(Foto: Ralph Baiker)
Maria Rivera Iribarren é deputada constituinte. Advogada ligada à Defensoria Popular, órgão que presta apoio jurídico a movimentos sociais, presa política durante a ditadura militar, Maria Rivera descreve as insurreições de 2019 pelas quais o Chile passou como “manifestações revolucionárias”. Ela não é a única a pensar assim. Marcela Leiva, militante que aparecera no primeiro texto dessa série, havia usado a mesma palavra de maneira enfática.
Não é preciso muito para sentir o peso que uma palavra como essa tem para nós. Da mesma forma, não é necessário muito para lembrar também de seu desgaste e de sua indeterminação. Pois estamos quase que naturalmente dispostos a aceitar que não veremos mais transformações estruturais em formas políticas e modos de produção, a não ser em delírios de certos acadêmicos ociosos.
Ou ainda, que veremos transformações, mas elas não se darão sob a forma de rupturas de estrutura. Ou ainda, que haverá rupturas de estruturas, mas que deveríamos repensar o que entendemos efetivamente por “estrutura” e quais seus pontos de mudança. É certo que todas essas questões fazem parte da compreensão do que está a ocorrer hoje no Chile.
“Eu falaria que as revoltas de 2019 foram o início de uma revolução porque todos diziam que haveria de mudar tudo. Houve uma irrupção violenta das massas que, por um instante, ninguém podia controlar. Como se falava nesse momento: nos tiraram tudo, até o medo”, diz Maria Rivera. Alejandra Bottinelli, professora de literatura da Universidade do Chile, militante com forte participação em grupos ligados ao governo que se inicia no dia 11 de março, tem uma figura concreta para esse descontrole: “Muitos diziam que as manifestações não sabiam para onde iam, que suas pautas eram confusas. Era interessante que, de fato, elas não tinham direção, mas eu falo de direção geográfica. Elas não obedeciam ao trajeto de todas as manifestações em Santiago. Eram mesmo movimentos de corpos sem condução”.
Por essas ironias da história, o resultado da ausência de condução foi conduzir-se exatamente para onde manifestação alguma havia ido. Mover-se sem condução é algo perigoso, pois você pode acabar alcançado o alvo. Como dizia Hegel, o medo do erro muitas vezes esconde o medo da verdade. No caso, a verdade é outro nome para os espaços empresariais e de representação do Capital: “Tudo mudou quando as manifestações se dirigiram para o Costanera Center [o maior shopping center de Santiago, situado no supostamente mais alto edifício da América Latina]. Foi como se uma fronteira tivesse sido ultrapassada. A partir daí, ficou claro para os setores burgueses que seria necessário negociar”, diz Paulo Slachevsky, editor da LOM ediciones, uma das mais importantes editoras de livros de humanidades do país.
Mas se há aqueles que reconhecem uma dimensão efetivamente insurrecional pela qual passou o Chile, é difícil encontrar voz dissonante quando a questão é sobre o que pode o governo que se inicia no dia 11: “o governo de Boric terá aberturas democráticas, mas essas aberturas não resolverão as demandas populares. Podemos escrever uma constituição que é um poema, mas isso não resolve”, diz Maria Rivera.
Se for possível dizer em uma expressão o que move a expectativa de muitos dos atores e das atoras políticas, talvez o melhor termo, aquele que mais apareceu, seja: “Estado solidário”. Luis Mesina, líder sindical que também aparecera no primeiro texto, é um dos que sintetiza o embate falando sobre a “passagem de um Estado subsidiário para um Estado solidário”.
“Estado subsidiário” é o termo que nasce a partir da constituição de 1980 para falar de um Estado radicalmente atrofiado em sua capacidade de assegurar serviços públicos e planejamento econômico. O que talvez explique porque um cartaz onipresente nas ruas de Santiago ainda hoje seja: “vocês transformaram nossas necessidades em seus melhores negócios”.
Manifestações em Santiago, Chile, no dia 8 de março (Fotos: Ralph Baike)
Mas o que tal Estado solidário pode ser, até onde ele pode ir, nada disso está efetivamente claro. Mesmo questões como a educação completamente gratuita não estão no Plano de governo de Boric. Joga-se para a expectativa de modificação desse ponto pela constituição.
Nesse contexto, há aqueles que creem que veremos uma dinâmica de avanços de questões nas quais os movimentos sociais são mais fortes, como as causas ambientas, as lutas feministas e povos originários, um redesenho institucional do país, mas poucas transformações econômicas. Poucas ao menos se comparadas ao nível de radicalidade das exigências do que os chilenos e chilenas chamam de “outubrismo”, ou seja, o horizonte dos movimentos que emergem em outubro de 2019.
“Certamente, vai haver decepção”, diz Marcela Leiva. Menos ainda se lembrarmos o que um governo “reformista” como Salvador Allende implementou: nacionalização da economia do cobre (base das exportações chilenas), estatização do sistema bancário, só para ficar nos dois casos mais exemplares.
Mas se voltamos os olhos aos movimentos mais estruturados, é fácil perceber uma dinâmica de lutas com força hegemônica. Exemplar nesse caso é o movimento feminista. Em 8 de março, 200 mil mulheres pararam o centro de Santiago para marcar o Dia Internacional da Mulher. Em vários momentos, esses movimentos foram os responsáveis por sustentar as dinâmicas de lutas que deram força à insurreição popular. Hoje, ele se mostra claramente como um movimento dotado de transversalidade generacional e rechaço explícito ao horizonte do pensamento conservador, ainda forte no Chile.
Isso não impede de perceber como um dos eixos do ciclo de lutas sociais que agora se desdobram passa pela composição de uma unidade real que não será efetivamente simples. Um exemplo dramático disso ocorreu na própria manifestação de 8 de março, que encontrou com uma outra manifestação que defendia a liberação dos presos políticos de 2019 e que acabou se degenerando em violência e garrafas de vidro voando.
Não são poucos aqueles que temem que “a unidade como valor fundamental” não esteja mais na ordem do dia, com o consequente adiamento infinito das lutas estruturais entre Capital e trabalho, como Daniel Jadue, prefeito de Recoleta e pré-candidato à presidência do Chile pelo Partido Comunista Chileno.
O fato é que as chamadas para as manifestações de 8 de março clamavam para atos: “feministas, antirracistas, anticapitalistas, antifascistas, antiextrativistas”, entre outros. Ou seja, há a consciência do problema. Mas é certo também que alguns temas são mais facilmente integráveis do que outros. E nesse ponto gira toda a tensão dos processos políticos atuais no mundo. Tensão que o Chile parece viver em uma intensidade e urgência ainda maior.
Via chilena: a América Latina criando novos caminhos. Durante a semana da posse de Gabriel Boric à presidência do Chile, a Cult fornecerá artigos diários escritos a partir do relatos de ativistas, membros do governo e intelectuais chilenas e chilenos. Um momento importante da história do nosso continente descrito a partir de quem está lá.
Vladimir Safatle é Professor Titular da USP e atualmente fellowship do The New Institute/ Hamburgo.
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)
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