O dramaturgo Nelson Rodrigues, que muito
nos mostrou a vida como ela é, já dizia que a unanimidade é burra. Este é
o espirito que acredito ser o mais convincente para se encarar os
debates públicos. É com ele que vale a pena assistir as conferências que
Slavoj Zizek vai proferir em Porto Alegre, São Paulo, Brasília e
Recife.
Por onde passa, Zizek atrai muita gente. Em menos de uma semana as
inscrições foram esgotadas. Esta busca, esta vontade de participar de
debates com um filósofo e psicanalista que escreveu sobre Lenin com
simpatia e que se proclama anticapitalista não é à toa. E vai além de
seu talento. A crise do capitalismo atual somente pode ser equiparada
com a crise dos anos 30. Depois de 50 anos de acumulação capitalista,
finalmente a máquina emperrou. Não quer dizer que a crise não seja
superada, mas a estagnação é um fato. E as dificuldades de um novo
período de longa acumulação estão evidentes. A ideia de colapso do
capital é real, embora, como várias vezes disse o mestre Lenin, não há
situações sem saída para o capitalismo.
Mas o que tem isso a ver com o filósofo que alguns querem que seja
apenas um pop star? É a velha questão da crise de direção revolucionária
definida por Leon Trotsky. Os reformistas de todos os tempos ficam
loucos quando falamos disso. Mas eles também diziam que estávamos
delirando quando dizíamos que a crise capitalista não era um fenômeno do
passado. Muito menos a crise de direção. A formulação mais universal e
precisa de tal crise é a ausência de alternativas anticapitalistas e
socialistas para a crise global que vivemos. Diante da ausência de
alternativas e da conversão em seu contrário de muitos partidos – é o
caso do PT*, que de um partido anticapitalista converteu-se na ideologia
do social-liberalismo – as pessoas que despertam diante das
contradições atuais do sistema, contradições cada vez mais graves,
buscam expressões que possam canalizar, nem que seja parcialmente, sua
indignação e sua vontade de construir algo novo sob o sol. Na ausência
de grandes debates partidários, um intelectual crítico começa a ser
encarado como uma instituição, e os lugares em que ele vai animam muitos
a ir lá conferir o que ele tem a dizer.
É certo que o próprio Zizek iria pular com esta explicação. Ele disse
recentemente em entrevista para o jornal Zero Hora que a crise do
capitalismo é apenas europeia. Sim, disse esta bobagem: a crise é
somente europeia. É claro que todos que leram os seus livros sabem que
ele escreveu coisas opostas a esta. Em seu Vivendo no fim dos tempos,
Zizek diz simplesmente assim: “ A premissa subjacente deste livro é
simples: o sistema capitalista global aproxima-se de um ponto zero
apocalíptico. Seus quatro cavaleiros do Apocalipse são a crise
ecológica, as consequências da revolução biogenética, os desequilíbrios
do próprio sistema (problemas de propriedade intelectual, a luta
vindoura por matéria prima, comida e água) e o crescimento explosivo das
divisões e exclusões sociais.” (Pg 12). Ainda bem que ele não disse
para esquecerem o que ele escreveu. Zizek, aliás, depois de jogar
algumas ilusões numa certa gestão de esquerda dos negócios capitalistas
diz que continua anticapitalista. Neste caso foi bom mesmo avisar.
Então, o fato é que todos nós precisamos de um debate profundo sobre
qual é o estado da situação e que perspectivas estão postas para quem
defende uma transformação estrutural da realidade. É incrível que um dos
lugares mais dinâmicos em que esta discussão está em curso é na Grécia.
Segundo Badiou, a ideia de Bem pensada por Platão na Grécia antiga tem
muito vínculo com a proposta comunista do século XXI. Badiou escreveu um
livro sobre Platão que ainda não está traduzido para o português onde
justamente faz uma releitura acerca das ideais de Platão precisamente
para construir e fortalecer as ideais comunistas. E corretamente diz que
é a possibilidade deste tipo de releitura que permite a eternidade de
uma obra. É o caso da República de Platão.
Entre os protagonistas atuais deste debate esta a coalizão da
esquerda radical Syriza. Eles não têm tudo resolvido – longe disso – nem
pregam a unanimidade – que é burra lá como aqui. Mas sempre é bom saber
que no país em que a crise do capitalismo está mostrando sua força
terrível e degradante, os trabalhadores e jovens estejam empenhados em
lutar por uma alternativa. Por sinal, no excelente livro de Zizek, “O
vivendo no fim dos tempos”, publicado em 2010, o barbudo de fala agitada
deu um chute para fora do gol tremendo quando falou da Grécia. Disse
que a “história da esquerda grega comprova mais uma vez a miséria da
esquerda contemporânea: não há conteúdo positivo em seu protesto, apenas
uma recusa generalizada de fazer concessões para defender o Estado de
bem-estar social”. (pg 347). Ufa! Quem conhece a história da esquerda
grega sabe que ela enfrentou o nazismo e golpes contrarrevolucionários
terríveis. Acho que não completou um ano e o próprio Zizek estava num
grande ato público defendendo o Syriza como um excelente exemplo de
esquerda. Lideres do PSOL como Luciana Genro estiveram também em Atenas,
junto com esta coalização da esquerda radical grega, entregando a eles
todo o nosso apoio. No caso de Zizek, embora tenha criticado uma
esquerda que se limite a defender apenas o bem estar social, acha um
grande progresso que o Brasil tenha o bolsa família como conquista. Aí
realmente não faz sentido.
Como todos perceberam, com Zizek estamos longe da unanimidade. Não
perdemos nunca de vista, porem, seus méritos extraordinários. Não apenas
em seus livros encontram-se ideias brilhantes no terreno da filosofia,
da psicanálise, do cinema e da política. Mas no terreno específico da
política sua popularidade e sua imensa capacidade intelectual tem
ajudado a despertar muita gente para as ideias da esquerda radical
(radical no sentido dado por Marx, de tomar as coisas pela raiz). Com
seu capital cultural, Zizek tem chamado a atenção para a obra de Lenin,
defendendo que este mestre da revolução seja resgatado. Temos esta
dívida como Zizek. Isso já foi dito por Alex Callinicos e creio que é um
reconhecimento justo.
* Zizek disse em sua entrevista a Zero Hora e seu livro acima citado
que Lula apenas corrompeu pequenos partidos. Talvez Zizek ignore que o
PT tem entre seus líderes não apenas corruptores, mas corruptos, entre
os quais estão consultores de grandes empresas capitalistas, como é o
caso dos ex-ministros (os todo poderoso) Palloci e José Dirceu.
Roberto Robaina é presidente da Fundação Lauro Campos.
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