pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO: Sérgio Buarque de Holanda e a compreensão dos nexos do debate político brasileiro
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domingo, 30 de abril de 2017

Sérgio Buarque de Holanda e a compreensão dos nexos do debate político brasileiro


Sérgio Buarque de Holanda e a compreensão dos nexos do debate político brasileiro
O historiador Sérgio Buarque de Holanda (Arte Revista CULT)

Para Pedro Meira Monteiro, professor de literatura brasileira em Princeton, conceitos do historiador ajudam a explicar as estruturas sociais e políticas do Brasil de hoje


Grande patriarca da historiografia nacional e pensador vital para compreender os nexos do debate político brasileiro: é assim que Pedro Meira Monteiro, doutor em teoria literária pela Unicamp e professor de literatura brasileira na Universidade de Princeton, se refere ao historiador paulista Sérgio Buarque de Holanda.
Para o professor, que organizou a edição crítica de Raízes do Brasil e as correspondências entre o historiador e Mário de Andrade, os conceitos de Sérgio Buarque, como o de ‘homem cordial’, ainda são fundamentais para entender as estruturas brasileiras.
A cordialidade, por exemplo, definida pelo historiador como a confusão entre o espaço público e o privado, está muito viva na opinião de Monteiro. “No plano macro, é o coronel, o político corrupto, o dono de empresa pronto a corromper quem quer que seja. No plano privado, é o marido violento, o sujeito moralista que é incapaz de pensar para além de um círculo estreito de valores, a pessoa que não paga impostos”, explica.
Sérgio Buarque é considerado um dos fundadores da moderna historiografia brasileira. Com apenas 34 anos, publicou Raízes do Brasil (1936), que viria a se tornar um marco historiográfico e ensaístico brasileiro. Além de professor, atuou como jornalista e crítico literário e foi, em 1980, um dos fundadores do PT. O último dia 24 marcou os 35 anos de sua morte.
Em entrevista à CULT, Pedro Monteiro fala sobre a importância do pensamento de Sérgio Buarque para entender o Brasil atual e suas renovações historiográficas.
CULT – Sérgio Buarque de Holanda, com o conceito de homem cordial, apontava principalmente essa mistura que o brasileiro faz entre o público e o privado. Esta ainda é uma chave interpretativa atual para entender o momento político do país?
Pedro Meira Monteiro – Mais que nunca. A despeito das críticas que se possa fazer às teses de Sérgio Buarque em Raízes do Brasil, a confusão entre o público e o privado ainda é um marco explicativo válido para a compreensão da vida em sociedade no Brasil. Os exemplos são muitos, mas basta pensar na relação de rapina que muitos dos nossos compatriotas têm com o espaço público, na grilagem das terras indígenas nos lugares mais remotos até o cidadão que constrói uma ligação clandestina de esgoto, o que aliás não é feito exclusivamente pelos mais pobres, como bem se sabe. Mesmo a relação conflituosa com os impostos, e a sofisticação com que se escapa deles, dos profissionais liberais às grandes empresas, é exemplo de desrespeito ao que é público. Isso sem contar a classe política brasileira, cujo baixo nível tem também a ver com essa mesma incapacidade de proteger o espaço público da ganância privatista e dos interesses mais restritos.
Esse é, talvez, um dos conceitos mais utilizados e citados de Sérgio Buarque. Acredita que ele é bem compreendido e usado? De que outras formas seu pensamento pode ajudar a entender os problemas políticos e sociais atuais?
O homem cordial de Sérgio Buarque é em geral muito mal compreendido, porque essa “bondade” é apenas uma face, talvez a mais enganosa, de um indivíduo incapaz de compreender as abstrações da política, sobretudo incapaz de representar algo que vá além do seu círculo de familiares e de apaniguados. O homem cordial, no plano macro, é o coronel, o político corrupto, o dono de empresa pronto a corromper quem quer que seja. No plano privado, é o marido violento, o sujeito moralista que é incapaz de pensar para além de um círculo estreito de valores, a pessoa que não paga impostos, o cidadão pronto a passar por cima do outro, e todos aqueles e todas aquelas que não toleram a diferença, porque só podem amar e compreender a sua própria imagem no espelho. Como diria Sérgio Buarque, lembrando Nietzsche, o “seu isolamento é um cativeiro”, isto é, ao não conseguir pensar para além do seu círculo de interesses e de valores, o homem cordial é presa de suas próprias limitações, incapaz de perceber que o mundo vai além dos interesses de um grupo cerrado ou dos desejos de uma única pessoa ou de uma única classe.
Em uma perspectiva talvez oposta à de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque aponta em Raízes do Brasil para uma modernização que seria a única saída para esse impasse da cordialidade brasileira. Você acredita nessa perspectiva?
Ao contrário do que pensam vários críticos, não acredito que em Raízes do Brasil a modernização seja um ponto de fuga absoluto, como se a industrialização e o mercado fossem necessariamente regeneradores para Sérgio Buarque. Raízes do Brasil é um livro cheio de ambiguidades e de impasses. Tem mais perguntas que respostas. O dilema do Brasil seria que a entrada nesse mundo do mercado e da indústria comprometeria uma certa forma de relacionamento “cordial”, isto é, mais pessoal e privada. Tal forma de relacionar-se é terrível (como ela vem o “jeitinho”, o drible na lei), mas é também interessante, porque criaria uma sociabilidade menos rígida, mais acomodatícia. Ou seja, pura ambiguidade. Já em Gilberto Freyre, essa falta de rigidez que supostamente nos distinguiria é objeto de puro elogio, como se o nosso futuro dependesse de uma sociabilidade menos dura, e a nossa fosse uma civilização menos violenta. Mas essa tese evidentemente não passa pelo teste da realidade.
Você acha que essa modernização é, efetivamente, uma saída para os problemas atávicos brasileiros?
Não a modernização como simples avanço do mercado ou da indústria, mas sim modernização como implantação de valores republicanos, que dependem da capacidade que temos de nos colocar acima dos interesses privados e, principalmente, acima dos interesses do próprio mercado. O mercado, deixado à solta, cria concentração de renda, violência e desigualdade. Mas quando é regulado, suas energias podem ser dirigidas para o bem comum. O dogma neoliberal que atualmente dá as cartas mundo afora, inclusive no Brasil, vai contra os valores republicanos que Sérgio Buarque defendia. Não tenho dúvidas de que, se fosse vivo, ele hoje seria um crítico feroz do golpe parlamentar que levou à destituição de Dilma Rousseff. O que prova, se não me engano, que sua ideia de “modernização” tinha menos a ver com o império do mercado e mais a ver com os valores republicanos que o “homem cordial” tem tanta dificuldade de reconhecer.
Como você observa as inovações historiográficas de Sérgio Buarque e sua importância para a constituição de um saber histórico brasileiro?
Ele foi uma espécie de grande patriarca da historiografia nacional, o que não deixa de ser irônico, já que ele era um grande crítico do patriarcalismo. Mas sua compreensão dos nexos do debate político, bem como sua atenção às fantasias do desenvolvimentismo e à criatividade do sujeito que avança por território desconhecido, são ainda hoje vitais. Mesmo quando discorda frontalmente dos seus argumentos, não há pesquisador que não se assombre com a inteligência crítica e com a seriedade do trabalho de Sérgio Buarque. Ele pode errar e acertar, mas é impressionante ver como os seus objetos são trabalhados em perspectiva, e como compreendidos numa dupla escala, tanto num plano interno e minúsculo, onde cada detalhe é importante, como num plano mais amplo, onde os nexos com o resto do mundo são o que realmente importa.
A geração de Sérgio Buarque parecia carregar uma preocupação em definir o que era o brasileiro, a identidade nacional. Acredita que esse é um problema resolvido? Há, atualmente, a constituição clara de um imaginário nacional e uma ideia de nação brasileira?
Acredito que não faz mais sentido buscar o “caráter nacional”. Sérgio Buarque sabe que a definição de uma coletividade é impossível e mesmo indesejável, porque o que interessa não são as raízes que nos prendem a uma origem, mas sim a fronteira em que somos levados a inventar algo sempre novo. Cabe ao historiador, em suma, ver a transformação acontecendo, deixando de lado o que é fixo. O fixo é sempre chato, bidimensional. O que vale é o movimento e a mudança, que definem o que somos em cada novo momento. A “nação brasileira” não é uma coisa fixa, a não ser na mente dos conservadores e dos reacionários, que em geral são os guardiões dos valores mais espúrios. Era sobre isso, também, que escrevia Sérgio Buarque: o discurso conservador enaltece a pátria para esconder o fato de que o futuro está sendo roubado, pouco a pouco, por aqueles mesmos que dizem defender o Brasil.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

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