PROTESTOS URBANOS
Aliens, zumbis, manifestantes e vândalos
Se discos voadores tivessem aterrissado nas cidades brasileiras,
despejando centenas de milhares de ETs que ficassem marchando, correndo
ou simplesmente vagando sem rumo pelas avenidas, o espanto dos
governantes não seria maior. O staff da Presidência da
República, além de ministros, governadores e prefeitos, todos sucumbiram
à perplexidade, um tanto atarantados. Alguns admitem: seria pretensão
dizer que entendem os protestos urbanos desta semana. As cenas os
estarrecem. A imagem que estampou o alto das primeiras páginas na
terça-feira (18/6), mostrando uma multidão erguendo os braços no teto do
Congresso Nacional, lembrava um fotograma de Resident Evil, em
que zumbis tomam a cidade de assalto. E, se aqueles sujeitos ali em
cima do Congresso fossem de fato zumbis, as autoridades talvez
estivessem menos intranquilas.
Muito ainda será dito sobre a natureza das novas passeatas. Agora, os
preços das tarifas serão reduzidos – os aumentos serão revogados, melhor
dizendo, ao menos temporariamente – e a administração pública tentará
ganhar tempo e abrir negociações com o interlocutor desconhecido. Mais
uns dias e as ruas deverão sossegar um pouco. Só depois é que a política
assimilará aos poucos o sentido do que se passa.
Entre as muitas explicações que virão, há uma que decorre dos estudos
da comunicação. Num país em que todo acadêmico é obrigado a ler um pouco
de Jürgen Habermas, chega a ser surpreendente como essa via teórica
tenha demorado tanto a se insinuar nos debates que já estão em curso.
Pelo que temos lido até aqui, é mais comum que os analistas procurem
relacionar os protestos aos domínios da chamada esfera pública.
Ganhariam mais se procurassem esses nexos em outros domínios.
Academicamente falando...
Antes de tudo, trato de explicar aqui a referência que fiz ao filósofo
alemão. De início, lembremos que a esfera pública se organiza em torno
de arenas comuns (virtuais ou “presenciais”) que, por sua vez, convergem
para as instituições jurídicas (representativas, administrativas etc.),
conformando o aparelho de Estado.
Bem sabemos que o Estado não se confunde com a esfera pública; para
usarmos aqui uma imagem mecânica, bem ao gosto da sociologia jurídica, o
Estado se “acopla” a ela, de modo indissociável. Habermas, contudo, não
se limita à categoria da esfera pública. Para animá-la, para dar-lhe
vitalidade, “alma”, lança mão de outros domínios, outro “lugar” – que
também não se confunde com a esfera pública, mas nela deságua ou, se
preferirem, para ela ascende. Trata-se do chamado “mundo da vida”. Aí é
que se dão as vivências, ou os modos de viver, aí fincam raízes os
saberes práticos, o não-dito. No mundo da vida as pessoas vivem – na
esfera pública elas agem politicamente.
Tendo pago o nosso pedágio a Jürgen Habermas – não importa se ele está
certo ou errado sobre isso ou aquilo, tanto faz – sigamos adiante. A
perspectiva do que escrevo aqui não é habermasiana e nem será. Apenas
anoto uma vez mais: incrível como os teóricos da esfera pública (e temos
vários deles no Brasil) nunca se lembrem do mundo da vida. Nisso, eles
se parecem com os políticos, que nunca têm olhos para a sociedade,
apenas para a “sociedade civil organizada”.
Sem sindicatos, sem partidos, sem ONGs
Com a era digital, as redes interconectadas deram muito mais densidade,
mais alcance e mais energia para os domínios do mundo da vida. Com o
advento das redes, o mundo da vida ganhou uma quantidade imensamente
maior – agora numa metáfora orgânica – de vasos a oxigenar-lhe as
células e a fortalecer-lhe o tecido. O que a internet mudou – e mudou
drasticamente – foi exatamente esse “lugar” denominado mundo da vida.
Por desdobramento, alterou também a esfera pública.
Os personagens que hoje afloram pelas ruas e calçadas como se fossem zumbis ou aliens não brotam da política. Eles são inteiramente estranhos
à política, tanto que estarrecem os políticos. Eles saem do mundo da
vida e despencaram diretamente nas passeatas, quer dizer, eles são os
protagonistas das passeatas, que costumavam ser o suprassumo moderno da
ação política direta das massas, mas não fazem escala (nem escola) no
aprendizado de agremiações sindicais, partidárias ou mesmo de ONGs.
Entraram em cena aberta, cena política, sem mais mediações ou
intermediações, e isso só foi possível graças aos novos vasos
comunicantes das tecnologias digitais.
Aí é que entra a comunicação. Essas passeatas resultam de novas formas
de comunicação, não hierarquizadas – ou, ao menos, nem tão
hierarquizadas como nos meios convencionais. Daí, o que se manifesta
agora é a sociedade, vamos dizer, profunda.
Desta vez, a sociedade profunda não entra na mobilização como gado. Ela
não ocupa as ruas por ter sido “convocada” por seus líderes. Exatamente
por isso, os protestos não têm palanques, não têm hierarquias, não têm
sequer comandos estruturados. Se você pedir, ali no meio dos
manifestantes, “leve-me ao seu líder”, não terá respostas seguras. Os
líderes lideram apenas o chamamento, o processo performático, mas não
são os formuladores, os ideólogos ou mesmo portadores ou sintetizadores
das causas. Não por acaso, os manifestantes repelem as instituições
partidárias.
Elogios de quem odeia
O que está nas ruas não é uma mensagem pronta, não é sequer uma demanda
ou uma reivindicação. O que está nas ruas é uma comunicação em
processo, é uma comunicação em marcha – a marcha de uma comunicação em
curso – em que os agentes, já bastante irritados com os poderes da
República, vão xingar as autoridades, por assim dizer,
“presencialmente”.
Nessa perspectiva, as semelhanças entre as marchas de protestos do
Brasil e a primavera árabe, as jornadas turcas (de agora), o Ocuppy Wall
Street ou “los indignados” na Espanha são apenas totais. Os personagens
que agora entram em cena são um bicho diferente. Se for o caso, podem
até derrubar os de cima.
Sim, definitivamente: as autoridades estão preocupadíssimas. Os
caudalosos elogios que elas derramaram aos manifestantes é a prova cabal
do temor que as paralisa. Quando elogiam, elas mentem. E não há nada
mais que possam fazer. Elas terão de elogiar, pontuando críticas
seletivas às minorias de vândalos, e terão de negociar. No fundo, porém,
estão odiando tudo isso. Odiando.
Odeiam mais ainda porque as pessoas que estão nas ruas não querem
tomar-lhes o lugar; querem, isto sim, enquadrá-las. Odeiam porque estão
sendo humilhadas pelas massas super-heterogêneas da era digital. A
imensa maioria dos manifestantes não se apresenta aos governantes como
seus rivais, como seus opositores. Não se apresentam sequer como seus
concorrentes. Aliás, as passeatas não querem tomar o poder – elas querem
apenas tomar posse da cidadania. As pessoas ali são candidatas a
cidadãs.
Desta vez, as manifestações públicas estão passando um pito nos
administradores públicos, assim como o patrão que aparece de surpresa na
fábrica. As passeatas desta semana, por mais que alguns não gostem da
analogia, vêm lembrar que os políticos têm um chefe e esse chefe é o
povo. O povo veio enquadrar os governantes. Esse povo interconectado
dizia que pode parar a cidade – e acaba de provar que pode mesmo.
Isso tudo sem falar no vandalismo policial
Claro que tudo ainda vai se esvaziar. Claro que os manifestantes vão
cansar. Claro que vão minguar, deixando sobrar minorias mais esquisitas
ainda, umas retardatárias de fanatismos ideológicos, outras constituídas
de falanges malignas de agentes provocadores. Até lá, no entanto, vai
ficando essa lição. Novas formas de comunicação deram mais vigor
político ao mundo da vida – aquilo que não era exatamente político até
aqui – e isso vai mudar o jogo do poder. Todo mundo vai sair desse
episódio pior do que entrou. A polícia, principalmente. A polícia errou
quando agiu e errou quando se omitiu. Um desastre no meio do desastre.
Os governantes também saem mal, tendo que correr atrás dos fatos, como
crianças num campo de futebol correndo atrás da bola.
Por fim, nada disso significa que este articulista tenha exatamente
entendido o que se passa. Há e haverá muito mais a ser dito e a ser
processado. Apenas lancei, aqui, uma hipótese. Outras virão. Até mesmo
de mim, outra vez, quando for a hora de dizer de que modo os meios de
comunicação jornalísticos mais convencionais – eletrônicos ou não –
deram um impulso incomensurável aos protestos pelo simples fato de terem
decidido que eles mereciam cobertura.
***
Eugênio Bucci é jornalista, professor da ECA-USP e da ESPM
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