José Luiz Gomes
A primeira ressalva a ser feita é que divirjo politicamente do senhor Pierre Lucena, professor da Universidade Federal de Pernambuco. Mas, neste artigo em particular - como bem observou um comentador - parece que ele chutou a bola com o pé esquerdo, se colocando ao lado daqueles inúmeros jovens que têm seu acesso interditado ao Colégio de Aplicação da UFPE. Ainda estamos sob o efeito do artigo: "Sorteio de vagas no Colégio de Aplicação é mais justo que vestibular para crianças de 10 anos". O artigo de Pierre Lucena entra no debate acerca das possibilidades de mudanças no processo seletivo do Colégio de Aplicação da UFPE.
Não faz muito tempo, depois dos bons resultados obtidos por aquele colégio nos indicadores de educação do país, publicamos um longo artigo em nosso blog sobre o assunto. Desde então, sempre movido por uma perspectiva republicana,já nos colocava como um frustrado defensor da meritocracia. Em linhas gerais, a meritocracia é o resultado de oportunidades desiguais, salvo as raríssimas exceções, que apenas confirmam a regra.
Se há alguma ponderação a ser feita em favor dos seus defensores, apenas o fato de que alguns indivíduos não "aproveitam" bem essas oportunidades quando lhes são oferecidas e há aqueles que fazem um esforço tremendo para superar suas adversidades, comendo o mingau quente pelas beiradas, mas não passam muito disso não. A "criação" de oportunidades é uma variável que foge ao controle dos indivíduos. Elas devem ser ofertadas pela estrutura social. O resto é conversa para boi dormir. Um teórico que tratou muito bem essa questão foi o sociólogo francês Pierre Bourdieu, que ficaria conhecido como o sociólogo das desigualdades.
O tema proposto por Pierre é bastante polêmico, nos contingenciando a dividi-los em parte, consoante o debate que se seguiu no seu blog Acertos de Contas. Confesso que também considero temerário submeter crianças de apenas 10 anos àquela processo seletivo, quando apenas algumas delas poderão ser bem-sucedidas no final. Há poucas vagas e passam apenas os "melhores preparados", consoante inúmeros "filtros", exaustivamente discutidos no texto. Todos esses "filtros", naturalmente, são impostos pelas contingências de uma sociedade hierarquizada e profundamente desigual desde a sua origem, forjada no trabalho escravo.
Na realidade, Pierre, apesar de estar "atrelado" ao Centro de Educação da UFPE, estatutariamente o CAp teria sido pensado não apenas como um laboratório do curso de Pedagogia, mas, sobretudo das licenciaturas da UFPE. Apesar de pertencer a outro Centro - Centro de Ciências Sociais Aplicadas - na condição de professor da UFPE, penso que você tem credenciais para tratar deste assunto sim, apesar das contraposições dos colegas professores. Penso que isso ainda refletem as disputas internas naquela Instituição. Claro que você tem razão ao observar a "autonomia" forjada em torno desses equipamentos, criados para dar suporte à formação dos alun@s de determinados departamentos, como a Rádio e TV Universitária, assim com o próprio CAp.
Em seu artigo, você citou o economista Cláudio de Moura e Castro - cujo reconhecimento nesta área de educação parece fora de questionamentos - a despeito do viés conservador. Eu vou citar alguém mais próximo. Alguém que já foi diretor do Centro da Educação da UFPE. O professor Yves de Maupeau. Ainda hoje lembro daquela figura esguia, chegando na UFPE em sua indefectível bicicleta. Lembramos, ainda, de uma longa conversa mantido com ele, em seu gabinete, onde prontificou-se em ajudar-nos num desses momentos adversos que a gente enfrenta pela vida. Ives era uma pessoa progressista, mas, naquele encontro, cometeu o sincericídio de afirmar que o Colégio de Aplicação não saberia trabalhar com alunos provenientes de estratos sociais mais empobrecidos, com deficiências graves em sua formação escolar. Talvez desejasse isso, mas antevia as dificuldades.
Um dos seus críticos, Pierre, questionou de onde você tirou a conclusão de que os alunos fragilizados social e economicamente são raros no CAp. Como poderias ter chegado a essa conclusão sem um levantamento sobre a origem social daqueles alunos. Penso que no próprio CAp há informações sobre isso. Polêmicas a parte, possivelmente elas não refutariam a sua tese.
O sincericídio de Maupeau, praticamente, é uma confissão de que o colégio é bom porque seleciona os melhores alunos. Bons são alunos e os professores do CAp, assim como ocorre com as escolas federais de uma maneira geral - que sempre apresentam bons resultados nos rankings do ENEM, IDEB e afins. Como manter, então, esses padrões de qualidade ao recepcionar alunos por sorteio ou por cotas? O CAp não teria competência para trabalhar com esses alunos, conforme admitiu o professor Ives de Maupeau? Seria necessário, então, uma reestruturação do próprio processo de seleção e qualificação dos professores daquela escola, além de mudanças substantivas no seu projeto político-pedagógico? Penso que o seu artigo, Pierre, suscitou muito mais perguntas do que respostas.
Um dos seus comentadores argumentou que, pelo menos desta vez, você se posicionou como alguém que está do lado de cá, da esquerda. Jogou, como já afirmamos, em favor daqueles segmentos de alunos que não têm acesso ao Colégio de Aplicação. Sugere, inclusive, que o critério "regional" poderia ser adotado como critério de seleção, como ocorre em toda a rede de ensino. Esse critério seria justo? Afinal, como alertava Bourdieu, numa sociedade de oportunidades tão desiguais, o "local" onde o indivíduo nasce também passa a ser um elemento diferenciador dos diabos. Bourdieu teve enorme dificuldade de se afirmar na academia parisiense porque era de origem provinciana. Nasceu no Vilarejo de Denguin. Dizem que, por pirraça, escrevia tão difícil. Na França, até no nome é comum acrescentar essa identidade do local de nascimento.Veja-se o caso do ex-presidente Valery Giscard D'Estaing. Não deve ser por acaso.Aliás, nada é por acaso, Pierre Lucena.
P.S do Realpolitik: De acordo com o INEP, as dez melhores escolas públicas do país estão na região Nordeste. Não surpreenderia se o CAp da UFPE aparecesse nessa listagem. Muita coisa já foi dita sobre o papel da escola numa sociedade capitalista. Um desses autores, inclusive, por outras motivações, está citado aqui no texto, como é o caso do crítico-reprodutivista francês Pierre Bourdieu. No plano de uma sociedade "naturalmente" desigual, é muito complexo se pensar na viabilidade da oferta de uma educação de qualidade social, facultada a todos, sem distinção de qualquer natureza. Entre os critérios seletivos elencados acima, talvez as "cotas" seja o que mais se aproxima deste ideal. Já no final do texto, a algumas referências ao critério da regionalização ou da localização geográfica do CAp, que poderia, neste caso, destinar-se a atender os alun@s dos bairros da Várzea, Cordeiro, Engenho do Meio. Ao se adotar tal critério, a pergunta que se faz é: quando é que poderíamos ter uma escola com as características do CAp encravada em bairros como a Ilha de Deus, o Coque ou o Alto da Foice?
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