de mangueiras por todos os lados. Isola-se a criança quando o pai parte para o campo, a mãe se entrega à costura e o irmão mais novo ao sono. Nessa área de autoexclusão, a criança compensa a falta de companhia familiar, vivendo em aberto a aventura do livro. O menino vive como se fosse o próprio Robinson e, ao identificar-se a ele, admite como regra de vida a moral do "tudo é permitido" dostoievskiano. Quando a criança joga o livro para o lado, dá-se a Iniciação amorosa: “A rede entre duas mangueiras/ balançava no mundo profundo […].// E como eu não tinha nada que fazer vivia namorando as pernas morenas da lavadeira.// Um dia ela veio para a rede,/ se enroscou nos meus braços,/ me deu um abraço/ me deu as maminhas/ que eram só minhas […]./ Uma lavadeira imensa, com duas tetas imensas, girava no espaço verde”.

Longe da vida em família, no espaço de mangueiras, “espaço verde” (diz o poema), se situa a área do individualismo e da liberação e, também, da aventura sexual. Julgando-se um novo Robinson, o menino pratica ações transgressoras sem que sobre ele recaia julgamento moral ou social. Tudo o que é proibido na área familiar pode ser desejado e obtido na área de exclusão: a lavadeira “me deu as maminhas/ que eram só minhas”. O texto poético que fala de Robinson é também o texto que canaliza o discurso sexual transgressor.

Mat. Capa 5 Karina Freitas novembro.20

 

Se os poemas que seguem a estrutura provinciana que estamos revelando se orquestram em clave individual, diferentes são os poemas onde a rebeldia robinsoniana quer afirmar-se num centro urbano, cosmopolita, muito longe de Itabira. Ao se alongar para a capital da República, onde Getúlio Vargas usurpa o poder, e ao se propagar pelo mundo conturbado pela Segunda Guerra Mundial, a revolta que se dava contra a família visa a uma práxis política imediata e revolucionária que questiona não só a oligarquia rural como toda a organização socioeconômica e política do Ocidente. A rebeldia solitária quer transformar-se em práxis marxista. Diz o poema Nosso tempo: “O poeta/ declina de toda responsabilidade/ na marcha do mundo capitalista/ e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas/ promete ajudar/ a destruí-lo/ como uma pedreira, uma floresta,/ um verme”.

Chega o momento em que Drummond quer manter o almejado diálogo com o operário, atravessando — como prega Marx no Manifesto comunista — as barreiras de classe: “[…] hoje uma parte da burguesia passa-se para o lado do proletariado, principalmente o setor dos ideólogos burgueses que chegaram a compreender teoricamente o movimento histórico em seu conjunto”. Leiamos trechos do poema O operário no mar:

Na rua passa um operário. […] Para onde vai o operário? Teria vergonha de chamá-lo meu irmão. Ele sabe que não é, nunca foi meu irmão, que não nos entenderemos nunca. E me despreza… Ou talvez seja eu próprio que me despreze a seus olhos. […] Sim, quem sabe se um dia o compreenderei?

Poema das perguntas e da insegurança, do compromisso e da dúvida ideológica, da compreensão da marcha da história e das fraquezas do indivíduo frente a ela, O operário no mar é também onde se percebe nítida a negação de uma esquerda festiva em Drummond. Se houver compromisso do poeta com o operário, não haverá paternalismo. Para o intelectual pequeno-burguês é fácil dar o operário como irmão nas suas investidas literárias, mas não o é no seu dia a dia profissional e político. Entre o Operário e o Poeta, ergue-se a muralha da classe e da desconfiança mútua.

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Não se pense que o mito de origem venha depois, ou antes, do mito de começo numa ordem evolutiva ou histórica. No discurso poético de Drummond, os dois mitos coexistem e são responsáveis pela alta tensão dramática que salta de seus poemas, de seus livros. Se fosse preciso definir a integração dos dois mitos no todo do discurso poético drummondiano, teríamos de falar de recalque. Quando o mito de começo é recalcado, é porque brotam na superfície do poema os elementos do mito de origem — e vice-versa.

Assim é que o reconhecimento pelo poeta dos valores do clã dos Andrades é anunciado como “viagem de regresso”. Viagem de regresso ao “país dos Andrades”, com o fim de conhecer as figuras familiares que abandonam o menino entre mangueiras e são abandonadas por ele a partir do momento em que passa a viver na revolucionária ilha robinsoniana. Manifesta-se pleno o desejo de conhecimento do mecanismo social, da identidade única que organiza o relacionamento entre todos os membros do clã: “Que há no Andrade/ diferente dos demais?/ Que de ferro sem ser laje?/ braúna sem ser árvore?”.

Em viagem de regresso à área familiar, o Poeta reencontra os valores silenciosos do seu clã, da sua família nuclear e, pouco a pouco, compreende sua discreta e tirânica razão de ser, isto é, seu poder de funcionamento alheio à vontade e aos anseios mais fortes do menino solitário e do homem precário e rebelde que se politizou à esquerda.

Foi preciso que o menino Drummond perdesse primeiro os familiares, foi preciso que o poeta maduro construísse um mundo utópico alheio a ele, para que depois, ao final da vida, os recuperasse pela palavra poética na série de livros intitulada Boitempo. Leiamos o poema Comunhão. De início o Filho se situa fora da roda do clã, em atitude de distanciamento e de contemplação. As figuras da roda — descobre ele quando vê a cena do centro — não têm faces e só são reconhecíveis pelo que dizem em silêncio. No momento em que o excluído entra na roda da família, abandonando a sua posição de espectador, ilumina-se toda a cena, todas as faces anônimas se acendem. O Filho assume a família no momento em que aceita sentar no lugar vazio que estava à sua espera, previsto e designado para ele pelos antigos: “Todos os meus mortos estavam de pé, em círculo,/ eu no centro./ Nenhum tinha rosto. Eram reconhecíveis/ pela expressão corporal e pelo que diziam/ no silêncio de suas roupas além da moda/ e de tecidos […] / Notei um lugar vazio na roda./ Lentamente fui ocupá-lo./ Surgiram todos os rostos, iluminados.”

Ao se identificar aos familiares mortos, o poeta esboça um primeiro passo em busca da origem e de seus valores sociais e econômicos. A figura do Pai, de longe e em aparente descaso pelo Filho, arma o palco da origem. Nele, o Poeta, como novo filho pródigo, representa a volta ao lar, desmistificando a artificialidade de sua palavra de começo. Representativos da dramaticidade do conflito entre indivíduo e família, entre começo e origem, são alguns versos de Como um presente, poema escrito para comemorar o aniversário do pai já morto: “A identidade do sangue age como cadeia,/ fora melhor rompê-la. Procurar meus parentes na Ásia,/ onde o pão seja outro e não haja bens de família a preservar./ Por que ficar neste município, neste sobrenome?/ Taras, doenças, dívidas: mal se respira no sótão./ Quisera abrir um buraco, varar o túnel, largar minha terra, […]/e inaugurar novos antepassados em uma nova cidade”.

O poeta teria querido apagar da memória todo traço de hereditariedade e o peso da responsabilidade para com os antigos; teria querido circunscrever só para ele a existência dentro de uma redoma neutra, pouco exigente e inaugural, semelhante a uma tábula rasa. Restaria, pois, ao poeta pôr em prática um absurdo paradoxo: “inaugurar novos antepassados em uma nova cidade”. Mas sob o signo de Proust e do tempo perdido, são os antepassados que, ao ditar autoritariamente nossos passos e nossas normas de comportamento, nos inauguram, determinando-nos social e economicamente.

Contra o paradoxo da rebeldia contra os antigos se insurge, à maneira de vacina instilada gota a gota, a ciência do sangue que, como diz o poema Escritório, é “soprada por avós tetravós milavós”. E é através do lento aprendizado da ciência do sangue que se recebem os bens de família, bens simbólicos que, em última e derradeira instância, determinam a posição sociopolítica e econômica do Poeta. Seu lugar no clã dos Andrades, o lugar do clã na comunidade, na Nação. Inexoravelmente, tradição e conservadorismo invadem as páginas do tardio Proust mineiro, confundindo-se nos poemas o patriarcalismo na família e o mandonismo na vida política local. Patriarca e coronel ressurgem das cinzas pela força da palavra poética: o futuro do passado.

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Como estamos vendo, existem pelo menos dois Drummonds na sua poesia. O primeiro compreendeu de maneira inigualável “o tempo presente, os homens presentes”. Teria se assustado com o trabalho sangrento que o bisturi poético faz nas chagas sociais do nosso tempo? Escreve em Claro enigma, livro publicado em 1951: “Escurece, e não me seduz/ tatear sequer uma lâmpada. /Pois que aprouve ao dia findar,/ aceito a noite.”

Na década de 1950, Drummond passa o bastão de revezamento da crítica social para o jovem João Cabral de Melo Neto. Este, ao abandonar a estética mallarmaica então em vigor, busca uma poesia de maior eficácia política. Receoso do compromisso ético e ideológico que o sujeito do poema pode manter com o assunto tratado, João Cabral resolve retirar do discurso poético todo resquício de subjetividade, como se dá no poema dramático Morte e vida severina (1956). Como bom fenomenólogo que é, haja vista a discussão sobre teoria poética que está na plaquete Psicologia da composição (1947), Cabral mostra a miséria nordestina tal como ela é, e não tal como o diplomata ou o Poeta a vê.

Por outro lado, Cabral evitou o perigo que Drummond, o segundo Drummond, assumiu autobiograficamente: conhecer em profundidade todos os valores que determinaram o homem-poeta no processo de sua realização econômica, social e política. E esses valores — espero que tenha ficado claro — são os valores do velho latifúndio mineiro. Ao assumir o discurso do Pai, do Patriarca, Drummond foi-se esquecendo de continuar a esquadrinhar com os olhos o caminho de luz que os faróis do carro poético abriam à sua frente, como o tinha feito em Sentimento do mundo (1940). Passou a ficar embevecido com a paisagem antiga que lhe enviava o espelho retrovisor. Instalado de novo — e poeticamente — no antigo Sobrado mineiro, descobre-o muito acima dos mortais. Entre o Sobrado e a Rua, uma escada reveladora:

É teatral a escada de dois lances
entre a rua e os Andrades.
Armada para a ópera? ou ponte
para marcar isolamento?


(Publicado originalmente no site do Suplemento Pernambuco)

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