As crianças são puras e, porquanto rezava a lenda, possuíam essa condição sanativa. Totonho morava sozinho, numa casinha da zona rural, bastante modesta. Era uma pessoa reclusa e, quando saía, não deixava de estar trajando roupas bastante surradas, um saco nas costas e um porrete numa das mãos, sempre acompanhado de vários cachorros. Também não era chegado ao asseio, o que o deixava com uma aparência estranha. Comentava-se na Vila que Totonho comia de tudo que encontrasse pela frente, como cachorros, gatos, calangos, sapos e, naturalmente, fígado de criancinhas desavisadas. Os garotos de uma certa idade nem tanto, mas os menores temiam muito aquele velhinho, sempre com as mesmas vestes, de porrete na mão e saco nas costas, a assustar as crianças locais. Quando os meninos o viam nas ruas cortavam caminho e se escondiam para não cruzarem com ele. Quando, no início da década de quarenta foi construído um hospital para tratamento de pessoas portadoras de hanseníase no distrito, aí sim é que essa lenda tomou corpo, pois supunha-se que Totonho poderia estar a sequestrar crianças para levar os seus fígados para os leprosos do local comerem. Para completar o enredo, havia registros de crianças desaparecidas misteriosamente na Vila. Este é o nosso segundo texto de literatura infanto-juvenil. Estamos encantado com a experiência.
quarta-feira, 11 de junho de 2025
Resenha: Totonho Papa-Figo.
Numa de suas famosas aulas-espetáculo, o dramaturgo paraibano Ariano Suassuna, relata alguns fatos curiosos envolvendo as pessoas esquisitas que moravam em sua saudosa Taperoá, no Sertão do Cariri paraibano. Ariano conclui que, geralmente, nessas cidades do interior, sempre existe um louco, um ateu, um gaiato ou coisas assim. Até recentemente, descobrimos que o Rio Taperoá cortava a cidade de Cabaceiras, também no Sertão do Cariri, onde meus pais nasceram. Na cidade de Paulista, localizada na Região Metropolitana do Recife, todas essas figuras esquisitas se faziam presentes. Distrito industrial, praticamente formado por operários e operárias que para ali se dirigiam para trabalharem na indústria têxtil local, as características inerentes às cidades de interior acabavam ali aflorando.
Durante a vigência da Ditadura do Estado Novo, que mantinha uma relação orgânica com setores conservadores da Igreja Católica, a presença de evangélicos na cidade era rara. Na realidade, a oligarquia industrial que controlava tudo na cidade, se identificava com o Catolicismo Tradicional e também não gostava de evangélicos, sendo registrado o afastamento de alguns deles das operações nas suas fábricas de tecido ao assumirem sua identidade religiosa. Essas perseguições, explica, em parte, porque a cidade de Abreu e Lima, à época um distrito de Paulista, tornou-se um grande reduto evangélico. Proibidos de atuarem na capital e adjacências, os evangélicos se deslocaram para aquele distrito, antes um local de hospedagem e um verdadeiro prostíbulo a céu aberto, salvo da ira divina em razão da presença dos crentes na cidade.
O interventor do Estado Novo em Pernambuco, Agamenon Magalhães, mantinha uma relação curiosíssima com o parlamentar, sindicalista e líder evangélico Antonio Torres Galvão. O Estado Novo não tolerava evangélicos e os praticantes de religiões de matriz africana. Mesmo em tais circunstâncias, num ato de extremo raposismo político - uma vez que ele era desafeto da oligarquia industrial na cidade - aliado de Torres Galvão, Agamenon permitiu ao líder evangélico suas movimentações de evangelização na cidade, o que facultou a presença de alguns pregadores pela Vila, transmitindo a palavra de Deus. Numa dessas ocasiões, após um desses cultos, por alguma razão, deixaram o microfone ligado e um cidadão com o nome de Sóstenes, apossou-se do microfone e fez um discurso longo, dirigindo um monte de impropérios contra os pregadores, praguejando contra tudo e todos, inclusive contra aquele lá de cima. Somente assim ficamos sabendo que Sóstenes era ateu.
No dia seguinte, sabe-se lá por qual motivo, Sóstenes amanheceu com a boca inchada, alimentando o imaginário social da Vila, onde alegava-se tratar-se de um castigo divino. Talvez não haja outra cidade com tantas pessoas esquisitas como Paulista. O elenco, com algumas exceções, estão presentes em todos os nossos romances ambientados na cidade, como o Menino de Vila Operária, Cidade das Chaminés e Chaminés Dormentes, que trata da origem, apogeu e declínio do ciclo de industrialização têxtil no município. Algumas dessas personalidades são emblemáticas, a exemplo de Roberto do Diabo, que estabeleceu um grande conflito com os coronéis da oligarquia industrial, por ocasião da criação do primeiro sindicato dos tecelões na cidade. Soube recentemente que tal pendenga virou até tese de doutorado. Este editor ganhou um concurso de redação no colégio com uma redação sobre o assunto. A briga entre Roberto do Diabo e o coronel Frederico é um tema bastante explorado nos nossos romances.
Algumas dessas figuras "esquisitas" assumiram um status próprio em nossos textos, a exemplo de Severino Bucho-Azul e, agora, Totonho Papa-Figo. Outra figura que está no prelo é a de Mestiço, um ex-combatente da Primeira Guerra Mundial, que andava pelas ruas da cidade, impecavelmente vestido com suas roupas de militar, uma espada, fazendo discursos na praça pública contra os políticos locais. Não tinha família e morreu assassinado de forma trágica, num episódio que nunca foi devidamente esclarecido. Mas, neste momento, vamos falar de Totonho Papa-Figo. Totonho
Papa-figo era a personificação perfeita do “homem do saco”, uma lenda urbana
que possui algumas variações de acordo com as regiões do país, mas uma possível
origem comum, ou seja, uma figura deformada por alguma doença, que andava com
um saco para sequestrar crianças com o objetivo de alimenta-se do seu fígado,
que, segundo acreditava-se, poderia lhes trazer a cura.
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