RURALISTAS, CAPANGAS E MOTOSSERRAS
NENHUM HECTARE A MENOS
Sob Temer, interesses privados e paroquiais instalados no Congresso e no Executivo passaram a operar sem nenhum filtro, freio ou contrapeso. Todos os sonhos dos ruralistas começam a se realizar; nenhuma proposta é ousada demais.
8 de maio de 2017
Que fase, senhoras e senhores. Nos últimos trinta dias, tivemos uma chacina de trabalhadores rurais em Mato Grosso, uma tentativa de massacre de índios no Maranhão, o desmonte do licenciamento ambiental batendo novamente na trave no Congresso, a aprovação de uma Medida Provisória legalizando a grilagem de terras públicas e a apresentação da reforma trabalhista no campo que transforma o trabalhador rural em escravo. No momento em que escrevo, aguardam votação no plenário da Câmara duas outras MPs, que entregarão a grileiros, madeireiros e mineradores áreas que o governo federal deveria proteger na Amazônia e na Mata Atlântica. Faltou alguma coisa? Ah, sim: todos os procedimentos de demarcação de terras indígenas e titulação de territórios quilombolas estão parados. E o presidente da Funai foi demitido por seu chefe, o überruralista Osmar Serraglio, ministro da Justiça, por se opor a nomear indicados pelos ruralistas no lugar de técnicos em unidades regionais da Funai.
Essa sequência de eventos não é coincidência. Ela deriva diretamente de uma sinalização política de que o Brasil está aberto ao esbulho. As “barreiras” ao dito “setor produtivo” representadas pela legislação ambiental, trabalhista e fundiária estão sendo removidas todas de uma vez pelo governo de Michel Temer, que renova sua antiga aliança com a bancada ruralista. O Observatório do Clima denunciou, em carta publicada no mês passado, que estamos diante do maior conjunto de retrocessos ambientais da história do Brasil desde a redemocratização.
O presidente evidentemente não está criando nada de novo. A tensão entre ruralistas e setor empresarial, de um lado, e o patrimônio socioambiental do Brasil, do outro, sempre existiu. É do ambientalmente avançado Luiz Inácio Lula da Silva, por exemplo, a frase que qualifica “índios, quilombolas e o Ministério Público” como “entraves” ao “desenvolvimento”. Sob Dilma Rousseff essa corda começou a arrebentar do lado do meio ambiente: a bancada ruralista provou seu poder com o desmantelamento do Código Florestal, enquanto o Palácio do Planalto tentava minar o poder da Funai e barrava áreas protegidas para fazer avançar obras na Amazônia. Hoje, graças à Lava Jato, sabemos quais são os interesses que sustentam este insustentável modelo de “desenvolvimento” a qualquer custo.
O vice de Dilma agora aperfeiçoa as políticas de sua antecessora. Foi auxiliado nisso pelo fato de, diferentemente da ex-presidente, ter um governo monolítico e ampla identificação com o Congresso. Sob Temer, a bancada ruralista ganhou um poder que nunca teve antes, dado que a legitimidade que o presidente não teve nas urnas precisa ser compensada no Parlamento, e esta depende de atrair a Frente Parlamentar da Agropecuária. A barganha do impeachment tornou Temer para sempre refém e cúmplice da Câmara dos Deputados. O peso numérico dos ruralistas naquela Casa se encarregou do resto, com consequências dramáticas para o meio ambiente no Brasil.
Um exemplo foi o recurso inconstitucional às Medidas Provisórias para alterar limites de unidades de conservação. Isso havia sido tentado por Dilma em 2011, a fim de reduzir oito áreas da Amazônia para abrir espaço às hidrelétricas do Tapajós. O processo foi questionado pelo Ministério Público e parou.
Com Temer a coisa fluiu. No ano passado, o presidente editou uma MP, a 756, para cortar 305 mil hectares da Floresta Nacional do Jamanxim, no Pará, e outra, a 758, para reduzir 800 hectares de um lado e acrescentar 51 mil do outro ao Parque Nacional do Jamanxim. Em poucos meses os textos chegaram ao Congresso e passaram em comissões especiais, mas com um “twist”: emendas de deputados transformaram a perda de 305 mil hectares em 1,1 milhão e o ganho de 51 mil hectares em zero. E expandiram os cortes a outras áreas protegidas até na Mata Atlântica, que não havia entrado na história.
Outro exemplo é a relação com os índios. Em nome das obras e do agronegócio, Dilma (madrinha de casamento de Kátia Abreu, não custa lembrar) fez o que pôde para impedir a expansão de terras já demarcadas, permitir hidrelétricas em terras indígenas e enfraquecer o rito de demarcação, introduzindo a consulta a outros “interessados” – leia-se ocupantes ilegítimos. Temer resolveu o “problema” indígena no atacado, por assim dizer: nomeou para o Ministério da Justiça o relator da Proposta de Emenda Constitucional que transfere do Executivo para o Congresso a prerrogativa de demarcar TIs, entregando aos ruralistas a política indigenista. E acelerou o desmonte da Funai.
Sob Temer, interesses privados e paroquiais instalados no Congresso e no Executivo passaram a operar sem nenhum filtro, freio ou contrapeso. Todos os sonhos dos ruralistas começam a se realizar; nenhuma proposta é ousada demais. Como a venda de terras para estrangeiros, que avança no Parlamento após anos parada, ao mesmo tempo em que seus proponentes crucificam ONGs ambientalistas brasileiras por representarem supostos “interesses estrangeiros”.
Os efeitos desse conjunto de retrocessos, porém, voltarão para assombrar o governo brasileiro. De duas formas.
A primeira é a continuidade da aceleração do desmatamento na Amazônia, que já acumula alta de 60% em dois anos. O desmatamento destrói a pouca credibilidade internacional que nos resta no combate ao aquecimento global. Em 2015 e 2016, o Brasil conseguiu a proeza de ser o único país do mundo a acelerar suas emissões enfrentando a pior recessão de sua história. Agora, juntamente com os EUA de Donald Trump e a Rússia de Vladimir Pútin, será a única grande economia da Terra a caminhar em direção à carbonização progressiva, na contramão até de Índia e China.
A segunda, que decorre da primeira, é uma desconfiança global crescente dos padrões de qualidade das nossas commodities. O governo viu, com a Operação Carne Fraca, como os mercados internacionais podem ser voláteis e qual é o prejuízo decorrente disso. Num momento em que o país investe pesado na imagem internacional de seu agro “sustentável, a insistência dos ruralistas em repetir um padrão de comportamento do século 20 para atender a um mercado consumidor do século 21 é um tremendo tiro no pé. Cafezinho brasileiro com trabalho escravo, bife com sangue indígena e soja com carbono são péssimos produtos de exportação. Quando os compradores se derem conta, não vai mais adiantar botar a culpa na Polícia Federal ou mandar o Blairo Maggi para Londres para tranquilizar os mercados.
Ao impor uma política de terra arrasada sobre o meio ambiente, trabalhadores rurais, povos indígenas e quilombolas, governo e ruralistas agem como a cobra que come o próprio rabo, jogando a reputação e a competitividade do agronegócio brasileiro na lama do maior retrocesso socioambiental do planeta no século XXI.
*Carlos Rittl formou-se administrador pela Escola de Administração de Empresas de São Paulo (EAESP- FGV), e fez mestrado e doutorado em Biologia Tropical e Recursos Naturais, pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA). Atua há 20 anos na área ambiental e, nos últimos 10 anos, dedicou-se ao tema de mudanças climáticas, tendo liderado a Campanha de Clima do Greenpeace no Brasil (2005 a 2007) e o Programa de Mudanças Climáticas e Energia do WWF-Brasil (2009 a 2013).
(Publicado originalmente no site do Le Monde Diplomatique Brasil)
Nenhum comentário:
Postar um comentário