pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO: Apagadas da História, heroínas negras se tornam protagonistas em coletânea de cordéis
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sábado, 20 de maio de 2017

Apagadas da História, heroínas negras se tornam protagonistas em coletânea de cordéis


Apagadas da história, heroínas negras se tornam protagonistas em coletânea de cordéis
Ilustração do livro "Heroínas negras brasileiras", por Gabriela Pires (Reprodução)
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Líderes quilombolas, escritoras e revolucionárias têm trajetórias ilustradas em Heroínas brasileiras em 15 cordéis; autora quer levar debate sobre racismo para salas de aula


Eva Maria do Bonsucesso, mulher negra no século 19, se envolveu em uma briga com um homem branco e rico, dono de escravos, mas acabou inocentada do caso depois de conseguir testemunhas a seu favor. Maria Firmina dos Reis lançou, por conta própria, o primeiro romance abolicionista do Brasil, fundou uma escola mista para meninos e meninas e enfrentou perseguições durante a vida toda. Teresa de Benguela foi rainha do quilombo do Quariterê, no Mato Grosso, organizando-o de maneira a criar um parlamento local, produzir armas, extrair metais do solo e organizar a colheita e o plantio para que jamais faltasse comida para seus moradores.
Apesar de grandiosas, essas e muitas outras mulheres negras foram condenadas ao esquecimento histórico: apagadas de livros de história, banidas de discussões em classe, arrancadas de contos infantis e relegadas, no máximo, ao papel de esposas de algum herói. Foi pensando nisso que a jornalista, escritora e blogueira Jarid Arraes resolveu resgatar as histórias dessas mulheres e publicá-las no livro Heroínas negras brasileiras em 15 cordéis, cujo lançamento acontece no dia 1º de junho, em São Paulo. “Essas mulheres são heroínas, de fato, e sobreviveram a muitas tentativas de apagamento e assassinato não só dos seus corpos, mas do legado que construíram”, diz a autora.
A coletânea traz histórias bem diferentes entre si, justamente para deixar claro que as mulheres negras têm trajetórias tão diversas quanto a dos homens. Entre as narrativas, há mulheres de vários Estados brasileiros e de épocas diferentes, inclusive dos dias atuais. “Nossa prioridade era mostrar a diversidade entre elas, entre líderes quilombolas, líderes de revoltas e batalhas, escritoras e também a primeira deputada negra do país”, explica Arraes.
Não foi um trabalho fácil: do início da pesquisa até a produção do livro, foram quatro anos ininterruptos. A cordelista conta que tudo começou com um estudo sobre a vida de Dandara dos Palmares (revolucionária negra conhecida principalmente como a esposa de Zumbi), e de Luiza Mahin (ex-escrava abolicionista que entrou para a história, apenas, como a mãe de Luís Gama), nomes que ouviu em seus primeiros contatos com o coletivo de mulheres negras Pretas Simoa do Cariri, da região do Ceará onde nasceu.
Logo nas primeiras leituras, a escritora percebeu a falta de materiais acadêmicos sobre essas mulheres e, intrigada, buscou mais protagonistas negras que marcaram a história: “A maioria dessas heroínas são pouquíssimo reconhecidas e registradas; é um trabalho cansativo e muitas vezes revoltante. Lembro de que na escola aprendi até sobre os casos sexuais dos imperadores, mas a respeito de uma líder como Teresa de Benguela existe muito pouco disponível”. 
A escritora e cordelista Jarid Arraes durante o Festival Latinidades, em 2016 (Foto: Wilson Dias/Agência Brasil)
Entre nomes que surgiam em suas pesquisas e outros que vinham de sugestões de leitores de diversos Estados e regiões, Arraes acabou com uma lista de vinte heroínas negras, cujas histórias publicou em cordéis individuais, de forma independente, e vendeu em eventos feministas e pela internet. As publicações fizeram sucesso – só nos últimos dois anos, mais de 20 mil cordéis foram vendidos-, e daí surgiu a ideia de reunir as histórias em um livro, material mais resistente do que os folhetos de papel sulfite, para facilitar seu manuseio em bibliotecas e nas salas de aula.
Isso porque, para Jarid, o objetivo principal de Heroínas negras brasileiras em 15 cordéis é ocupar o espaço escolar e quebrar o racismo enraizado no ensino, que aparece principalmente na forma de aprender a história do Brasil: excluindo os feitos da população negra e, principalmente, de suas mulheres. “Aprendemos mentiras, como o fato de que os escravos não se revoltavam contra a escravidão, por exemplo. Isso constrói e reforça o racismo”, aponta.
Assim como o conteúdo da coletânea, escrever em formato de cordel também tem a ver com a luta contra o racismo: primeiro, por ser uma mídia acessível, divertida e barata; segundo, por ser uma literatura de luta e resistência. “O cordel veio da tradição do meu povo, do Cariri, do nordeste, e da minha família. Meu avô e meu pai são cordelistas e xilogravadores e eu cresci em contato com isso, lendo, me tornando íntima e admirando”, lembra Jarid. Apesar do sucesso de hoje, a cordelista achava que não teria capacidade de se igualar aos artistas da sua família, pois sentia que escrever era algo para os homens, sobretudo porque suas referências literárias foram quase todas masculinas: “Lia Drummond, Leminski, Ferreira Gullar, Manuel Bandeira, e só tive acesso a obras escritas por mulheres muito tardiamente, quando meu imaginário já estava lotado de homens brancos de meia idade como a imagem do que é ser escritor”, compartilha.
Aos poucos, porém, Jarid conseguiu quebrar esta lógica: em suas pesquisas, ela descobriu escritoras mulheres e mudou sua forma de encarar a literatura. Foi durante essa busca que ela decidiu desenvolver a literatura de cordel, tanto para dar continuidade à sua tradição familiar quanto para trazer uma abordagem nova, com protagonistas femininas – que, geralmente, não se vê nos cordéis. Hoje, Jarid gosta de dizer que Maria Firmina dos Reis e Carolina Maria de Jesus foram suas mentoras, por terem sido escritoras que romperam tantos padrões, dificuldades e sabotagens sociais. “São mulheres que me inspiram a continuar escrevendo e publicando apesar das vergonhas praticadas pelo mercado editorial e pelos eventos literários”, diz a autora, referindo-se à dificuldade de ser uma autora negra e mulher no mercado editorial brasileiro.
Essa dificuldade não existe apenas na literatura: as mulheres negras são a fatia da população mais frequentemente exposta aos subempregos, à prostituição e ao feminicídio. É por isso que Jarid queria publicar Heroínas negras brasileiras em 15 cordéis o quanto antes: “Essas histórias são fonte de coragem para insistir em construir uma realidade mais justa, com equidade e respeito. Já passou, e muito, da hora de conhecermos e falarmos dessas heroínas. Precisamos espalhá-las por aí, mostrar que mulheres negras fizeram grandes coisas no Brasil e no mundo, que os direitos que temos hoje – e que estão sob tamanha ameaça – também foram conquistados por mulheres como essas heroínas, que deram suas vidas em tantos casos”.
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

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