O avanço exponencial da criminalidade violenta, que se verifica no país desde 2017, guarda relação com o processo de criminalização da política. Se esta não chega a ser uma hipótese original, a reflexão sobre o nexo entre os dois fenômenos ainda está por ser feita, e na verdade é tarefa urgente, diante do risco da degeneração da vida social e política, com a barbárie das ruas, e com o avanço de milícias e de neofascistas, sempre prontos a requentar seus remédios autoritários.
É uma velha lição sociológica que uma sociedade de mercado, que opera com a ideologia de que todos devem ter como projeto de vida o sucesso material, mas que não leva a sério o primado da igualdade de oportunidades, torna-se muito propensa à expansão da criminalidade. Em condições normais esse é o caso do Brasil, que desde as últimas décadas vem caminhando para se tornar um dos campeões do encarceramento, com a criminalização de parcela significativa de sua juventude pobre, negra e periférica. Mas a situação se tornou explosiva, pois a essa configuração sociocultural se juntou o efeito devastador produzido pela ideia de que a classe política e a elite empresarial são corruptas e que, afinal, traem a confiança da população.
Em diversas cidades, grandes e médias, os indicadores de criminalidade acusaram em 2017 uma escalada de homicídios, latrocínios e de outros crimes violentos. Além disso, cresceu, assustadoramente, o número de indivíduos mortos e feridos, incluindo policiais, por “balas perdidas”. Mas não há melhor evidência de que a situação está fugindo do controle das impotentes forças de segurança pública estaduais do que a frequência com que as Forças Armadas têm sido solicitadas para atuar em face da violência urbana. Com a decisão de intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro, que acaba de ser tomada, a situação chega ao seu estertor.
O mais grave, porém, é que esse ambiente torna especialmente atraente o mercado brasileiro para o comércio clandestino de armas de grosso calibre, boa parte delas de guerra. Fortemente municiadas, quadrilhas novas ou já existentes se tornaram da noite para o dia mais violentas e com grande poder de intimidação, o que levou a um crescimento do roubos quase sempre seguidos de morte, de cargas, de carros forte, de caixas eletrônicos, mas também de motoristas, passageiros de ônibus, ou simplesmente pedestres. Disso se segue um correlato processo de avanço de organizações criminosas em presídios que, na luta por poder, promovem banhos de sangue.
No Rio de Janeiro, tal situação já assume status de tragédia humanitária, na medida em que máquinas mortíferas estão sendo ordinariamente utilizadas por todo tipo de criminoso, inclusive de jovens traficantes de pés descalços. E contra isso, as autoridades de segurança pública locais insistem em fazer a única coisa que lhes ocorre, a saber, as covardes e estúpidas operações policiais em favelas que, diversamente do que sustenta a justificativa oficial, só tem estimulado o aumento do poderio bélico dos traficantes, aquecendo ainda mais o mercado para as armas de guerra – além de gerar muito sofrimento e dor, aprofundando a descrença da população na autoridade policial.
Como chegamos a esse quadro desolador? Nossa hipótese é a de que já não podemos explicar a explosão da violência e da criminalidade, adotando apenas as premissas clássicas, que a relacionam às variáveis ecológicas, do nexo existente entre manchas de criminalidade e as especificidades dos territórios da cidade, ou simplesmente à relação entre pobreza, desigualdade e criminalidade. Tais dimensões seguem sendo importantes, mas não explicam a crise civilizacional em que nos metemos. Para compreendê-la, é preciso relacioná-la com a criminalização da política.
Acusar políticos de corruptos é uma velha prática no país, frequentemente utilizada como arma da oposição, para desgastar a imagem de uma liderança ou de um governo. O efeito dramático do clima de “mar de lama” criado pela oposição, por meio da imprensa, para atacar Vargas, e que o levaria ao suicídio, em 1954, é certamente emblemático demais para que precisemos insistir na questão. O que é inédito na cena atual, e estonteante pela velocidade com que ocorreu, é a acusação generalizada dos políticos e de suas instituições, e não apenas de corruptos no sentido mais usual do termo, mas de terem formado quadrilhas que se comportam como crime organizado. Para entendermos como esse deslocamento semântico se deu, retirando a corrupção do terreno do embate político e levando-a para a esfera criminal, precisamos voltar a 2013.
Em agosto de 2013, a então presidente Dilma Rousseff sanciona as leis 12.846 e 12.850. A primeira, é apelidada de “lei anticorrupção”, por dispor sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública. Seu objetivo é o de criar mecanismos para tornar mais efetiva a punição dos corruptores, e por isso mira nas empresas e empresários, com especial atenção às fraudes em licitações. E como instrumento de investigação, prevê o “acordo de leniência”, que consiste em acordos firmados entre infratores e os respectivos órgãos responsáveis pelos processos de investigações criminais.
A segunda lei, logo apelidada de “lei do crime organizado”, redefine o conceito de crime organizado, estendendo seu alcance ao funcionalismo público. Seu objetivo declarado é o de atingir o narcotráfico, quadrilhas de sequestradores e, também, os crimes de colarinho branco. E para isso prevê o uso da “colaboração premiada” como instrumento de investigação e de produção de provas. Ainda que esse estatuto já figurasse no direito brasileiro desde a lei dos crimes hediondos, de 1990, é com essa lei de 2013 que passará a ser efetivamente entronizado como recurso processual. A lei, vale lembrar, reserva uma seção para regulamentar a “colaboração premiada”, dedicando-lhe três artigos, subdivididos em diversos incisos e parágrafos. Em suma, enquanto na lei de combate ao crime organizado estabelece-se o princípio da delação premiada celebrada pelo Judiciário, em parceria com o Ministério Público, na lei anticorrupção a negociação da pena se dá em esfera administrativa.
Aprovadas às pressas, essas duas leis são, por sua consequência, possivelmente os mais importantes desdobramentos da gigantesca mobilização da sociedade em 2013, que ficaria conhecida como as “jornadas de junho”. Com as leis, pretendia-se dar uma resposta às demandas das ruas, ou pelo menos a uma certa tradução das demandas das ruas, atacando, em um caso, a corrupção praticada por funcionários públicos e, em outro, as práticas corruptoras do empresariado.
As jornadas de junho tiveram uma natureza amorfa, já que se constituiu a partir da recusa a qualquer instância de organização ou de condução do processo. Apesar de seu caráter difuso, suas linhas de força mais evidentes foram, de um lado, a defesa de uma agenda de direitos sociais e de minorias, e de outro, a recusa aos partidos e aos políticos – independentemente de seu perfil ideológico. Com essa recusa, mais apontavam para a necessidade da reforma política do que propriamente para a questão da corrupção, embora essa última também estivesse presente.
Para além das intenções, as consequências políticas dessas duas leis foram absolutamente inesperadas, fugindo ao cálculo do legislador e da presidente que as sancionou, ao abrir passagem para um processo de criminalização da política sem precedentes na história do país. De fato, a aplicação dessas leis acabaria por converter o elemento de recusa à política presente nas jornadas de junho em substrato para o ativismo judicial.
Em março de 2014, muito pouco tempo depois da aprovação das referidas leis, tem início a operação Lava Jato, a partir de um conjunto de investigações deflagradas pela Polícia Federal sobre esquemas de corrupção envolvendo a Petrobrás, e que logo contará com a participação ativa de membros do Ministério Público Federal e da Justiça Federal. Com o apoio da grande mídia, em pouco tempo a Lava Jato convulsiona o país, criando as condições, inclusive, para um golpe de estado, que custará o mandato da presidente que ironicamente fora responsável pela sanção das referidas leis, e que fora legitimamente reeleita em outubro daquele ano. Com a Lava-Jato inaugura-se uma etapa de ativismo judicial igualmente inédito na história do país, fazendo valer um uso criativo do princípio da delação premiada e uma crescente utilização do processo judicial como parte do jogo da política. Esse novo terreno da política obviamente não escapa ao faro de toda sorte de oportunistas. Com os holofotes da grande mídia voltados para as inúmeras audiências judiciais, prisões rumorosas de grandes empresários e lideranças políticas, e a divulgação de gravações e telefonemas grampeados, bem como de trechos de delações premiadas, logo o país se vê inteiramente refém da ciranda de escândalos.
Incensado pela sede de protagonismo por parte de agentes da polícia federal, e, sobretudo, por parte de promotores e magistrados, o ativismo judicial vai construindo sua própria narrativa, justificando-se a si mesmo. Assim, ironicamente, a lei anticorrupção vai sendo deixada de lado, e em nome do combate à corrupção cresce a utilização da lei de combate ao crime organizado. Gradualmente, empresários e empresas passam a ser tratados como agentes passivos da corrupção, cabendo-lhes portanto o recurso ao benefício da delação premiada, a fim de se chegar aos verdadeiros algozes, que seriam os políticos e as máquinas partidárias, agora redefinidos como chefes de quadrilhas organizadas.
Se é verdade que é a lei que define o que é crime e não as práticas em si mesmas, o uso e abuso da lei do crime organizado como remédio para atacar a corrupção rapidamente criminaliza práticas que até a pouco faziam parte do jogo político, borrando a fronteira entre o que é próprio da política e o que é crime. Polícia Federal, Ministério Público e Poder Judiciário embarcam muito rápida e intensivamente nesse caminho, com o patrocínio calculado da grande mídia que, de modo deliberado, trabalha para recriar o clima de “mar de lama”. A pauta da corrupção é, como se sabe, velha aliada da relação da grande imprensa com a classe média que consome seu jornalismo mas, desta vez, a ribalta oferecida a essa nova arena propiciada pela criminalização das lideranças políticas permite à grande mídia descortinar um lance bem mais ousado, o de deslocar o eixo da política no país, abrindo passagem para uma guinada neoliberal, que até certo ponto vinha sendo contida pela configuração de centro-esquerda que lastreava os governos Lula e Dilma.
Não deixa de ser doloroso reconhecer que as ruas de 2013, por caminhos tortuosos, desembocam em resultados opostos aos que delas esperavam uma ampliação dos direitos, inclusive de participação na política. O que sobrevém é, ao contrário, um golpe que depõe uma presidente legitimamente reeleita, e em seguida uma era de redução de direitos, com a aprovação da PEC dos gastos, entre outras medidas recessivas. E o que é pior, uma onda de criminalização da política, que a afasta ainda mais da sociedade civil.
Ao comprometer de modo quase irreversível a estabilidade da democracia no país, colocando em risco inclusive o próprio Poder Judiciário – seu último guardião –, que de casuísmo em casuísmo vai se enredando no jogo da política, essa ciranda midiática em torno da corrupção e a deliberada desmoralização da política nos arrasta para a barbárie, e o resultado mais palpável desse efeito tem sido a ampliação dramática do tráfico de armas associado ao tráfico de drogas, que mudou em muito pouco tempo as condições de segurança pública do país.
Assim é que a reorganização das condições mínimas de segurança pública no marcos da Constituição de 1988 pressupõe uma imediata e urgente descriminalização da política. Nesse sentido, um caminho possível pode ser o de se trazer para o debate público as associações que representam os profissionais das corporações ligadas ao sistema judicial, e já seria um avanço se começássemos a colocar em seu devido lugar o uso da delação premiada, que poderia ser útil para desbaratar as quadrilhas responsáveis pelo tráfico de armas.
Com efeito, devemos nos perguntar por que a Polícia Federal e o Ministério Público Federal não se empenham para valer no enfrentamento desses grupos que vêm tornando a vida da população das grandes e médias cidades cada vez mais difícil. Por que não utilizam a lei do crime organizado e a delação premiada para enfrentar com energia as milícias, que voltaram a se organizar com força e que certamente marcarão sua presença nas próximas eleições? Por que o Judiciário não abraça essa agenda, atacando a fundo a necessidade de reformas processuais e institucionais para combater a grande criminalidade?
Em parte, a resposta passa pela grande mídia, que tem parcela significativa de responsabilidade na condução desse processo. Ao que tudo indica, as principais organizações que por ela respondem não deverão deixar que se desloque a agenda de criminalização da política, sustentando-a pelo menos até as próximas eleições presidenciais. Mas se é assim, algo na dinâmica atual poderia começar a mudar se as corporações do mundo do direito e sua vida associativa dessem sinais de que pretendem recuar da aventura em que policiais, promotores e magistrados federais nos lançaram, com a transformação da delação premiada em remédio para “limpar” a política da doença da corrupção, matando junto com ela o paciente que se pretendia curar.
É verdade que um estrago enorme já foi feito, mas não custa lembrar que o pior ainda pode estar por vir, com a degeneração profunda da política, na medida em que grupos de milicianos se apropriem do vácuo deixado por partidos, que têm sido cirurgicamente desmoralizados. Nos territórios onde as milícias imperam seus moradores já o sabem bem, prevalece um regime totalitário, que não conhece a linguagem dos direitos.
Não sabemos qual é o limite da grande mídia, e até onde vai sua aliança com os donos do capital, nesse pacto que fizeram de apostar na perigosa técnica da criminalização da política para destruir adversários considerados indesejáveis e que não se consegue derrotar nas urnas. Mas se ninguém controla a grande mídia e suas alianças, ao menos podemos exigir das corporações judiciais uma atitude responsável com os destinos da democracia e do país, devolvendo à sociedade o direito de definir os rumos da política.
Para além do efeito placebo – que em alguns casos tem sua utilidade – de uma intervenção federal na segurança pública de um dos estados da federação, o caminho da paz social passa pela repactuação da relação entre os poderes da República, que também deverá incluir uma maior responsabilidade do sistema judicial no enfrentamento da criminalidade violenta.
Marcelo Baumann Burgos é doutor em Sociologia, Professor do Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio.
(Publicado originalmente no site do jornal Le Monde Diplomatique)
É uma velha lição sociológica que uma sociedade de mercado, que opera com a ideologia de que todos devem ter como projeto de vida o sucesso material, mas que não leva a sério o primado da igualdade de oportunidades, torna-se muito propensa à expansão da criminalidade. Em condições normais esse é o caso do Brasil, que desde as últimas décadas vem caminhando para se tornar um dos campeões do encarceramento, com a criminalização de parcela significativa de sua juventude pobre, negra e periférica. Mas a situação se tornou explosiva, pois a essa configuração sociocultural se juntou o efeito devastador produzido pela ideia de que a classe política e a elite empresarial são corruptas e que, afinal, traem a confiança da população.
Em diversas cidades, grandes e médias, os indicadores de criminalidade acusaram em 2017 uma escalada de homicídios, latrocínios e de outros crimes violentos. Além disso, cresceu, assustadoramente, o número de indivíduos mortos e feridos, incluindo policiais, por “balas perdidas”. Mas não há melhor evidência de que a situação está fugindo do controle das impotentes forças de segurança pública estaduais do que a frequência com que as Forças Armadas têm sido solicitadas para atuar em face da violência urbana. Com a decisão de intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro, que acaba de ser tomada, a situação chega ao seu estertor.
O mais grave, porém, é que esse ambiente torna especialmente atraente o mercado brasileiro para o comércio clandestino de armas de grosso calibre, boa parte delas de guerra. Fortemente municiadas, quadrilhas novas ou já existentes se tornaram da noite para o dia mais violentas e com grande poder de intimidação, o que levou a um crescimento do roubos quase sempre seguidos de morte, de cargas, de carros forte, de caixas eletrônicos, mas também de motoristas, passageiros de ônibus, ou simplesmente pedestres. Disso se segue um correlato processo de avanço de organizações criminosas em presídios que, na luta por poder, promovem banhos de sangue.
No Rio de Janeiro, tal situação já assume status de tragédia humanitária, na medida em que máquinas mortíferas estão sendo ordinariamente utilizadas por todo tipo de criminoso, inclusive de jovens traficantes de pés descalços. E contra isso, as autoridades de segurança pública locais insistem em fazer a única coisa que lhes ocorre, a saber, as covardes e estúpidas operações policiais em favelas que, diversamente do que sustenta a justificativa oficial, só tem estimulado o aumento do poderio bélico dos traficantes, aquecendo ainda mais o mercado para as armas de guerra – além de gerar muito sofrimento e dor, aprofundando a descrença da população na autoridade policial.
Como chegamos a esse quadro desolador? Nossa hipótese é a de que já não podemos explicar a explosão da violência e da criminalidade, adotando apenas as premissas clássicas, que a relacionam às variáveis ecológicas, do nexo existente entre manchas de criminalidade e as especificidades dos territórios da cidade, ou simplesmente à relação entre pobreza, desigualdade e criminalidade. Tais dimensões seguem sendo importantes, mas não explicam a crise civilizacional em que nos metemos. Para compreendê-la, é preciso relacioná-la com a criminalização da política.
Acusar políticos de corruptos é uma velha prática no país, frequentemente utilizada como arma da oposição, para desgastar a imagem de uma liderança ou de um governo. O efeito dramático do clima de “mar de lama” criado pela oposição, por meio da imprensa, para atacar Vargas, e que o levaria ao suicídio, em 1954, é certamente emblemático demais para que precisemos insistir na questão. O que é inédito na cena atual, e estonteante pela velocidade com que ocorreu, é a acusação generalizada dos políticos e de suas instituições, e não apenas de corruptos no sentido mais usual do termo, mas de terem formado quadrilhas que se comportam como crime organizado. Para entendermos como esse deslocamento semântico se deu, retirando a corrupção do terreno do embate político e levando-a para a esfera criminal, precisamos voltar a 2013.
Em agosto de 2013, a então presidente Dilma Rousseff sanciona as leis 12.846 e 12.850. A primeira, é apelidada de “lei anticorrupção”, por dispor sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública. Seu objetivo é o de criar mecanismos para tornar mais efetiva a punição dos corruptores, e por isso mira nas empresas e empresários, com especial atenção às fraudes em licitações. E como instrumento de investigação, prevê o “acordo de leniência”, que consiste em acordos firmados entre infratores e os respectivos órgãos responsáveis pelos processos de investigações criminais.
A segunda lei, logo apelidada de “lei do crime organizado”, redefine o conceito de crime organizado, estendendo seu alcance ao funcionalismo público. Seu objetivo declarado é o de atingir o narcotráfico, quadrilhas de sequestradores e, também, os crimes de colarinho branco. E para isso prevê o uso da “colaboração premiada” como instrumento de investigação e de produção de provas. Ainda que esse estatuto já figurasse no direito brasileiro desde a lei dos crimes hediondos, de 1990, é com essa lei de 2013 que passará a ser efetivamente entronizado como recurso processual. A lei, vale lembrar, reserva uma seção para regulamentar a “colaboração premiada”, dedicando-lhe três artigos, subdivididos em diversos incisos e parágrafos. Em suma, enquanto na lei de combate ao crime organizado estabelece-se o princípio da delação premiada celebrada pelo Judiciário, em parceria com o Ministério Público, na lei anticorrupção a negociação da pena se dá em esfera administrativa.
Aprovadas às pressas, essas duas leis são, por sua consequência, possivelmente os mais importantes desdobramentos da gigantesca mobilização da sociedade em 2013, que ficaria conhecida como as “jornadas de junho”. Com as leis, pretendia-se dar uma resposta às demandas das ruas, ou pelo menos a uma certa tradução das demandas das ruas, atacando, em um caso, a corrupção praticada por funcionários públicos e, em outro, as práticas corruptoras do empresariado.
As jornadas de junho tiveram uma natureza amorfa, já que se constituiu a partir da recusa a qualquer instância de organização ou de condução do processo. Apesar de seu caráter difuso, suas linhas de força mais evidentes foram, de um lado, a defesa de uma agenda de direitos sociais e de minorias, e de outro, a recusa aos partidos e aos políticos – independentemente de seu perfil ideológico. Com essa recusa, mais apontavam para a necessidade da reforma política do que propriamente para a questão da corrupção, embora essa última também estivesse presente.
Para além das intenções, as consequências políticas dessas duas leis foram absolutamente inesperadas, fugindo ao cálculo do legislador e da presidente que as sancionou, ao abrir passagem para um processo de criminalização da política sem precedentes na história do país. De fato, a aplicação dessas leis acabaria por converter o elemento de recusa à política presente nas jornadas de junho em substrato para o ativismo judicial.
Em março de 2014, muito pouco tempo depois da aprovação das referidas leis, tem início a operação Lava Jato, a partir de um conjunto de investigações deflagradas pela Polícia Federal sobre esquemas de corrupção envolvendo a Petrobrás, e que logo contará com a participação ativa de membros do Ministério Público Federal e da Justiça Federal. Com o apoio da grande mídia, em pouco tempo a Lava Jato convulsiona o país, criando as condições, inclusive, para um golpe de estado, que custará o mandato da presidente que ironicamente fora responsável pela sanção das referidas leis, e que fora legitimamente reeleita em outubro daquele ano. Com a Lava-Jato inaugura-se uma etapa de ativismo judicial igualmente inédito na história do país, fazendo valer um uso criativo do princípio da delação premiada e uma crescente utilização do processo judicial como parte do jogo da política. Esse novo terreno da política obviamente não escapa ao faro de toda sorte de oportunistas. Com os holofotes da grande mídia voltados para as inúmeras audiências judiciais, prisões rumorosas de grandes empresários e lideranças políticas, e a divulgação de gravações e telefonemas grampeados, bem como de trechos de delações premiadas, logo o país se vê inteiramente refém da ciranda de escândalos.
Incensado pela sede de protagonismo por parte de agentes da polícia federal, e, sobretudo, por parte de promotores e magistrados, o ativismo judicial vai construindo sua própria narrativa, justificando-se a si mesmo. Assim, ironicamente, a lei anticorrupção vai sendo deixada de lado, e em nome do combate à corrupção cresce a utilização da lei de combate ao crime organizado. Gradualmente, empresários e empresas passam a ser tratados como agentes passivos da corrupção, cabendo-lhes portanto o recurso ao benefício da delação premiada, a fim de se chegar aos verdadeiros algozes, que seriam os políticos e as máquinas partidárias, agora redefinidos como chefes de quadrilhas organizadas.
Se é verdade que é a lei que define o que é crime e não as práticas em si mesmas, o uso e abuso da lei do crime organizado como remédio para atacar a corrupção rapidamente criminaliza práticas que até a pouco faziam parte do jogo político, borrando a fronteira entre o que é próprio da política e o que é crime. Polícia Federal, Ministério Público e Poder Judiciário embarcam muito rápida e intensivamente nesse caminho, com o patrocínio calculado da grande mídia que, de modo deliberado, trabalha para recriar o clima de “mar de lama”. A pauta da corrupção é, como se sabe, velha aliada da relação da grande imprensa com a classe média que consome seu jornalismo mas, desta vez, a ribalta oferecida a essa nova arena propiciada pela criminalização das lideranças políticas permite à grande mídia descortinar um lance bem mais ousado, o de deslocar o eixo da política no país, abrindo passagem para uma guinada neoliberal, que até certo ponto vinha sendo contida pela configuração de centro-esquerda que lastreava os governos Lula e Dilma.
Não deixa de ser doloroso reconhecer que as ruas de 2013, por caminhos tortuosos, desembocam em resultados opostos aos que delas esperavam uma ampliação dos direitos, inclusive de participação na política. O que sobrevém é, ao contrário, um golpe que depõe uma presidente legitimamente reeleita, e em seguida uma era de redução de direitos, com a aprovação da PEC dos gastos, entre outras medidas recessivas. E o que é pior, uma onda de criminalização da política, que a afasta ainda mais da sociedade civil.
Ao comprometer de modo quase irreversível a estabilidade da democracia no país, colocando em risco inclusive o próprio Poder Judiciário – seu último guardião –, que de casuísmo em casuísmo vai se enredando no jogo da política, essa ciranda midiática em torno da corrupção e a deliberada desmoralização da política nos arrasta para a barbárie, e o resultado mais palpável desse efeito tem sido a ampliação dramática do tráfico de armas associado ao tráfico de drogas, que mudou em muito pouco tempo as condições de segurança pública do país.
Assim é que a reorganização das condições mínimas de segurança pública no marcos da Constituição de 1988 pressupõe uma imediata e urgente descriminalização da política. Nesse sentido, um caminho possível pode ser o de se trazer para o debate público as associações que representam os profissionais das corporações ligadas ao sistema judicial, e já seria um avanço se começássemos a colocar em seu devido lugar o uso da delação premiada, que poderia ser útil para desbaratar as quadrilhas responsáveis pelo tráfico de armas.
Com efeito, devemos nos perguntar por que a Polícia Federal e o Ministério Público Federal não se empenham para valer no enfrentamento desses grupos que vêm tornando a vida da população das grandes e médias cidades cada vez mais difícil. Por que não utilizam a lei do crime organizado e a delação premiada para enfrentar com energia as milícias, que voltaram a se organizar com força e que certamente marcarão sua presença nas próximas eleições? Por que o Judiciário não abraça essa agenda, atacando a fundo a necessidade de reformas processuais e institucionais para combater a grande criminalidade?
Em parte, a resposta passa pela grande mídia, que tem parcela significativa de responsabilidade na condução desse processo. Ao que tudo indica, as principais organizações que por ela respondem não deverão deixar que se desloque a agenda de criminalização da política, sustentando-a pelo menos até as próximas eleições presidenciais. Mas se é assim, algo na dinâmica atual poderia começar a mudar se as corporações do mundo do direito e sua vida associativa dessem sinais de que pretendem recuar da aventura em que policiais, promotores e magistrados federais nos lançaram, com a transformação da delação premiada em remédio para “limpar” a política da doença da corrupção, matando junto com ela o paciente que se pretendia curar.
É verdade que um estrago enorme já foi feito, mas não custa lembrar que o pior ainda pode estar por vir, com a degeneração profunda da política, na medida em que grupos de milicianos se apropriem do vácuo deixado por partidos, que têm sido cirurgicamente desmoralizados. Nos territórios onde as milícias imperam seus moradores já o sabem bem, prevalece um regime totalitário, que não conhece a linguagem dos direitos.
Não sabemos qual é o limite da grande mídia, e até onde vai sua aliança com os donos do capital, nesse pacto que fizeram de apostar na perigosa técnica da criminalização da política para destruir adversários considerados indesejáveis e que não se consegue derrotar nas urnas. Mas se ninguém controla a grande mídia e suas alianças, ao menos podemos exigir das corporações judiciais uma atitude responsável com os destinos da democracia e do país, devolvendo à sociedade o direito de definir os rumos da política.
Para além do efeito placebo – que em alguns casos tem sua utilidade – de uma intervenção federal na segurança pública de um dos estados da federação, o caminho da paz social passa pela repactuação da relação entre os poderes da República, que também deverá incluir uma maior responsabilidade do sistema judicial no enfrentamento da criminalidade violenta.
Marcelo Baumann Burgos é doutor em Sociologia, Professor do Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio.
(Publicado originalmente no site do jornal Le Monde Diplomatique)
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