Quando, em 2003, um dos equipamentos da Fundação Joaquim Nabuco passou por um processo de requalificação física e conceitual, foi nos incumbidos que ficássemos num grupo de trabalho relativo à escravidão negra na região Nordeste; as revoltas e lutas anti-escravocratas; bem como a situação atual dos grupos remanescentes de quilombos. Isso nos contingenciou a uma viagem ao Estado do Maranhão, onde tivemos contato com várias entidades representativas dessas comunidades - também tratadas por lá de federações - inclusive uma ligada à defesa das comunidades atingidas pela implantação da Base de Lançamento de Foguetes de Alcântara, com a qual até hoje mantemos contatos frequentes.
Montado na garupa de
uma moto, visitei várias comunidades quilombolas da região, onde fizemos
registros fotográficos e entrevistas com várias lideranças locais. Já,
então, mantínhamos um certo interesse sobre o assunto, em razão das
visitas frequentes que fazíamos com os alunos à comunidade quilombola de
São Lourenço, localizada no distrito de mesmo nome, em Goiana, cidade
da Mata Norte do Estado. Isso nos facultou a oportunidade de
estabelecermos contatos com os mais bem reconhecidos estudiosos sobre
este assunto, no campo acadêmico, sobretudo concentrados nas universidades federais
da Bahia e Rio de Janeiro. Não sei como se encontra esta situação hoje,
mas, à época, eram esses centros acadêmicos que abrigavam os maiores
especialistas no assunto.
Talvez hoje tenha havido mudanças nesse eixo de estudos e pesquisas sobre o assunto. Na própria UFMA, há várias linhas de pesquisa na pós-graduação envolvendo os grupos remanescentes de quilombos. Alfredo Wagner Almeida, uma das maiores autoridades acadêmicas sobre este assunto, chegou a passar um período como professor visitante daquela universidade.Por
essa época, ainda eram realizados os tais laudos antropológicos, uma
condição legalmente exigida para a concessão do título de terra de
quilombos. A pressão dos grupos quilombolas organizados permitiu avanços
importantes na legislação, sobretudo a partir do Governo Lula.
Auxiliado por alguns estudos e entrevistas, chegamos a elaborar um
painel, com a impressão desses estudiosos, sobre os reflexos desses 365
anos de regime escravocrata sobre o país. Infelizmente, não se tornou possível a sua publicação.
Embora do ponto de vista conceitual a exposição tenha avançado bastante - no sentido de
construir uma unidade imagético-discursiva mais consistente sobre o assunto - ainda não foi possível superar as resistências a essa "dizibilidade",
para usarmos um conceito de Gilles Deleuze, no seu circuito expositivo.Guardo
essas entrevistas e anotações até os dias de hoje. Não sei se podemos
atribuir unicamente a Joaquim Nabuco a antevisão ou a preocupação de
constituição de um projeto para os (ex)escravos, oriundos das lavouras de
cana-de-açúcar, analfabetos, sem formação profissional, sem terra, sem teto, sem nenhum
amparo social do Estado. As nossas leituras dizem que não, embora a "estratégia de consagração" criada em torno do abolicionista pernambucano nos desmintam sistematicamente. Por outro lado, é profundo o nosso reconhecimento sobre essa sua preocupação, das mais atinentes. Por ali, criamos uma sociedade tão hierarquizada como a nossa.
O fato concreto é que, cento e cinquenta anos depois, a população negra deste
país continua , em certa medida, ainda sendo vítimas preferenciais das injustiças
sociais, da discriminação, do preconceito, da ausência de
oportunidades, da intolerância.Quando são divulgados os dados dos indicadores sociais ou
mesmo nos casos cada vez mais frequentes de intolerância, isso não nos permitem qualquer
dúvida. Perfil do analfabeto brasileiro: mulher, negra, velha e pobre.
Perfil dos menores em situação de vulnerabilidade social: negro, fora da
escola, sem inserção produtiva. Entre os índices de assassinatos no país, em 2012, 77% são de jovens negros. No Rio de Janeiro, esse escore chega a 79%. Para vocês que gostam de estatísticas, um bom exercício seria verificar quantos desse percentual foram mortos em ações da Polícia Militar - a que mais mata no mundo - ou mesmo vítimas de grupos de extermínio.
Emblematicamente, no Estado do
Maranhão, um jovem de 27 anos, acusado de assalto, foi amarrado em um poste - cumprindo a tradição de nosso passado escravocrata - e brutalmente
espancado até a morte. O fato alcançou repercussão internacional. Depois da sanha vingativa, com mais calma, um jornalista resolveu checar a vida de crimes do rapaz. Nada foi encontrado. Nenhuma passagem pela polícia. Nunca respondeu a nenhum processo, muito menos por esse delito. Certamente, ninguém será responsabilizado por sua morte.
Até recentemente, alguém teve o cuidado de postar nas redes sociais
a "galeria" recente desses linchamentos: Curiosamente, não aparecem
brancos. Curiosamente, também, num dado recente sobre a morte de
adolescentes no Brasil, o Estado de Alagoas aparece como o Estado mais
vulnerável para esses jovens, sobretudo naquela região conhecida como
terra de quilombos, na zona da Mata do Estado, onde esses jovens, com idade que varia entre 18 e 22 anos, estão sendo dizimados. Chacinas envolvendo
jovens negros são muito comuns naquela região. Quem tiver a preocupação de realizar uma pesquisa no Google sobre estas cidades, antes de visitá-las, pode desistir de conhecê-las.
Os chargistas tem uma imaginação muito fértil para traduzir a nossa realidade. Um deles, possivelmente o Renato Machado - não tenho certeza sobre o autor, em razão de não encontrar mais a charge - em meio ao clamor em torno das mortes por "justiçamento", concebeu um desenho magnífico: numa rua da cidade, havia as vagas para os carros, um bicicletário e uma espécie de local destinado exclusivamente para esses "justiçamentos", muito bem sinalizado inclusive. A serem mantidos os índices atuais de intolerância, não estranharia que esse cartunista apenas tenha se antecipado aos fatos. Práticas fascistas foram verificadas nas mobilizações pró-impeachment de agosto, e até mais recentemente, durante o velório de Luiz Eduardo Dutra, do PT. Parece mesmo que as
coisas não mudaram muito desde então.
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