José Luiz Gomes
Era o ano de 1941. Em pleno Estado-Novo, quatro jangadeiros cearenses realizaram um reide do Ceará ao Rio de Janeiro a bordo da jangada São Pedro, assim batizada em homenagem ao padroeiro dos pescadores. Guiados pela determinação, a esperança e as estrelas - sem bússola ou carta náutica, -Raimundo Correia Lima(Tatá),Manuel Pereira da Silva(Mané Preto), Jerônimo André de Souza(Mestre Jerônimo) e Manuel Olímpio Meira(Jacaré), o líder do grupo, realizaram um feito que entrou para a história da navegação, para a história da luta dos trabalhadores do mar e para a história do cinema, tornando-se uma película do cineasta americano, Orson Welles, somente finalizada oito anos após sua morte.
Integrantes da Colônia Z-1, da praia do Peixe, hoje Iracema, os jangadeiros desejavam denunciar para o país e para o Estado-Novo, corporificado na figura do ditador Getúlio Vargas, a situação de abandono em que viviam aproximadamente 35 mil pescadores do Ceará. O objetivo do reide era, portanto, indubitavelmente, político. O processo crescente de precarização da condição de vida dos trabalhadores do mar precisava ser exposto de alguma forma, e o reide cumpriria esse papel em todos os aspectos, inclusive no tocante à publicidade da repercussão do feito.
Os jangadeiros se indignavam, sobretudo, com a injusta apropriação indevida do resultado do seu trabalho. Os donos das jangadas ficavam com a metade do que eles pescavam. Moravam em toscas palhoças e não eram alcançados pelo instituto da previdência social. Os benefícios sociais, então obtidos pelos trabalhadores no Governo de Getúlio Vargas, não chegavam à classe de pescadores. No entendimento dos jangadeiros, o presidente da República, precisava tomar conhecimento desta situação. A qualquer custo.
Num “bom nordeste”, de uma manhã de 14 de setembro de 1941, os jangadeiros partiram da antiga praia do Peixe, chegando ao Rio de Janeiro dois meses depois. Foram muito bem acolhidos pela população carioca, num reconhecimento explícito pela bravura da odisseia, e, em 16 de novembro, foram recebidos no Palácio do Catete por Getúlio Vargas. Comenta-se que Getúlio teria dito para Jacaré, o líder do grupo, “Conte tudo. Não esconda nada”. Depois de ouvir as reivindicações dos pescadores, Vargas, bem ao estilo populista, teria concluído: “Voltem tranquilos. O Governo saberá ampará-los e dar-lhes justiça.”
Embora Vargas tenha cumprido as promessas formais assumidas – estendendo os direitos trabalhistas à classe de pescadores - Desde então, a situação dos trabalhadores do mar, que se dedicam à pesca artesanal no país, por inúmeros fatores, permanece enfrentado uma série de problemas, como a concorrência desleal com a pesca industrial, agravados pela escassez do pescado, como resultado da destruição dos manguezais, da pesca predatória, da não observância aos períodos de defeso das espécies.
O caso das “meninas marisqueiras” nos oferece uma situação emblemática, identificadora de que o “estado de abandono”, criticados pelos pescadores à época, ainda não foi superado. Em todas as regiões do país, mas, sobretudo, no litoral nordestino, essas meninas enfrentam um grande dilema: precisam optar entre frequentar uma escola com regularidade ou ir à pesca do crustáceo, fundamental para a sua sobrevivência. Não é preciso ser nenhum especialista em educação para concluir que, nessas circunstâncias, é grande o índice de abandono das salas de aula nas regiões litorâneas, onde esse crustáceo ajuda a movimentar a economia local, além de ser fonte de subsistência dessa população.
Na mesma década do reide dos pescadores cearenses, o sociólogo pernambucano Josué de Castro, através dos seus livros, denunciava as precárias condições de vida dos moradores dos mangues do Recife, imprimindo à questão da fome um status político, fruto das engrenagens sociais perversas. Segundo Josué, esses moradores viviam como caranguejos, atolados na lama, numa verdadeira cumplicidade com o mangue. “Ali, tudo é, foi ou será caranguejo”.
Há alguns outros fatos históricos que relacionam, de uma maneira mais orgânica, o Estado do Ceará às jangadas. Além do reide de Jacaré e seus companheiros; os romances de José de Alencar; e um fato emblemático relacionado à libertação dos escravos. Antecipando-se à assinatura da Lei Áurea, o Ceará torna-se a primeira província brasileira a abolir a escravidão. Também possui seus heróis e um desses heróis era um líder jangadeiro, Francisco José do Nascimento, conhecido como Chico da Matilde, um pardo e humilde trabalhador do mar, que se recusou a embarcar, através de sua jangada, escravos para navios negreiros que estavam ancorados no Ceará e tinha como destino o Rio de Janeiro.Levado para a Corte, Chico da Matilde, foi ovacionado pelo povo e rebatizado de Dragão do Mar. Hoje, no Ceará, o Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura é uma homenagem a este jangadeiro que, numa atitude de muita dignidade, contribuiu para, formalmente, agilizar o processo de libertação dos escravos.
As jangadas são embarcações de madeira flutuante, utilizadas por pescadores artesanais para a pesca em alto mar, sobretudo na costa litorânea do Nordeste brasileiro. Trata-se de um barco movido à vela, que incorpora uma série de experiências no campo da navegação, exigindo de seu comandante, destreza, habilidade, perícia e sensibilidade para acompanhar o movimento dos ventos, tábua de marés. As jangadas tradicionais são construídas sem o emprego de metais, ou seja, toda a sua estrutura é montada através de encaixes e amarradas com cordas de fibras selvagens, neste aspecto, incorporando a experiência indígena. Segundo o folclorista potiguar Luiz da Câmara Cascudo, em trabalho encomendado pela propaganda getulista, denominado Jangadeiros, a tradição de fazer jangadas com essas características vem se perdendo ao longo dos anos. Poucas colônias de pescadores da região ainda preservam tal tradição.
As jangadas são embarcações de madeira flutuante, utilizadas por pescadores artesanais para a pesca em alto mar, sobretudo na costa litorânea do Nordeste brasileiro. Trata-se de um barco movido à vela, que incorpora uma série de experiências no campo da navegação, exigindo de seu comandante, destreza, habilidade, perícia e sensibilidade para acompanhar o movimento dos ventos, tábua de marés. As jangadas tradicionais são construídas sem o emprego de metais, ou seja, toda a sua estrutura é montada através de encaixes e amarradas com cordas de fibras selvagens, neste aspecto, incorporando a experiência indígena. Segundo o folclorista potiguar Luiz da Câmara Cascudo, em trabalho encomendado pela propaganda getulista, denominado Jangadeiros, a tradição de fazer jangadas com essas características vem se perdendo ao longo dos anos. Poucas colônias de pescadores da região ainda preservam tal tradição.
O reide do jangadeiro Jacaré e de seus companheiros obteve repercussão internacional. O cineasta Orson Welles tomou conhecimento da proeza através de uma edição da revista Time, que chegou em suas mãos quando ele estava a trabalho, no México. Ao ler a matéria, Orson não teve nenhuma dúvida: estava ali o segundo episódio brasileiro de um trabalho, que estava realizando para o Studio RKO, que integrava as políticas diplomáticas de boa vizinhança, do presidente Roosevelt, para o continente latino-americano.
A presença de Orson Welles no Brasil, e em particular no Ceará, as filmagens de It’s All True – título do filme que incorporava a saga dos pescadores cearenses e o carnaval carioca – a exploração política do episódio pelo do Estado Novo e a morte trágica de Jacaré durante as filmagens – num acidente sob suspeição -, culminou com a interrupção dos trabalhos, o que levou Orson Welles de volta ao Ceará, sem nenhum recurso, para retomar as filmagens, em situação extremamente complicada. Esses constrangimentos até hoje geram muitas especulações e algum folclore.
Determinado a concluir as filmagens sobre a saga dos jangadeiros, Orson Welles, como já afirmamos, voltou ao Ceará com a ideia na cabeça e uma câmara que sequer permitia a gravação de áudio. Convivendo diretamente com os jangadeiros cearenses, Welles, arriscamos a dizer, viveu os melhores dias de sua vida, a despeito das dificuldades: Filmava mesmo nessas condições adversas, um ofício que era sua grande paixão; saia para pescar com os pescadores cearenses; comeu muita cioba fresca com uma cervejinha gelada, nas caiçaras, no final de tarde; contemplava o pôr-do-sol do alto das dunas; dormia em rede; por vezes estirado na esteira de vime, como diria o poeta. Certamente namorava - provavelmente alguma cearense "avermelhada" - e ainda ouvia as conversas de pescadores, naquele bate-papo descontraído. Se, como dizem os seus biógrafos, foram os piores dias de sua vida, afirmaríamos serem os piores melhores dias.
Aqui, no litoral nordestino, um verdadeiro paraíso tropical, Welles teve a oportunidade de livrar-se do tedioso modo de vida americano, a exemplo do escritor Ernest Hemingway, que passou um período de sua vida em Cuba, pescando, escrevendo e observando o cotidiano dos trabalhadores do mar, o que resultaria no romance O Velho e o Mar. Neste período, Orson teria aproveitado o momento para realizar uma viagem ao Recife. Orson, todos sabem, tinha fama de mulherengo e fanfarrão. Hospedou-se no Grande Hotel e, numa noite de farra, teria tomado um porre “daqueles”, perdido o equilíbrio, e caído nas águas turvas do Rio Capibaribe, completamente "mamado". Uma espécie de batismo recifense do cineasta americano. It’s All True!
Há, também, uma teoria conspiratória sobre o acidente com a lancha que vitimou Jacaré, na enseada de Ipanema. Há quem assegure que o Estado Novo, que havia determinado ao DOPS que seguisse os passos dos pescadores para não permitir sua aproximação com a esquerda, poderia ter tramado a morte dos jangadeiros. Apenas Jacaré faleceu no acidente. Seu corpo nunca foi encontrado. O Estado Novo também estaria incomodado com tantos pobres, negros e favelas nas tomadas de Orson Welles no Rio de Janeiro e teria feito gestões junto ao Governo Americano no sentido de interromper as filmagens.
Especulação ou verdade, o fato é que o Studio RKO, logo em seguida, deixou Orson à míngua, conforme já informamos. Antes do reide, os jangadeiros cearenses, por sua vez, esperaram por muito tempo, um sinal verde da Marinha Mercante liberando-os para a viagem. Incomodado com o fato, o jornalista Austregésilo de Atayde escreveu um artigo apaixonado intitulado: “Deixem vir os Jangadeiros”. Por ocasião do encontro com Getúlio Vargas, um dos seus assessores queria saber quem havia escrito o diário de bordo, relatando toda a odisseia. Ao que Jacaré teria respondido: eu mesmo escrevi o diário. Espantado, o assessor teria dito: É um novo Pero Vaz de Caminha! Jacaré, então, retrucou: Este não veio!
Embora Orson Welles seja um pouco fantasioso ao apresentar os pescadores como sujeitos praticamente vivendo longe da civilização – conforme afirma Beatriz Abreu, que escreveu uma tese de doutorado sobre o reide dos jangadeiros cearenses e sua “apropriação” política pelo Estado Novo, como peça de propaganda – o fato é que, já naquela época, a especulação imobiliária naquela área estaria empurrando os pescadores morro à cima. Beatriz Abreu enfatiza, sobretudo, os “ganhos simbólicos” do trabalhismo de Getúlio com o episódio, numa análise que merece ser lida, porque, apesar das críticas, reconhece a dignidade da ação dos jangadeiros.
O cinema nacional dedicaria outros trabalhos envolvendo a temática dos jangadeiros. Em 1926, no Recife, num movimento que ficou conhecido como “Ciclo do Recife”, marco da cinematografia brasileira, com roteiro de Luís Maranhão, Tito Severo e Jota Soares e direção de Gentil Roiz e Ary Severo foi realizado o filme mudo “Aitaré da Praia”, que conta a história de Aitaré, jangadeiro que namorava Cora e se envolve numa série de problemas depois de salvar o rico coronel Felipe e sua filha.
Sobre a presença de Orson Welles no Ceará, Firmino Holanda realizou um excelente documentário. It’s All True seria retomado mais tarde, com o filho de Jacaré, assumindo o papel principal. Depois desse episódio, outros reides foram realizados, embora sem o mesmo glamour e repercussão do reide realizado em 1941, pelos jangadeiros cearenses. Em 1974, quatro outros jangadeiros empreenderam a mesma travessia, quase sempre focadas na exposição das condições sociais dos pescadores.
Em plena ditadura militar, no seu período mais crítico, a repercussão dessa segunda viagem foi bastante suprimida. A jangada dessa travessia de 1974, no entanto, que pertenceu ao jangadeiro José de Lima Verde, e esteve sob os cuidados do Museu Histórico Nacional, tornou-se acervo permanente do Museu do Homem do Nordeste, da Fundação Joaquim Nabuco, exposta para visitação pública no seu pátio externo.
Crédito da foto: Firmino Holanda
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