A primeira ressalva a ser feita é que divirjo politicamente do senhor
Pierre Lucena, professor da Universidade Federal de Pernambuco. Mas,
neste artigo em particular – como bem observou um comentador – parece
que ele chutou a bola com o pé esquerdo, se colocando ao lado daqueles
inúmeros jovens que têm seu acesso interditado ao Colégio de Aplicação
da UFPE. Ainda estamos sob o efeito do artigo: “Sorteio de vagas no
Colégio de Aplicação é mais justo que vestibular para crianças de 10
anos”. O artigo de Pierre Lucena entra no debate acerca das
possibilidades de mudanças no processo seletivo do Colégio de Aplicação
da UFPE.
Não faz muito tempo, depois dos bons resultados obtidos por aquele
colégio nos indicadores de educação do país, publicamos um longo artigo
em nosso blog sobre o assunto. Desde então, sempre movido por uma
perspectiva republicana,já nos colocava como um frustrado defensor da
meritocracia. Em linhas gerais, a meritocracia é o resultado de
oportunidades desiguais, salvo as raríssimas exceções, que apenas
confirmam a regra.
Se há alguma ponderação a ser feita em favor dos seus defensores,
apenas o fato de que alguns indivíduos não “aproveitam” bem essas
oportunidades quando lhes são oferecidas e há aqueles que fazem um
esforço tremendo para superar suas adversidades, comendo o mingau quente
pelas beiradas, mas não passam muito disso não. A “criação” de
oportunidades é uma variável que foge ao controle dos indivíduos. Elas
devem ser ofertadas pela estrutura social. O resto é conversa para boi
dormir. Um teórico que tratou muito bem essa questão foi o sociólogo
francês Pierre Bourdieu, que ficaria conhecido como o sociólogo das
desigualdades.
O tema proposto por Pierre é bastante polêmico, nos contingenciando a
dividi-los em parte, consoante o debate que se seguiu no seu blog
Acertos das Contas. Confesso que também considero temerário submeter
crianças de apenas 10 anos àquela processo seletivo, quando apenas
algumas delas poderão ser bem-sucedidas no final. Há poucas vagas e
passam apenas os “melhores preparados”, consoante inúmeros “filtros”,
exaustivamente discutidos no texto. Todos esses “filtros”, naturalmente,
são impostos pelas contingências de uma sociedade hierarquizada e
profundamente desigual desde a sua origem, forjada no trabalho escravo.
Na realidade, Pierre, apesar de estar “atrelado” ao Centro de
Educação da UFPE, estatutariamente o CAp teria sido pensado não apenas
como um laboratório do curso de Pedagogia, mas, sobretudo das
licenciaturas da UFPE. Apesar de pertencer a outro Centro – Centro de
Ciências Sociais Aplicadas – na condição de professor da UFPE, penso que
você tem credenciais para tratar deste assunto sim, apesar das
contraposições dos colegas professores. Penso que isso ainda refletem as
disputas internas naquela Instituição. Claro que você tem razão ao
observar a “autonomia” forjada em torno desses equipamentos, criados
para dar suporte à formação dos alun@s de determinados departamentos,
como a Rádio e TV Universitária, assim com o próprio CAp.
Em seu artigo, você citou o economista Cláudio de Moura e Castro –
cujo reconhecimento nesta área de educação parece fora de
questionamentos – a despeito do viés conservador. Eu vou citar alguém
mais próximo. Alguém que já foi diretor do Centro da Educação da UFPE. O
professor Yves de Maupeau. Ainda hoje lembro daquela figura esguia,
chegando na UFPE em sua indefectível bicicleta. Lembramos, ainda, de uma
longa conversa mantido com ele, em seu gabinete, onde prontificou-se em
ajudar-nos num desses momentos adversos que a gente enfrenta pela vida.
Ives era uma pessoa progressista, mas, naquele encontro, cometeu o
sincericídio de afirmar que o Colégio de Aplicação não saberia trabalhar
com alunos provenientes de estratos sociais mais empobrecidos, com
deficiências graves em sua formação escolar. Talvez desejasse isso, mas
antevia as dificuldades.
Um dos seus críticos, Pierre, questionou de onde você tirou a
conclusão de que os alunos fragilizados social e economicamente são
raros no CAp. Como poderias ter chegado a essa conclusão sem um
levantamento sobre a origem social daqueles alunos. Penso que no próprio
CAp há informações sobre isso. Polêmicas a parte, possivelmente elas
não refutariam a sua tese.
O sincericídio de Maupeau, praticamente, é uma confissão de que o
colégio é bom porque seleciona os melhores alunos. Bons são alunos e os
professores do CAp, assim como ocorre com as escolas federais de uma
maneira geral – que sempre apresentam bons resultados nos rankings do
ENEM, IDEB e afins. Como manter, então, esses padrões de qualidade ao
recepcionar alunos por sorteio ou por cotas? O CAp não teria competência
para trabalhar com esses alunos, conforme admitiu o professor Ives de
Maupeau? Seria necessário, então, uma reestruturação do próprio processo
de seleção e qualificação dos professores daquela escola, além de
mudanças substantivas no seu projeto político-pedagógico? Penso que o
seu artigo, Pierre, suscitou muito mais perguntas do que respostas.
Um dos seus comentadores argumentou que, pelo menos desta vez, você
se posicionou como alguém que está do lado de cá, da esquerda. Jogou,
como já afirmamos, em favor daqueles segmentos de alunos que não têm
acesso ao Colégio de Aplicação. Sugere, inclusive, que o critério
“regional” poderia ser adotado como critério de seleção, como ocorre em
toda a rede de ensino. Esse critério seria justo? Afinal, como alertava
Bourdieu, numa sociedade de oportunidades tão desiguais, o “local” onde o
indivíduo nasce também passa a ser um elemento diferenciador dos
diabos. Bourdieu teve enorme dificuldade de se afirmar na academia
parisiense porque era de origem provinciana. Nasceu no Vilarejo de
Denguin. Dizem que, por pirraça, escrevia tão difícil. Na França, até no
nome é comum acrescentar essa identidade do local de nascimento.Veja-se
o caso do ex-presidente Valery Giscard D’Estaing. Não deve ser por
acaso.Aliás, nada é por acaso, Pierre Lucena.
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