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quarta-feira, 9 de agosto de 2017

Professor da UFMG é criticado por tarefa considerada racista em curso de Arquitetura

                                          

Helô D'Angelo                                                                                
                                                                                

Professor da UFMG é criticado por tarefa considerada racista em curso de Arquitetura
Detalhe da arte de Cícero Dias baseado no esboço de Gilberto Freyre para a capa de 'Casa-Grande e Senzala' (Reprodução)

Um projeto de Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) se tornou tema de debate entre alunos do curso de Arquitetura. O trabalho, previsto como atividade opcional para o segundo semestre de 2017, pede que os estudantes projetem uma casa de luxo de 800 metros quadrados com separação para área de empregados.O professor da disciplina em questão, Otávio Curtiss, chamou a atividade de “Casa Grande”.
Em resposta, alunos do Diretório Acadêmico da Escola de Arquitetura (DAEA) publicaram uma nota de repúdio, em que ressaltam o teor racista da atividade. “Após 129 anos da abolição da escravidão no Brasil, a estrutura escravocrata ainda segue presente no cotidiano brasileiro. Como discutido em diversas disciplinas na EAD-UFMG, o quarto de empregada, por exemplo, tem como origem a segregação escravista”, afirmam, no texto. “O programa da disciplina, agravado pelo nome, explicitamente fere e desrespeita estudantes que, em diferentes níveis, conseguem subverter a ordem escravista ainda existente no Brasil.”
Joice Berth, arquiteta e urbanista especialista em direito à cidade, apoia o protesto dos estudantes. “A arquitetura é uma profissão que trabalha símbolos. Em pleno 2017 um professor trazer a simbologia do período escravista, em vez de propor novas soluções, é descaradamente racista.”
O arquiteto Álvaro Puntoni, professor da FAU-USP e da Escola da Cidade, diz que a questão deve ser vista com cuidado. Ele concorda que o nome “Casa Grande” foi “uma escolha infeliz”, mas se pergunta se a ideia do professor não foi justamente motivar alguma crítica por parte dos alunos: “Esse exercício pode ter dois lados: ou ele pode ensinar uma visão conservadora, ou pode provocar uma crítica. Fico feliz que os alunos tenham criticado”.
Procurado pela reportagem da CULT, o professor Otávio Curtiss não respondeu ao pedido de entrevista. Ao jornal O Globo, ele afirmou: “Não tenho interesse em entrar nessa questão. Os alunos não são obrigados a cursar essa disciplina para obterem o grau de arquitetos”.
Ainda que tenha preferido dar o benefício da dúvida a Curtiss, Puntoni vê com maus olhos o que chama de “separação da vida e do serviço” na arquitetura: “Essa divisão, que nasceu nas casas coloniais, é muito retrógrada, mas continua sendo reproduzida mesmo em apartamentos de 50 metros quadrados que hoje dominam a cidade por causa do boom imobiliário”.
“Esconder” a área de serviço, segundo o professor, sequer faz sentido arquitetônico: “Por que você colocaria a área de limpeza perto do lugar onde se come e onde se convive, que é a cozinha?”. Ele lembra que a cozinha, desde o surgimento do conceito de casa como o lugar onde se vive, sempre foi o centro da vida de uma residência, onde a maior parte das decisões e das ações importantes aconteciam – e continuam acontecendo, em boa parte dos lares. “O próprio termo ‘lar’ vem do latim ‘lare’, que significa ‘a parte da cozinha onde se acende o fogo’”, diz.
Em outros países, como a Holanda e os Estados Unidos, a “área de serviço” geralmente fica próxima ou mesmo dentro do banheiro, por pura praticidade. No Brasil, apartamentos do edifício Copan seguem esse tipo de organização espacial. “Aqui, essa vontade de dividir e de esconder os locais de tarefas domésticas tem a ver com a desvalorização deste trabalho. É um reflexo da vontade dos patrões de não ver os empregados ou a forma pela qual as tarefas de casa são feitas, como na época da escravidão”, diz o professor.
Berth concorda: “Nossa mentalidade está atrelada ao período escravagista. A empregada hoje é cozinheira, babá, faxineira, passadeira e ainda por cima dorme no emprego, em um quartinho minúsculo e separado do resto da casa. Ela é praticamente uma escrava. Fora daqui, não existe essa desvalorização: a jornada de trabalho doméstico e o salário são compatíveis aos de qualquer outro trabalhador. Por isso, lá fora não tem porque haver essa separação”.
Apesar da divisão entre entre área íntima e de serviço ser comum até hoje nas casas brasileiras, tanto Berth quanto Puntoni afirmam que essa concepção espacial vem perdendo espaço nos cursos de arquitetura no Brasil. “Em diversas universidades, a preocupação geralmente é oposta: acessibilidade, inserção social, modernização. Eu mesma tive que fazer como primeiro projeto uma casa com acessibilidade para uma família com um deficiente visual”, lembra Berth.
Em nota publicada ontem (1), a Câmara Departamental do Departamento de Projetos da Escola de Arquitetura afirmou que vê com legitimidade o protesto dos alunos. O órgão disse também que a disciplina será revista – sem que isso afete o currículo dos alunos que haviam se inscrito na atividade -, e comprometeu-se a, no futuro, propor mais debates e “aprimorar os processos de aprovação da oferta das disciplinas, tornando-os ainda mais criteriosos”.
Ainda de acordo com a nota, o professor Curtiss disse que não foi sua intenção reproduzir o racismo. A Câmara Departamental pediu desculpas a “todos que se sentiram ofendidos no desenrolar desse
episódio”.


(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

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