Por André Raboni em 04/06/2014 na edição 801
No silêncio da noite do último dia 21 de maio, tratores e escavadeiras do Consórcio Novo Recife (formado pelas construtoras Moura Dubeux, Queiroz Galvão, Ara Empreendimentos e GL Empreendimentos) iniciaram a demolição de antigos armazéns de açúcar do Cais José Estelita, no Recife. Pegos de surpresa pela informação do início da demolição, dezenas de pessoas se articularam madrugada adentro pelas redes sociais, formaram grupos de carona coletiva e, ocupando o local, impediram bravamente a derrubada das edificações históricas na calada da noite. O #OcupeEstelita já dura mais de dez dias e culminou em um domingo entusiasmante de manifestações políticas e culturais onde estiveram presentes mais de 7 mil pessoas.
Ao longo desses dez dias imperou na cidade uma cobertura suspeitíssima sobre o assunto por parte dos três principais jornais impressos, além da rede globo local. Notícias incompletas e com pouco destaque. Para coroar a cobertura do bolo, um caderno especial sobre o projeto “Novo Recife” foi pago pelo Consórcio nos três principais jornais impressos. Com uma cobertura bem feita, divergiram da norma apenas um pequeno impresso local chamado Destak e o portal de notícias LeiaJá.
Chamou bastante a atenção a cobertura do Jornal do Commercio, impresso de maior tiragem no estado e detentor de três concessões públicas: uma de TV e duas de rádio (FM e AM). A empresa colocou toda a sua força para fazer uma defesa (ainda) não declarada do projeto “Novo Recife”. Escalado como porta-voz do jornal, seu principal blogueiro chegou a publicar um texto cujo título carregava mais de quatro estridentes exclamações – num claro furor intestinal – em defesa do projeto.
Vitória das mídias digitais
No sábado (31/05), o editorial do Jornal do Commercio tentou ridicularizar os manifestantes contrários ao projeto (entre eles artistas, professores, arquitetos, urbanistas, engenheiros, historiadores, filósofos, médicos, juristas, promotores, advogados, jornalistas, estudantes) dizendo serem “inaceitáveis” os protestos. O jornal tomava de vez o partido em defesa do projeto. É saudável quando um veículo declara seu posicionamento de forma clara. Infelizmente essa declaração nem sempre é acompanhada da honestidade que o ofício do bom jornalismo necessita para manter sua credibilidade social.
O editorial omitiu o ponto crucial que está por trás de toda a “cobertura” da empresa: seu dono João Carlos Paes Mendonça é um dos maiores interessado no projeto “Novo Recife”. Os protestos são “inaceitáveis” para o empresário porque há pouco mais de dois anos o empresário ergueu um opulentoshopping center localizado exatamente no outro lado da Bacia do Pina – de frente às janelas dos pretensos futuros moradores das 12 torres de luxo com mais de 40 andares previstas no projeto.
O Shopping RioMar seria a principal paisagem da poesia melancólica dos seus privilegiados moradores. Obviamente este shopping também seria seu principal equipamento de lazer familiar. A alta classe média recifense é notoriamente conhecida por desprezar espaços públicos abertos para convivência, o que explica os muros de cinco metros previstos para cercar as torres do “Novo Recife”, formando uma ilha de luxo e requinte em meio à pobreza histórica das comunidades vizinhas.
O jogo de cartas é facílimo de decifrar: os veículos do Sistema Jornal do Commercio de Comunicação garantem a defesa do projeto diante da opinião pública, supostamente defendendo a “modernização da cidade”, e em troca seu dono teria a garantia do sucesso financeiro de seu maior empreendimento no Recife – que todos na cidade sabem que não vai muito bem das finanças.
Bingo! Está montada a estrutura econômica que moveu toda a máquina da comunicação social nas mãos do empresário. Perde a sociedade. Perde o jornalismo.
Curiosamente, depois das manifestações de mais de 7 mil pessoas no cais José Estelita, e de todo o ativismo nas redes sociais, todos os veículos locais amanheceram nesta segunda-feira com um outro tom em suas coberturas. Mais uma vitória das mídias digitais contra o bloqueio imposto pelo velho modelo empresarial de comunicação.
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André Raboni é historiador e analista de comunicação digital
(Publicado originalmente no Observatório da Imprensa)
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