ÉPOCA teve acesso a documentos inéditos produzidos pelo Cenimar, o serviço de informações da força naval. Eles revelam o submundo da repressão às organizações de esquerda durante a ditadura militar
Confira a seguir um trecho dessa reportagem que pode ser lida na íntegra na edição da revista Época de 28/novembro/2011 |
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Uma caixinha de papelão do tamanho de um livro guardou por mais de três décadas uma valiosa coleção de segredos do regime militar implantado no Brasil em 1964. Escondidas por um militar anônimo, 2.326 páginas de documentos microfilmados daquele período foram preservadas intactas da destruição da memória ordenada pelos comandantes fardados. Os papéis copiados em minúsculos fotogramas fazem parte dos arquivos produzidos pelo Centro de Informações da Marinha (Cenimar), o serviço secreto da força naval. Ostentam as tarjas de “secretos” e “ultrassecretos”, níveis máximos para a classificação dos segredos de Estado e considerados de segurança nacional. Obtido com exclusividade por ÉPOCA, o material inédito possui grande importância histórica por manter intactos registros oficiais feitos pelos militares na época em que os fatos ocorreram. Para os brasileiros, trata-se de uma oportunidade rara de conhecer o que se passou no submundo do aparato repressivo estruturado pelas Forças Armadas depois da tomada do poder em 1964. Muitos dos mistérios desvendados pelos documentos se referem a alguns dos maiores tabus cultivados pelos envolvidos no enfrentamento entre o governo militar e as organizações de esquerda.
A mensagem |
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Para os brasileiros A investigação da Comissão da Verdade pode mexer com tabus da direita e da esquerda Para os militares Ainda há muitos documentos da ditadura militar a divulgar |
As revelações mais surpreendentes estão nas pastas rotuladas de “Secretinho”, uma espécie de cadastro dos espiões nas organizações de esquerda. Fichas e relatórios do Cenimar identificam colaboradores da ditadura, homens e mulheres, que atuavam infiltrados nas organizações que faziam oposição, armada ou não, ao regime militar. Agiam dentro dos partidos, dos grupos armados e dos movimentos estudantil e sindical. O trabalho dos informantes e agentes secretos era pago com dinheiro público e exigia prestação de contas. Muitos infiltrados eram militares treinados pelos serviços secretos das Forças Armadas que atuavam profissionalmente. Outros foram recrutados pelos serviços secretos entre os esquerdistas, por pressão ou tortura. Havia ainda dezenas de colaboradores eventuais, simpatizantes do regime, que trabalhavam em setores estratégicos, como faculdades, sindicatos e no setor público. A metódica organização da Marinha juntou relatórios, fotografias, cartas e anotações de agentes e militantes.
Reveladores, os papéis microfilmados divulgados por ÉPOCA antecipam alguns dos debates mais importantes previstos para a Comissão da Verdade, cuja lei de criação foi sancionada recentemente pela presidente Dilma Rousseff. Aprovada pelo Congresso, a comissão foi criada com o objetivo de esclarecer os abusos contra os direitos humanos cometidos, principalmente, durante a ditadura militar. Se investigar a fundo o que se passou nas entranhas do aparato repressivo, chegará à participação de militantes de esquerda nas ações que levaram à prisão, à morte e ao desaparecimento de antigos companheiros.
Durante a luta armada, as acusações de traição muitas vezes determinaram justiçamentos, com a execução dos suspeitos pelos próprios integrantes das organizações comunistas. Isso aconteceu com Salathiel Teixeira, militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) que integrou o revolucionário Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), dissidência do “Partidão” que migrou para a luta armada. Salathiel terminou morto por companheiros por suspeita de ter fornecido, sob tortura, informações aos órgãos de repressão. Os documentos da Marinha mostram como Maria Thereza, funcionária do antigo INPS do Rio de Janeiro e amiga de Salathiel, foi recrutada e paga para ajudar a prendê-lo em 1970. A prisão de Salathiel foi chave para a prisão de dirigentes do partido (leia mais na reportagem).
O Cenimar representava a Marinha na poderosa comunidade de informações do governo militar, que incluía também os serviços secretos do Exército, da Aeronáutica, da Polícia Federal e das polícias Civil e Militar. O marco inicial da estruturação dessa rede que investigava e caçava inimigos dos militares foi a criação do Serviço Nacional de Informações (SNI), em 1964, pelo então coronel Golbery do Couto e Silva, um dos homens fortes dos governos dos presidentes Humberto de Alencar Castelo Branco, Ernesto Geisel e João Figueiredo.
Para compreender bem o confronto sangrento entre as Forças Armadas e as organizações de inspiração comunista, é necessário lembrar o contexto da época. O mundo vivia a Guerra Fria, período de polarização ideológica em que Estados Unidos e União Soviética disputavam o controle de regiões inteiras do planeta. O Brasil importou o conflito internacional. O governo militar tinha o apoio dos Estados Unidos, e parte da oposição aderiu aos regimes comunistas, com forte influência de Cuba e China. O PCB se dividiu em dezenas de siglas adotadas por grupos radicais que adotaram a luta armada como instrumento para a derrubada dos militares. O PCB defendia a via pacífica para a chegada ao poder. Nem assim escapou da perseguição do aparato repressivo e muitos de seus seguidores foram mortos e desapareceram com a participação direta da comunidade de informações. Dentro do PCB sempre se soube que a ação de agentes infiltrados teve grande responsabilidade nas prisões dos comunistas. Os documentos do Cenimar revelam que um discreto dirigente do PCB em São Paulo, Álvaro Bandarra, fez um acordo com os militares em 1968 para colaborar com a caçada aos integrantes do partido.
Os documentos do Cenimar mostram ainda como agiram os espiões para ajudar no desmantelamento de algumas das dissidências do PCB. Os agentes infiltrados pela Marinha tiveram importante participação na derrocada do PCBR, da Ação Libertadora Nacional (ALN), da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) e da Frente de Libertação Nacional (FLN). Os militantes viviam escondidos em casas e apartamentos, chamados por eles mesmos de “aparelhos”. Num tempo em que não havia telefone celular nem internet, marcavam locais de encontro, conhecidos como “pontos”, com semanas ou meses de antecedência para garantir o funcionamento das organizações. Num desses “pontos”, descoberto por um agente secreto de codinome “Luciano”, morreu Juarez Guimarães de Brito, um dos líderes da VPR, procurado pelo governo por ter comandado o lendário assalto ao cofre do ex-governador de São Paulo Adhemar de Barros.
Os arquivos da Marinha revelam também como os comunistas subestimaram a força da ditadura e cometeram erros infantis que facilitaram o trabalho da repressão. Num tempo em que os grampos telefônicos já eram comuns, guerrilheiros tramavam ações armadas e falavam despreocupadamente ao telefone. Também convidavam para participar de grupos de ação armada pessoas que mal conheciam, o que facilitou a infiltração dos agentes secretos. A fragilidade das organizações de esquerda permitiu a infiltração do fuzileiro naval Gilberto Melo em entidades do movimento estudantil no Rio de Janeiro.
A história de Gilberto guarda grande semelhança com a do mais conhecido dos agentes duplos da ditadura, José Anselmo dos Santos, conhecido por “Cabo Anselmo”. Anselmo se tornou conhecido ainda antes do golpe como presidente da Associação dos Marinheiros, um dos focos de agitação durante o governo de João Goulart, e depois se infiltrou em organizações da luta armada como informante da repressão. Gilberto passava os dias perambulando pelo restaurante Calabouço, local de encontro dos estudantes e de organização das manifestações contra o regime militar. Ele viu quando o secundarista Edson Luiz Lima Souto foi morto durante uma manifestação por policiais no Calabouço, com um tiro no peito, no dia 28 de março de 1968.
Nos dias seguintes à morte de Edson Luiz, Gilberto, conhecido no Cenimar como Soriano, participou das manifestações desencadeadas pelo assassinato, que culminaram na famosa passeata dos 100 mil, em junho de 1968, no Rio de Janeiro. Gilberto incorporou tanto o disfarce que terminou preso duas vezes. Foi espancado e torturado como se fosse um esquerdista. Nunca revelou que era agente secreto. A morte de Edson foi um dos fatos mais marcantes daquele período, que culminou com o recrudescimento da repressão pelo regime militar e a implantação do Ato Institucional Número 5 (AI-5) no final de 1968.
Os papéis microfilmados constituem um valioso acervo para a compreensão dos métodos empregados pelos órgãos de repressão. Por razões óbvias, nos registros não constam as práticas mais hediondas, como tortura, prisões ilegais, assassinatos ou desaparecimento de pessoas. Mas eles têm o mérito de expor personagens e mostrar o roteiro das perseguições aos inimigos do regime. Os relatórios do Cenimar também registram o envolvimento de oficiais da Marinha. Eles controlavam a rede de espiões espalhados pelo país, chefiavam as equipes de busca e coordenavam os interrogatórios. “Documentos que mostram relatórios de informantes, contratações e atuação direta são raros”, afirma Carlos Fico, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, um dos principais historiadores do período militar. “Provavelmente (esses documentos) deveriam ter sido expurgados. Por algum motivo, alguém os salvou.”
O expurgo mencionado por Fico foi concretizado no acervo do Centro de Informações da Aeronáutica (Cisa). O Cisa fazia o mesmo trabalho do Cenimar. Também tinha agentes e controlava elementos infiltrados em organizações de esquerda. No início do ano, o Arquivo Nacional abriu a consulta aos documentos acumulados pelo Cisa e entregues um ano antes pela Aeronáutica. Mas quem for até lá em busca de documentos como os do Cenimar vai se decepcionar. Não há nada que leve à identidade de agentes e informantes, seus relatórios, comprovantes de pagamentos, material que existe fartamente nos arquivos obtidos por ÉPOCA. Procurada, a Marinha afirmou desconhecer os documentos do arquivo secreto. “Não foram encontrados, no Centro de Inteligência da Marinha, registros pertinentes aos questionamentos apresentados”, afirmou o contra-almirante Paulo Maurício Farias Alves, diretor do Centro de Comunicação Social da Marinha.
Até hoje, a história da ditadura militar no Brasil se revelou aos poucos, em imprevisíveis divulgações de documentos, relatos contraditórios de militares e incompletas declarações dos perseguidos pelo regime militar. Menos de três décadas depois de restaurada a democracia, ainda existem importantes segredos. Nas próximas semanas, ÉPOCA publicará novos capítulos dessa história ainda desconhecida.
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