Ainda no primeiro ciclo do ensino fundamental, que hoje recebe a nomenclatura de fundamental I, conquistamos o primeiro lugar num concurso de redação promovido pela escola onde estudávamos. Aluno rude para aprender a ler - aquele que deu tanto trabalho a Dona Maria José Tavares de Lima, nossa inesquecível professora primária - depois que aprendemos, passamos a ler tudo que encontrávamos pela frente. Líamos e colecionávamos de tudo, acumulando muitas pastas pela casa, tratando de todos os assuntos possíveis e imagináveis. Sabíamos de cor as datas e os nomes dos grandes cientistas que estiveram envolvidos na conquista da lua; os piores acidentes de avião; o enriquecimento do urânio; as ocorrências sinistras no Triângulo das Bermudas; o assassinato de John F. Kennedy; o escândalo Watergate; os artigos que o antropólogo Gilberto Freyre publicava, todas as quintas-feiras, no Diário de Pernambuco.
Depois, descobrimos que não estávamos sozinhos nessa maluquice. Existia um outro cidadão que enchia as paredes do seu quarto com recortes de jornais e revistas, o que lhes permitia acompanhar todas as ondas de mudanças sociais: Alvin Toffler, escritor americano. Saber que estávamos bem acompanhados nos proporcionaram algum conforto emocional, porque as pessoas censuram uma eventual bizarrice neste ato. Por outro lado, isso nos permitiam apresentar os melhores trabalhos do colégio nos círculos subsequentes de ensino. Não tínhamos concorrentes no fundamental II.
Se isso nos permitiam apresentar os melhores trabalhos escolares, certamente, deve ter contribuído para que fizéssemos aquela redação prestigiada pelo pessoal do colégio. Sempre ocorreram esses vieses em concursos desta natureza. Hoje, por exemplo, em tempos de identitarismo, participar de um concurso literário sem uma obra que aborde a questão do empoderamento feminino, minorias como quilombolas, indígenas ou grupos LGBTQIA+, você já entra em desvantagem. À época do concurso da escola existia um conjunto de pessoas que defendiam, se identificavam ou eram patrocinadas pelo oligarquia industrial local.
A hegemonia dessa oligarquia era tão onipresente na cidade que até a atuação da Igreja Católica no município ocorria sob os auspícios do grupo industrial, que cedia espaços físicos, nomeava padres e até construía igrejas. Mas, ainda bem que existem as dissidências mesmo dentro dessas organizações. Por essa época já haviam algumas pastorais da Igreja Católica Progressista atuando no município, em defesa do interesses dos trabalhadores. Hoje, passados esses anos, estamos convencidos de que o voto da ala progressista da Igreja foi decisivo para a nossa premiação naquele certame, mesmo que a redação fizesse referência a um tal de Roberto do Diabo, líder sindical que implantou o primeiro sindicato de tecelões da cidade.
Roberto do Diabo tornou-se uma espécie de herói entre os moradores da vila operária. Inimigo declarado da oligarquia industrial, perdeu sem emprego na indústria têxtil e, consequentemente, precisou entregar a casa onde residia com a família. Como se recusasse a cumprir a determinação, num ato execrável, sua residência foi destelhada pela milícia dos poderosos locais. Fatos como este são tratados em capítulos do nosso primeiro romance, Menino de Vila Operária, que aguarda uma segunda edição. Mas, a invocação a tal episódio é por um bom motivo. Entre os doze alunos que conquistaram a nota mil na redação do ENEM, há uma pernambucana, de Belo Jardim, a quem parabenizamos e dedicamos a crônica de hoje.
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