Foto: Anistia Internacional
Hans Staden e a violência endêmica no Rio de Janeiro
por Fábio de Oliveira Ribeiro
É impossível entender a realidade brasileira atual sem conhecer o passado colonial. Todavia, não existe apenas uma história (aquela que nos tem sido contada, de que os portugueses representavam a civilização e os índios eram apenas bárbaros). Outras representações históricas podem ser criadas. A pacificação do presente pode ser o resultado da problematização do passado.
Aqui mesmo no GGN tenho procurado encontrar perspectivas diferentes para compreender o passado para explicar o presente http://jornalggn.com.br/blog/fabio-de-oliveira-ribeiro/violencia-policial-em-sao-paulo-um-fruto-podre-da-falsificacao-historica
http://jornalggn.com.br/blog/fabio-de-oliveira-ribeiro/sergio-moro-e-os-cacadores-de-cabecas-por-fabio-de-oliveira-ribeiro. Volto ao tema por causa da escalada da violência no Rio de Janeiro.
Nos primeiros meses de 2017 a PM do Rio de Janeiro matou 182 pessoas http://esquerdadiario.com.br/PM-do-Rio-mata-182-pessoas-nos-dois-primeiros-meses-de-2017-78-a-mais-que-em-2016, 35 policiais foram mortos http://odia.ig.com.br/rio-de-janeiro/2017-03-16/rio-registra-35-pms-mortos-em-2017.html. A tragédia se multiplica quando esquecemos as estatísticas (que comparam dados recentes aos dados passados) e levamos em conta a terrível carga de sofrimento humano que foi despejada nos familiares dos mortos.
Os números se tornam ainda mais significativos se recuarmos mais no tempo. Hans Staden https://pt.wikipedia.org/wiki/Hans_Staden ficou cativo dos índios tupinambás por 9 meses. Ele nos deixou uma detalhada narrativa deste período. A minha edição do livro dele data de 2000 e foi publicada pela Dantes Editora e Livraria Ltda., Rio de Janeiro.
Durante este período ele soube da morte de uma criança no conflito entre tupinambás e tupiniquins, quando a aldeia Mambucaba foi atacada e destruída e presenciou a execução ritual e o consumo de um prisioneiro na aldeia Ticoaripe. Depois ele presenciou a execução e o consumo de um escravo Carijó dos tupinambás.
Quando os portugueses tentam inutilmente trocar Hans Staden por um caixote de mercadorias ele fica sabendo que a aldeia onde ele está cativo será atacada pelos inimigos dos tupinambás (tupiniquins e portugueses). Staden aproveitou a oportunidade para contar aos portugueses que os tupinambás pretendem atacar Bertioga.
Na batalha naval entre tupinambás (38 barcos com 18 homens cada) e tupiniquins, mamelucos e portugueses (5 barcos cheios) que foi presenciada por Hans Staden, os tupinambás derrotaram e capturaram todos seus inimigos (aproximadamente 90 homens). Os feridos foram imediatamente sacrificados e metidos no moquém. Os demais foram repartidos entre os chefes das malocas tupinambás, cabendo a Cunhambebe, a quem Staden havia sido presenteado por Nhaepepo-oaçu e Alkindar-miri (seus captores originais) um total de 11 prisioneiros: 8 tupiniquins e 3 mamelucos que também seriam sacrificados e moqueados.
A guerra permanente entre tupinambás e tupiniquins e entre os colonos e mamelucos e tupinambás é o principal fenômeno evidenciado pela narrativa de Staden. Se admitirmos a hipótese de que todos os tupiniquins, mamelucos e portugueses aprisionados na batalha naval narrada por Hans Staden foram executados e devorados pelos tupinambás, aproximadamente 93 pessoas foram mortas durante 9 meses. O conflito permanente noticiado pela imprensa entre PMs e bandidos (superlativo utilizado para designar inocentes, suspeitos e criminosos) resultou em de 217 pessoas mortas em apenas 3 meses.
Em números absolutos, o conflito atual no Rio de Janeiro é assustadoramente mais terrível do que o que existia no princípio da colônia. Isto não se deve apenas às diferenças tecnológicas (os índios usavam arcos e flechas, os colonos usavam arcabuzes, armas de uma eficiencia duvidosa há algumas dezenas de metros; os PMs e seus adversários usam armas de fogo automáticas e semiautomáticas muito eficientes), mas aos objetivos a serem alcançados.
Tupinambás e tupiniquins não queriam apenas matar seus inimigos (como os PMs e seus contrários), eles queriam devorá-los. Há, obviamente, um limite biológico para a quantidade de carne que pode ser consumida por um homem ou por um punhado de homens em rituais ocasionais realizados para reforçar os elos entre malocas distantes que contavam com algumas centenas de habitantes. Mas não há um limite definido para a quantidade de pessoas que podem ser mortas a tiros por armas automáticas e semiautomáticas numa cidade que tem aproximadamente 6,4 milhões de habitantes.
Quem são os verdadeiros bárbaros: eles (os indígenas antropófagos do período colonial) ou nós mesmos? Esta é uma pergunta incômoda que eu tenho tentado responder http://jornalggn.com.br/blog/fabio-de-oliveira-ribeiro/cidadaos-bandidos-sintese-da-civilizacao-barbarie-produzida-no-brasil. Se por um lado a antropofagia causa hoje em dia a mesma repugnância que causava entre os portugueses no século XVI, por outro uma repugnância ainda maior deveria causar a escalada de assassinatos entre pessoas que se dizem adeptas do cristianismo.
Com exceção dos parentes de algumas vítimas, parece que os cariocas estão se acostumando à letalidade do conflito entre os policiais e seus adversários. Nas redes sociais se multiplicam ao infinito os comentários de apoio aos PMs ou aos adversários deles. Na TV, uma jornalista evangélica clama por mais sangue instigando a população a se vingar dos bandidos. Impossível dizer o que diria Hans Staden visitasse o Rio de Janeiro nos dias de hoje.
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