pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO: Reforma psiquiátrica e a violência nos manicômios
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quinta-feira, 7 de outubro de 2021

Reforma psiquiátrica e a violência nos manicômios

 

Reforma psiquiátrica e a violência nos manicômios
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Manicômio de Barbacena, em Minas Gerais, em 1979 (Foto: Jane Faria/Estado de Minas)

 

Essa é uma história entre tantas outras, senão fosse a singularidade de uma vida perdida em anos de internação psiquiátrica e somente os últimos 6 anos de volta à cidade. Esse é um texto sobre as violências que uma mulher sofre ao ser confinada em um hospital psiquiátrico por dezenas de anos, mas também um texto para pensarmos a importância dos 20 anos da lei 10.216, completados neste ano – promulgada em 2001, a lei dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental, com internação de pacientes somente indicada quando todos os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes. E, por fim, serve para mantermos os olhos atentos e evitarmos os retrocessos impostos pelo atual governo, que flerta sistematicamente com a volta dos hospitais psiquiátricos.

Será que inicio esse texto pela fragilidade de um corpo negro ou pela força desse mesmo corpo sustentado por uma senhora de 73 anos, com aproximadamente 1,55 m de estatura e peso não superior a 45 kg? Foi assim que encontrei, pela primeira vez, Dona Cida, moradora de uma Residência Terapêutica na região oeste de São Paulo, casa que existe desde 2009, uma das primeiras casas destinadas a egressos de hospitais psiquiátricos na cidade de São Paulo. No meu primeiro dia fui recebido por ela, na sala de jantar, com um sorriso sem dentes e as palavras: seja bem-vindo! E me senti bem em cada dia em que estive com ela, nas brincadeiras e nas reclamações das dores nas pernas que ela carregava. Uma senhora de nome Aparecida, grande parte do tempo deitada em seu quarto, enrolada em três ou quatro cobertores, com a janela fechada, e que era aberta assim que ela me via entrando no quarto. Nesse momento, ligava também a televisão que ela mesma escolheu na loja, depois de muita luta para convencê-la a gastar um pouco de sua poupança – conquistada nos anos em que morou nessa Residência Terapêutica – adquirida através do Benefício de Prestação Continuada (BPC) e do Programa Volta Para Casa (PVC) – garantidos aos usuários de saúde mental egressos de hospitais psiquiátricos que têm documentos de identidade. Na realidade, Dona Cida odiava gastar dinheiro, e quando informava o quanto tinha na poupança, vinha com a resposta firme: dinheiro acaba, meu nego!

Nas atividades da casa, ela ajudava a lavar as louças nas terças e quintas- feiras – de acordo com a escala realizada em uma roda de conversa com todos os moradores, tarefa que fazia com gosto. Descia sorrateiramente do quarto por volta das onze horas da manhã, colocava a toalha na mesa de almoço, os pratos e talheres na bancada da cozinha. Conversava um pouco, verificava o andamento do almoço e logo subia para o quarto. Descia novamente, por volta do meio dia, quando algum morador gritava ao pé da escada que o almoço estava na mesa. Olhava as panelas e, vez ou outra, complementava seu almoço com um ovo frito, feito por ela mesma.

O subir e descer os degraus da escada me causava apreensão. Suas pernas frágeis pareciam sofrer nessas descidas e, algumas vezes, perguntei se ela gostaria que fizéssemos um quarto no andar inferior, para que não precisasse das escadas, o que ela negou de pronto, informando gostar do seu quarto. A bengala, nunca usava. Dona Cida falava pouco, mas se posicionava sempre nas discussões da casa: sobre o almoço, a festa de fim de ano, a cerveja sem álcool que não podia faltar, a contratação da nova faxineira…

Durante o almoço, sentada à mesa, fazia questão de que todos os moradores também se sentassem e, quando algum dizia não querer – informando que a mesa era pequena –, ela mostrava o incômodo que lhe causava, solicitando que a obedecessem; ato que, mesmo a contragosto – e apertados no pouco espaço disponível –, era prontamente realizado. Um dia, conversando sobre a casa e os móveis, ela me perguntou se poderia comprar uma mesa maior, já que na mesa existente não cabiam todos os nove moradores e os dois cuidadores que trabalham no regime de plantão. Foi assim que saímos à procura de uma nova mesa. Ao entrarmos na loja, ela foi procurando entre os modelos disponíveis, com seus critérios de cor da madeira e assento de espuma. Saímos da loja com uma mesa nova, grande, bonita. Depois da compra, não havia mais desculpas, todos se sentavam à mesa!

As dores nas pernas eram a fala cotidiana, que me fazia solicitar-lhe que fôssemos ao médico ou procurássemos um fisioterapeuta, ou ainda, que buscássemos uma atividade física. Ela sorria e dizia: meu nego, estou acostumada, eu tenho dores há quarenta anos! Mas eu sei que tô morrendo, então não se preocupe. As falas sobre morte eram constantes. Os exames de rotina indicavam que ela estava com uma saúde boa. Mas eu sabia que as dores dela não eram simplesmente das frágeis pernas… ela viveu anos confinada nos muros manicomiais!

Acostumada ao quarto, acumulava vestidos que nunca usava, em um guarda-roupa que ela não aceitava que quase ninguém abrisse. Vez ou outra sumiam panos de prato, cinzeiros, fósforos, e sabíamos onde encontrar as peças perdidas. Ela sorria e dizia: eu falei para não abrir meu armário. A vida seguia num passo certo em pernas frágeis…

As conversas com ela, sempre agradáveis e no quarto, me emocionavam no cotidiano, e remetiam a histórias de uma época em que ela não morava no hospital. Uma menina negra de 7 anos, que dizia não se lembrar de sua família. Uma menina que aos 7 anos trabalhava em cafezais, que não se lembra como foi parar lá mas sabia que não queria lá ficar. Uma menina que depois foi morar na cidade e trabalhar como babá, em Andradina, no interior de São Paulo. A fuga para a cidade grande, quando ela diz ter seduzido o marido, um moço que passava na porta de sua casa indo para o trabalho. O pedido para que viessem morar na Penha – bairro de São Paulo – veio logo depois. Casada aos 10 anos, com um homem 8 anos mais velho. Os filhos não vingaram. A antiga babá perdeu três filhos, dois no nascimento e um atropelado, coisa que só descobri depois. Quando eu tentava algum assunto que ela não queria, a resposta era categórica: eu sofro de esquecimento, eu faço de conta que esqueci de tudo!

A festa dos 74 anos aconteceu em uma tradicional pizzaria no bairro do Bixiga. Pizza, cerveja sem álcool e poucos convidados. Não queria bolo, mas, finalizado o jantar, pediu uma sobremesa ao garçom, que veio emendada numa fala: hoje é meu aniversário! Surpresa com a vela em cima da sobremesa, cantamos parabéns. Dona Cida, emocionada, levantou-se, encheu os olhos d’água e sorriu.

Logo veio o fim de ano, as festas e uma notícia ruim… Numa tarde de domingo, meu telefone tocou e a cuidadora de plantão informou que Dona Cida não estava conseguindo levantar da cama. Aquela mulher negra, frágil, que tinha uma força incrível, não conseguia se erguer. Cheguei logo depois na casa e pedi que ela fosse até o pronto-socorro. E mesmo a contragosto, ela sabia que precisava… Voltou no mesmo dia para casa e retornou ao hospital no dia seguinte. Veio a internação por anemia. Fui visitá-la, conversar com os médicos, que me informaram que ela permaneceria internada mais um dia para uma transfusão de sangue. Pedi para vê-la e fui informado de que ela estava agitada e tinha sido contida no leito. Quando entrei na enfermaria, ela sorriu e pediu-me que não a deixasse ali, que nunca tinha sido amarrada depois que saiu do último Hospital Psiquiátrico onde morou por 10 anos. Expliquei que seria somente uma noite, que eu falaria com a enfermeira sobre a não necessidade de ela ser amarrada e que no outro dia voltaria para buscá-la. Dona Cida olhou em meus olhos e disse que não queria ficar ali, mas que me esperaria no outro dia, e que estava fraca demais, com suas dores de muitos anos. Saí de lá com a médica explicando, de acordo com os protocolos do hospital, que a alta seria na manhã seguinte, assim que ela ficasse um pouco mais forte.

No dia seguinte, 31 de dezembro, cheguei ao hospital mais tarde, fora do horário de visita. Guardava em mim uma sensação ruim quando não consegui entrar para vê-la, sendo informado que ela não havia recebido alta e que eu poderia esperar o fim do dia para falar com a médica. Não consegui esperar, entrei e fui atrás da médica, a mesma que no dia anterior tinha me dito sobre a anemia e a alta. A médica, emocionada, disse-me que não sabia o que havia acontecido, que chegou no plantão, viu o resultado positivo com hemoglobinas normalizadas, foi até o leito e encontrou Dona Cida utilizando respiração mecânica. Eu, perdido com a situação, só escutei a pergunta da médica: quero saber de você se investimos ou não no quadro dela. Pedi para falar com ela, me despedir, caso a morte – tantas vezes mencionada – tivesse chegado para aquela mulher negra e agora mais frágil que antes.

Quando cheguei ao lado dela, trocamos nosso velho olhar… por uma fração de segundos, antes que o apito da morte soasse. Ela me esperou como havia prometido! E eu não deixei que ela morresse sozinha…

“Falar da Dona Cida é querer dormir por um ano”, foi essa frase que escutei quando voltei para casa e tive que contar para os outros moradores sobre o que havia acontecido. Choramos todos um pouco, antes de uma outra fala: ela morreu, agora precisa descansar! Os moradores se levantaram e, mesmo cabisbaixos, seguiram sua rotina… Eu tinha me esquecido que a morte era uma grande conhecida dentro do hospital. A força daqueles moradores me fizeram entender algo: Dona Cida viveu seus últimos 6 anos em uma casa. Ela teria um enterro digno, uma foto na lápide e velas acesas para ela. Dona Cida era uma vida reconhecida por nós, que viveríamos o luto pela perda de uma das mulheres mais fortes que eu conheci.

Após o enterro, o retorno para casa… o almoço na mesa que era dela. A cerveja gelada foi aberta por um morador e a frase: Seu José, eu abri a cerveja porque a Dona Cida quer que a gente viva como ela viveu! Bebemos todos…

Alguns dias mais tarde, era a hora de abrir seu guarda-roupa. Ao meu lado, alguns moradores e, ao final…

Cadeados fechados/ cadeados abertos/ chaves/ cinzeiros/ pentes/ fotos/ carteira de trabalho/ carteira de trabalho do marido morto/ holerites do marido/ certidão de nascimento de um filho/ certidão de natimorto de outro/ certidão de batismo de um terceiro/ vaselinas (algumas)/ mais cinzeiros/ mais fotos/ moedas antigas/ fotos antigas/ japoneses crianças/ japoneses adultos/ declarações de amizade em fotos/ notas de real/ bolsas/ carteiras/ isqueiros/ orações/ sacos plásticos… Como falar da memória?

Relatar um pouco sobre a história de Dona Cida é, ao contrário do sofrimento, a possibilidade de sabermos o quanto a vida dela foi possível de ser retomada após os anos de internação no Hospital Psiquiátrico. A saída daquele hospital e o retorno a uma casa na cidade foi potencializador para que pudéssemos encontrar de novo a mulher cidadã e não a “louca” do manicômio. A morte digna e reconhecida, com um ritual de passagem, se deu somente pela possibilidade de compreensão de que essa vida era passível de luto. A missa marcada na igreja do bairro, trinta dias após sua partida, foi solicitação dos moradores. Aos que assistiam à missa não cabia saber quem foi Dona Cida, mas em mim havia a certeza de que uma vida foi ali vivida. Dona Cida morava com mais 8 pessoas, todas elas também egressas de longos anos de confinamento manicomial, a maioria sem ideia de onde estão seus familiares.

Ainda hoje, quando algum morador diz não querer se sentar à mesa, a imagem de Dona Cida é retomada, quase sempre seguida da fala sobre essa frágil-forte mulher ter deixado um presente, uma herança para a casa: uma mesa! A própria imagem da mesa está presente em nossa cultura como o lugar dos encontros, onde as famílias se reúnem para comer, mas, acima de tudo, para as conversas. As rodas de conversa com os moradores acontecem em volta da mesa, com café e lanches. É nesse contexto que a apropriação da cidade começa a existir. É na mesa que surgem as ideias de passeios coletivos ou individuais, as decisões sobre quais moradores querem ir em algum aniversário em outra Residência Terapêutica, assuntos sobre as festas no Centro de Atenção Psicossocial –CAPS e também as discussões entre moradores ou sobre o quanto algum morador está deixando de fazer alguma atividade de rotina na casa.

Ao longo desses anos morando em casa, em um bairro de classe média, os móveis não são mais os mesmos. Hoje, eles têm a cara de seus donos: dois sofás grandes escolhidos por eles, além de almofadas, televisão de 40″, tapetes, redes, bancos de madeira, cinzeiros, geladeira que acomoda as latinhas de cerveja, aquário, escrivaninha e a mesa, escolhas do melhor lugar para determinado móvel e, acima de tudo, cantos particulares e coletivos, alterados conforme o tempo ou o humor de cada um. Assim, recuperamos o conceito de casa, para além da moradia, como um lugar onde habita: um lar. E fora da casa, pessoas que gostam de andar pelo bairro, comprar o pão na padaria da esquina, fazer a barba no barbeiro escolhido, comprar sorvete no mercado próximo, sair para jantar no restaurante da infância, passear na estação de trem… enfrentando hostilidades, buzinas de carros, na resistência em se colocar como cidadãos na cidade.

Esse conto para Dona Cida pode ser compreendido como um respiro para o cotidiano dessa casa, mas é fundamental analisar o enfrentamento diário, por vezes difícil. A equipe precisa de uma força imensa, inclusive para entender que suas práticas precisam ser revistas a todo instante, porque morar em uma casa não é garantia antimanicomial. E a casa precisa ser posta para o lado de fora, no portão que abre e fecha de acordo com o desejo de cada morador. E para que o morador queira sair de casa, precisa ter certeza que conseguirá enfrentar as violências da cidade, mas não as violências por ele ser um usuário do serviço de saúde mental.

E para que todo o trabalho seja realizado, ou para que esses cidadãos possam existir, uma rede de saúde mental, bem como uma rede social precisam existir de forma concreta. A apropriação da cidade só é possível se tivermos a garantia constante de pessoas que ajudem nos enfrentamentos cotidianos. Se hoje os moradores dessa Residência Terapêutica conseguem se sentir donos de uma casa, isso só foi possível, e ainda é, através da implicação constante da equipe, da rede e da possibilidade de reconhecimento da comunidade. Compreendo essa experiência, que partiu do conto construído, como fundamental para que sigamos nosso trabalho contra as internações psiquiátricas; mas não confundam com algo estabelecido… isso é apenas o início de um processo complexo, no qual precisamos reconhecer a existência dos loucos na cidade.

Para tanto, é fundamental nos aproximarmos da necessária Reparação de Danos para as pessoas que tiveram suas vidas perdidas nos anos de internação hospitalar. A Reparação de Danos articula-se com a exclusão social, ampla e fora dos antigos muros que protegiam a sociedade do louco, mas que, também, o protegiam das cotidianas e sutis violências a que muitos outros, mesmo sem serem loucos, estão expostos. O que podemos enfatizar é que, em termos da exclusão social, essas pessoas se somam também a outras parcelas da sociedade, que têm no cotidiano de suas vidas seus direitos obstaculizados e, tantas vezes, negados. Aqui, esses problemas convergem na compreensão de uma sociedade excludente para com muitos de seus habitantes, todos sem voz, seja pelos seus delírios, seja pela negação do seu discurso: loucos, travestis, transexuais, população em situação de rua, refugiados, negros, gays, lésbicas, usuários de álcool e outras drogas e tantos outros.

Em suma, são ex-moradores de hospitais psiquiátricos, mas muitas vezes são loucos, negros e pobres que, por vezes, denunciam os absurdos obscurecidos pela rotina, violências sutis presentes nas buzinas quando, distraídos, andam fora da calçada, numa cidade que não para e cujos códigos de sobrevivência são mais rígidos do que se imagina. Assustam, gritam, choram sem pudor, soltam gargalhadas sentados em um banco de praça, andam pelas ruas, cumprimentam os vizinhos, falam sozinhos em voz alta, desconhecem o código de civilidade que demarca a vida urbana, do anonimato, da cordialidade discreta, dos limites em relação ao espaço do outro. São pessoas como todas os outras que frequentam os mesmos espaços, porém, carregam no corpo a precariedade, que o restante da população não reconhece como fundamental e que requer um esforço de negociação mínima e respeito para com esta existência singular.

A Reparação de Danos exige reconhecimento para que possa ser operada na sociedade em um enfrentamento da condição de vida das parcelas socialmente vulneráveis e na sua concreta inserção na sociedade como cidadãos de direito, reconhecidos como sujeitos. Esbarra-se, aqui, num problema mais amplo, denominado cultura, cuja historicidade demarca uma constante dificuldade em lidar com as diferenças sem ser na base da classificação, hierarquização e segregação. Trata-se de uma cultura narcísica, pautada pelo encontro e reverência ao que espelha ela própria.

 

José Alberto Roza Júnior é doutor em Psicologia do Desenvolvimento Humano (IP-USP), professor da Universidade São Judas (SP), psicólogo clínico, pesquisador nas temáticas de exclusão social, gênero, raça e sexualidade e militante de movimentos sociais.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)


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