A extrema direita tem uma função útil para o mercado e para o governo golpista: usar os seus seguidores para “criminalizar” e estigmatizar toda a esquerda e transformar, por conseguinte, a luta por liberdade e justiça social em uma falácia. É lógico que se aproveitam das condições sócio-históricas da democracia atual, onde uma massa de cidadãos desencantados, desorientados e descontentes, não sabem a quem ser leais.
25 de julho de 2017
Quem prepara os meios pelos quais se apoderaria de mim está em guerra comigo, embora não esteja ainda me lançando dardos nem flechas.
Essa é uma frase de Demóstenes, orador grego que no discurso conhecido como a Terceira Filípica tenta convencer os atenienses a se protegerem do avanço de Filipe II da Macedônia em meados do século IV a. C. O orador e político da era clássica procura esclarecer os cidadãos de que, embora Filipe II pareça não querer invadir a cidade de Atenas, ele está se armando e conquistando todas as cidades vizinhas. Os gregos não podiam dormir, precisavam se atentar para a expansão do rei macedônio: “Digo que, se o repelirdes já, sereis sensato, mas, se negligenciardes, não podereis mais fazê-lo, quando quiserdes”.[1]
Essa é uma lição dos antigos que pode muito bem ser útil para lidarmos com o avanço da extrema direita no Brasil atual. Alguns acham que falar dela é dar ibope demais, outros, por sua vez, têm medo de pronunciar o nome “Bolsonaro”, acreditando que assim ele pode ficar famoso já que, em uma época de algoritmos nas redes sociais, ter o nome citado diversas vezes é um caminho para se tornar viral. Mas será isso prudente?
Como iremos nos calar perante um fenômeno social real, que não assola somente o brasileiro, mas a própria democracia ocidental? Isso já aconteceu uma vez. “Cabe lembrar que a supressão de direitos por meio do fascismo é sempre uma opção para o capitalismo”.[2] De acordo com Eric Hobsbawm, um dos maiores historiadores do século XX, foi a negligência da Liga das Nações que fez com que Hitler ampliasse o seu poder.[3] Mas se tratou realmente de uma negligência? Por “mais estranho que Hitler parecesse, tinha uma virtude muito apreciada pelos conservadores ingleses: odiava a União Soviética e todos os comunistas”. Por outro lado, Joseph Stalin interpretou a Conferência de Munique como “a prova cabal de que todos no Ocidente trabalhavam em favor de uma guerra da Alemanha contra a URSS”.[4] Assim se protegeu e até mesmo um acordo com Hitler estabeleceu.
Hoje, evidentemente, o cenário é um pouco diferente, mas o fato é que o crescimento da extrema direita é sempre proveniente do uso desta pela direita com o intuito de combater a esquerda, enquanto que esta, por sua vez, negligencia o crescimento da extrema direita porque acredita que seu maior inimigo é a direita liberal. Isso aconteceu na Segunda Guerra e parece estar se repetindo agora… Que farsa é essa???? Não que isso nos leve a uma nova guerra de proporções mundiais, mas pode nos viciar ao voto útil…
Como os franceses, podemos ficar entre um representante dos bancos, empresário etc.. e um líder troglodita da direita. É lógico que esse cenário é armado: “não nos iludamos – não se trata de um líder isolado. É toda uma máquina midiática que impulsiona esse líder, amparada por entidades e associações patronais, como a Fiesp, que estruturam o conflito dessa forma”.[5] A Globo, por seu turno, publicou, quase que instantaneamente, após a condenação de Lula por Moro: “Bolsonaro parabeniza Moro por condenação de Lula”.[6] Depois arma todo o teatro da polarização para nos desviar dos problemas reais que conduzem as lutas de classe, como a aprovação das reformas trabalhistas.
Por isso é importante destacar um outro aspecto. O desdém ao crescimento da extrema direita não a dispersará, pelo contrário, mais ódio criará. Aristóteles mostra como determinados oradores podem incitar a cólera nos ouvintes. A cólera “nos incita a tomar vingança manifesta por um desdém manifesto, e injustificável, de que tenhamos sido vítimas, nós, ou algum dos nossos”.[7] Como é mais que sabido, Lula e a esquerda são acusados de causar a crise no país, pelo menos é o que a mídia e os seguidores de Bolsonaro nos fazem acreditar. E o que devemos fazer? Desdenhar? São “irascíveis e prontos em encolerizarem-se principalmente contra os que tratam com desdém o estado presente em que se encontram”.[8]
A extrema direita tem uma função útil para o mercado e para o governo golpista: usar os seus seguidores para “criminalizar” e estigmatizar toda a esquerda e transformar, por conseguinte, a luta por liberdade e justiça social em uma falácia. É lógico que se aproveitam das condições sócio-históricas da democracia atual, onde uma massa de cidadãos desencantados, desorientados e descontentes, não sabem a quem ser leais. Mas é pela retórica que essa direita cresce.
Daí voltamos a Demóstenes. A sua oratória se vale do “dizer aquilo que não é de agrado do povo”, o que parece esboçar sinceridade e neutralidade. Esse tipo de argumento faz parecer que o orador está apenas se baseando na lógica. Intitula-se e adora quem o intitula de realista. Isso lhe dá o direito de usar até mesmo palavras duras, afrontando o ridículo, pois a verdade não tem engodo, enfeites ou ornamentos. Diz o orador grego: “Uns diziam o que era do agrado do povo e não causava nenhum aborrecimento; outros, o que devia salvá-los, e acumulavam-se animosidades”.[9] E até hoje temos essa sensação, acreditamos que aquele que “fala na cara”, que não mede as palavras, enfim, o realista, acaba, injustamente, sendo vítima por ser verdadeiro. Isso é apenas retórica!
Sancho Pança ao perceber que o exército de Pentapolin que marchava contra o de Alifanfaron era apenas dois rebanhos de carneiros, foi advertido por Dom Quixote: “É o medo que tens, Sancho, que te faz ver e entender tudo mal”. Mas será que o exército de Bolsonaro que se levanta hoje contra a democracia é apenas um rebanho de carneiros? Ou talvez o medo de uns camufla o real e os fazem “ver e entender tudo mal”? É certo que “aquele que não tem medo não é normal”, mas acho que não deveria ser medo o sentimento que devemos sentir, mas esperança. O medo é um afeto expectante negativo, aquele que espera um futuro ruim, atormentado e desencadeado pela angústia, pode acarretar pavor, horror e desespero. Mas para o filósofo Ernst Bloch, há os afetos expectantes positivos. “A esperança frustra o medo”.[10] E um dos versos de Hölderlin diz: “onde há perigo, cresce também o que salva”.
Por isso, o aumento dos movimentos sociais em meio à crise da democracia. Bernie Sanders, o candidato democrata à presidência dos EUA, ganhou relevância falando de socialismo em meio a uma eleição que deu vitória a Donald Trump. As eleições do Rio de Janeiro levaram ao segundo turno um candidato que tinha como única coligação o Partido Comunista Brasileiro, o Partidão de Marighella. Não somos nós que estamos com medo, mas os patrões que estão aumentando o rigor em usar a mídia, a repressão policial e seus palhaços com cara de maus para combater o que está em avanço.
Talvez a estratégia de só se falar em Lula seja uma forma de nos levar a pensar em um único líder, um líder que não é tão adversário dos interesses empresariais. A esquerda radical está ganhando cada vez mais espaço, à medida que os movimentos sociais se expandem, à medida que as ruas vociferam. Por isso, o surgimento da extrema direita. Ela parte do Lula para descaracterizar toda a esquerda. O líder do PT é stalinista, trotskista, gramsciano, chavista… A grande variação de pensamento socialista conflui em um único ser. Ser comunista passa a ser petista. E, em muitos casos, alguns movimentos e veículos de informação independentes caem nessa polarização viciada. Aliás, os governantes sempre souberam dividir para conquistar, é tradicional, lendário.
Temos que falar de Bolsonaro sim! Da sua relação no jogo do poder, no jogo de linguagem. Das verbas que recebe do governo golpista e do trato dúbio que a mídia o dá (livrando-o da corrupção e o condenando apenas por “falar sem decoro”). O poder sabe se disfarçar muito bem por de trás de seus lacaios, de suas marionetes, que muitas vezes não sabem o que estão fazendo, mas confortáveis estão com a fama e com a ilusão de gozar com o poder.
*Raphael Silva Fagundes é doutorando em História Política da UERJ e professor da rede municipal do Rio de Janeiro e de Itaguaí.
[1] DEMÓSTENES. As três filípicas/Oração sobre as Questões da Quersoneso. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 78.
[2] BAVA, Silvio Caccia e ROMANO, Jorge O. Vamos falar de populismo. Le monde diplomatique Brasil. Ano 10, n. 120, julho, pp. 03-05, 2017, p. 05.
[3] HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX 1914-1991. 2 ed. São Paulo: Cia das Letras, 1997. p. 45.
[4] GOLÇALVES, Williams da Silva. A Segunda Guerra Mundial. In: FILHO, Daniel Arão, FERREIRA, Jorge e ZENHA, Celeste (orgs.) O século XX: o tempo das crises. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 171.
[5] BAVA, Silvio Caccia e ROMANO, Jorge O. op. cit. p. 05.
[6] KRAKOVICS, Fernanda. Bolsonaro parabeniza Moro por condenação de Lula. Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/bolsonaro-parabeniza-moro-por-condenacao-de-lula-21581554
[7] ARISTÓTELES, Arte retórica e arte poética. Rio de Janeiro: Tecnoprint, s/d. p. 117.
[8] Id. p. 119.
[9] DEMÓSTENES, op. cit., p. 93.
[10] BLOCH, Ernst. O princípio esperança. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005. p. 113.
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