O levante urbano desencadeado pelo Movimento Passe Livre (MPL) obteve
uma vitória extraordinária ao conquistar a redução do preço das
passagens do transporte coletivo em São Paulo e em tantas outras
cidades. Mas, conquistada a reivindicação, é preciso saber para que lado
vão os personagens que tomaram as ruas depois de 20 anos de ausência
das massas na cena brasileira.
Duas características peculiares aos protestos recentes criaram uma
indeterminação. A primeira é o seu estilo horizontal de organização,
cujas raízes profundas estão na tremenda crise que assola a democracia
contemporânea. Indignadas com o descolamento entre o mundo da política e
o inferno da vida cotidiana, as pessoas recusam as organizações
tradicionais --sejam partidos, sejam sindicatos--, ou o que se pareça
com elas.
Convém esclarecer, antes que haja qualquer mal-entendido, que a
democracia não pode funcionar sem partidos e que os sindicatos, apesar
de todos os problemas, continuam a ser o melhor instrumento que o
trabalhador tem para defender seus interesses. Para completar, em minha
opinião, a democracia --em que pese os inúmeros e graves percalços pelos
quais passa-- é a maior conquista da humanidade no campo da política.
Isto posto, é preciso canalizar a revolta contra as instituições para
uma participação que as revitalize, e não que as destrua.
O saudável ímpeto antivertical tem como contrapartida a falta de direção
unificada. Ao não se delimitar com clareza o que cabia e o que não
cabia nas manifestações, elas começaram a agregar um pouco de tudo, até
mesmo ideologias opostas, como ficou claro na briga entre direita e
esquerda que marcou a comemoração da vitória na av. Paulista anteontem.
O segundo elemento singular é que nunca na história recente do país --e,
talvez, nem na antiga-- camadas populares tenham se levantado em tal
proporção. Se o estopim foi aceso pela classe média, o novo
proletariado, forjado na década do lulismo, entrou nas avenidas, dando
um colorido inédito às marchas reivindicatórias. Uma placa tectônica do
país se mexeu, surpreendendo a todos os atores tradicionais.
Iniciado pela esquerda, o processo ficou indeterminado quando se
verificou que tal fração de classe pode ser fisgada pela direita, a
partir de apelos contra a corrupção. A direita quer vender a ideia de
que sanear o Estado (o que é necessário) e cortar funcionários
resolveria as demandas por saúde, educação e segurança.
Caberá à esquerda, que teve o mérito de começar a luta, ter a coragem de
mostrar a cara e propor um programa que, sem deixar de ser republicano,
aposte na ampliação do gasto público, de modo a construir o bem-estar
que as massas exigem.
André Singer, Folha de São Paulo, 22.06.2013
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