Se o debate é bom para o diálogo e o avanço da luta, o mesmo não se pode dizer da disputa interna que pode enfraquecê-la
Audre Lorde, uma das mais instigantes pensadoras do feminismo negro, afirmou em um texto importantíssimo que não há hierarquia de opressão. A luta contra a opressão deve ser de todos. E se é de todos ninguém deve ser apagado nessa luta.
A própria ideia de luta implicaria a de solidariedade contra a opressão.
Atualmente, no entanto, acontece algo curioso. É como se as lutas tivessem entrado em conflito no momento em que cada um parece tratar a a opressão sob a qual padece como se ela fosse a única e esquecesse, de algum modo, a opressão do outro. Nesse momento, podemos nos perguntar, mesmo que soe indelicado: quem esquece a opressão, não se torna ele mesmo um opressor? Vale a provocação em um momento no qual é preciso pensar melhor sobre certas filigranas políticas decisivas para a lógica da luta.
Tendo isso em vista, podemos tentar trabalhar uma das questões mais graves que as lutas políticas enfrentam nesse momento: a da sua própria divisão. Uma pergunta precisa ser colocada: pode existir uma luta dividida? Ou melhor, que tipo de luta é a luta dividida? Qual seu alcance? O mesmo podemos dizer sobre o campo da esquerda como lugar onde se organiza, historicamente, a luta contra a opressão de classe. Podemos nos perguntar se pode haver uma esquerda dividida? Se a divisão da esquerda, assim como a da luta, não implicaria sua própria destruição?
Por último, o que vem sendo chamado de “divisão da esquerda” foi produzido pela própria esquerda, ou pela direita? Quem realmente ganha com essa divisão?
Um conceito de luta
Talvez haja certa confusão em torno do conceito de luta. Na intenção de refletir sobre ela, podemos começar por definir luta como o combate contra um inimigo opressor, contra forças opressoras. A luta não é uma disputa apenas. Diferentemente da guerra, busca-se por meio da luta a inclusão, a igualdade, a liberdade. É que a luta é sempre construtiva, seu desejo não é o de destruir coisa alguma.
Luta implica esforço, há nela algo de heroísmo. A luta é potente quando se trata de uma ação conjunta em nome de um ideal maior, de melhores condições de vida para todos aqueles que lutam (e também os que não lutam e que se beneficiam da luta). Uma luta impotente seria aquela que teria perdido isso de vista. Já não seria bem uma luta.
De qualquer modo, quando usamos o termo luta, queremos falar de um bom afeto, de algo que nos anima, que inspira e instiga. Luta é o nome próprio da ação política. Ao mesmo tempo, o termo luta está no mundo da vida. É um termo bonito, usado por ativistas, mas também por trabalhadores em seu sentido mais simples. Cidadãos que dizem que estão “na luta”, que estão na “batalha” dão um conceito positivo ao esforço que faz parte do viver.
Isso é político. O que nos faz pensar em algo que aprendemos com o feminismo e que pode ser estendido a outras lutas. Quando dizemos “mulher, você é feminista e não sabe”, também podemos dizer, “cidadão, cidadã, você é trabalhador e não sabe”. E isso muda muita coisa em relação à consciência de si.
Esquerda e direita
Esquerda e direita são termos que voltaram ao uso cotidiano em nossos dias. Por esquerda entende-se um posicionamento ético-político em que a questão da desigualdade social é problematizada tanto na teoria quanto na prática. O problema da desigualdade está de tal forma implicado nesse posicionamento que esquecer dele seria um risco de se cair “à direita”. Ao mesmo tempo, como se trata de posições, ao dizer esquerda e direita é preciso tomar cuidado. Pensar de modo binário é perigoso, já que há nuances e variantes entre essas medidas pré-estabelecidas. Toda posição de esquerda e de direita é humana e sempre podem aparecer contradições em atos e gestos que tornem tudo complicado.
Esquerda ou direita não são palavras vazias, elas implicam ações. A relação entre teoria e prática faz parte dessas posições. O que se chama de extrema-direita pode chegar ao fascismo, uma direita moderada é capaz de preocupar-se com algumas questões sociais. Por outro lado, entre aqueles que se dizem de esquerda e até participam de partidos de esquerda, há machistas e até mesmo racistas e, mesmo que como exceção, há até mesmo quem aceite e promova perspectivas de economia política de direita, como o neoliberalismo. Isso pode ocorrer por desconhecimento ou por interesse, porque há ignorância e há interesse em qualquer lugar da política, assim como, sempre é bom lembrar, há na vida em geral. Tendo isso em vista, podemos dizer que aqueles que usam a política para fins privados são pessoas “de direita” independentemente de onde digam situar-se. Não é errado, portanto, dizer que há “direita” na esquerda.
Nesse momento vemos que a questão da marcação e da auto-marcação se torna importante no contexto das lutas políticas. Há pessoas sem nenhum interesse em política que, no momento em que defendem apenas por razoabilidade os direitos fundamentais de pessoas, ou porque defendem a lei igual para todos, são tratadas como sendo de “esquerda” por quem tem na expressão algo de ruim. Ao mesmo tempo, basta alguém não propor no meio da esquerda a revolução comunista que sempre pode aparecer alguém capaz de considerar que esse é um nivelamento de direita. A oposição “petralhas e coxinhas” surge no momento em que o desnivelamento do debate pede socorro à teoria e à epistemologia popular. Não avançamos.
Por incrível que pareça, enquanto alguns usam o termo esquerda e direita para desabonar os outros, muitos gostam de se dizer de esquerda.
Dependendo do contexto, ser de esquerda constituiu-se em um mecanismo de protagonização. Pode parecer estranho, mas é um fato que também o termo “esquerda” serve à vaidade e nesse momento se inscreve em um péssimo lugar, o da moral e do moralismo. Ora, esquerda não deveria ser apenas uma palavra, um jargão, um posicionamento discursivo autoafirmativo que garantiria a moralidade daquele que se auto-expressa por meio dele. Posicionamentos autoafirmativos podem facilmente servir como máscaras e produzir engano e autoengano. Ao mesmo tempo, todos tem o direito de se autoafirmarem conforme seu desejo na era da “singularidade”. O direito de autoafirmar-se, contudo, não modifica em nada o mau uso que se pode fazer das ideias e dos conceitos, das palavras e seus sentidos.
O termo esquerda é bem usado da luta contra a desigualdade social, da luta por direitos fundamentais, da luta contra a opressão e o autoritarismo. Xingar alguém por ser de esquerda seria um elogio. Mas no atual cenário, as pessoas estão pensando pouco no que dizem.
Com isso, fica claro que, por trás da luta política há algo que se refere à ética de uma luta. A ética da luta depende do bom uso e da boa prática da luta. Aquele que luta mal, pode acabar atrapalhando a luta.
Esquerda, feminismo e antirracismo
O que se diz da luta em geral, vale também para pensar a questão do feminismo hoje, bem como da luta racial. Não basta usar o feminismo ou o antirracismo como expressão capaz de “protagonizar” aquele que a enuncia. É preciso entrar na luta e realizar a ético-política do feminismo e do antirracismo – e isso não é nada fácil.
Hoje vemos muitas pessoas dizendo-se de esquerda, dizendo-se feministas e antirracistas. Podemos dizer que afirmar-se dessa maneira é melhor do que afirmar-se neutro ou de direita. Mas quando nos auto-afirmamos sem compreender bem o que dizemos, podemos cair em contradições e até mesmo atrapalhar a luta.
E é justamente por isso que a afirmação e a autoafirmação correm soltas hoje em dia. Se a questão é marcar o outro ou a si mesmo, é preciso pensar nos motivos pelos quais marcamos uns aos outros. Muitos dos que recorrem a tais marcações, que são autoafirmações, o fazem por moralismo. Assim como a direita, a esquerda está marcada por muito moralismo. Certamente a moral da esquerda é diferente da direita, mas os procedimentos internos, os tribunais são muito parecidos tanto de um lado quanto de outro quando se trata de julgar. Normal que se exija coerência de cada cidadão que diz estar de um lado ou de outro, mas dependendo do modo com que se julga, semelhanças comprometedoras podem surgir entre o que parecia diferente demais.
Aqueles que reconhecem no que se chama de esquerda uma superioridade moral, muitas vezes reconhecem nela uma superioridade intelectual também. Do mesmo modo, no feminismo e no movimento negro é comum encontrar pessoas que pregam de modo prepotente seus saberes como há também nos defensores da direita. Por conta dessa “superioridade”, experimentada no dia a dia, muitos se autoafirmam de esquerda, feministas, antirracistas. O problema é que, se há moralismo, há vaidade.
Não devemos ter preconceitos contra coisa alguma, devemos sempre tentar entender. Mas é importante saber que, quando há vaidade em política, corremos o risco de nos tornarmos ressentidos e/ou narcisistas. A política é o campo do impessoal no qual, a questão pessoal tem um lugar especial, mas não deve nunca ser maior do que o lugar da luta.
Um problema maior é que o ressentimento de esquerda e o narcisismo de esquerda – posições que nem sempre são antagônicas – permitem flertar rapidamente com aquilo que chamamos de direita: a perspectiva em que o individual está acima do geral, em que o egoísmo está acima do altruísmo, em que a sujeição está acima do sujeito que, ao seguir a ético-política da esquerda, deve pensar e agir em nome da utopia e da luta solidária contra a opressão em geral.
Pensando nesses aspectos, talvez possamos compreender como se tornou possível a disputa moralista – e até mesmo vaidosa – entre indivíduos e grupos de esquerda. O mesmo vale para indivíduos e grupos feministas e antirracistas. Fácil praticar o moralismo vaidoso – ele mesmo uma faculdade burguesa – que nos faz dizer que “a minha esquerda” é melhor que a sua ou que o “meu feminismo é que é feminismo de verdade”.
Fácil atacar o feminismo das outras quando se ocupa o lugar confortável de “ativista de sofá”, fácil fazer a patrulha ideológica quando se tem as armas do discurso e sua difusão. Talvez haja um gozo em falar – que dá a impressão de protagonismo – que é constantemente transferido à esfera política na qual o falar é um capital valorizadíssimo. Esse gozo tem algo de perverso, pois não melhora a luta concreta, mas vai sempre muito bem se está disfarçado dela.
É importante separar o discurso, por mais importante que ele seja, da luta concreta. Ao mesmo tempo, é preciso pensar dialeticamente e saber que o discurso continua fazendo parte da luta, ajudando ou atrapalhando a luta.
Contra a luta
O discurso vazio contrário à luta – mesmo quando parece fazer parte dela – se vale hoje do espetáculo virtual da internet realizado, sobretudo, nas redes sociais. Se é importante denunciar, se é importante falar (ninguém seria louco de negar que a luta também se dá na ordem simbólica), é importante, pensar estrategicamente e taticamente (compreendendo mais a “astúcia” da direita do que valendo-se dela) para que a luta cresça e vença.
A luta na ordem simbólica tem vários lados, ela é muito complexa. A crítica, bem como a espontaneidade no expressar-se não são uma virtude por si só. Toda crítica e toda espontaneidade devem ser bem aplicadas. Quantas vezes não se aciona o chamado “fogo-amigo” sem medir consequências?
Quantas vezes por falta de coragem ou por nos sentirmos impotentes para atingir o inimigo acabamos nos transformando no pobre participante de um tribunal que se contenta em julgar e punir os próprios pares? Isso acontece em larga escala quando vemos partidos de esquerda ou pessoas de esquerda que começam a defender uma agenda de direita, justamente porque não conseguem unir-se. Os “oportunistas” da ex-esquerda talvez surjam quando não conseguem unir-se aos seus pares. Preferem unir-se com a direita, porque são impotentes em relação a seus próprios pares com os quais aprenderam a disputar “posturas” melhores ou piores, infelizmente nunca de um ponto de vista ético, no qual haveria um real questionamento sobre as profundezas dos problemas, mas sempre de um ponto de vista moralista, que esconde, na verdade, interesses privados e pessoais.
Esquerda hoje
Nesse sentido é que devemos colocar a questão das identidades e das minorias políticas que compõem o que entendemos por esquerda em nossos dias. A esquerda atual, considerando os lugares diversos que ocupa, não é a mesma do século 19 na França, tampouco a dos anos 1960 na Europa, ou a esquerda de 1917 da Rússia, muito menos a que resiste nas condições adversas em Cuba. A esquerda sempre foi feita de pessoas, de movimentos, de partidos e suas contradições.
Hoje, no entanto, digamos que as pessoas estão cada vez mais concretas, são cada vez mais reais, trazem consigo outras identidades, além da identidade política e de classe, e um desejo político que passou por muitas mediações históricas. A questão social envolvendo a multiplicidade do capital que vai além do econômico e chega ao educacional, ao cultural e ao social tornou-se essencial junto à questão étnica, racial e de gênero. Isso quer dizer que hoje em dia nenhuma luta é linear, que os parâmetros do século 19 não podem ser aplicados e não servem para interpretar o mundo e transformá-lo.
Ora, a questão dos marcadores sociais é das mais sérias em nossos dias. O esforço das pessoas em se politizarem por meio dos marcadores que anteriormente apenas as oprimiam é inevitável para se chegar à política enquanto domínio dos jogos de poder na esfera pública. A política é também um jogo de linguagem. Quero dizer com isso que ninguém que tenha sido marcado como negro, mulher, índio, gordo ou deficiente poderá politizar-se sem levar em conta esses aspectos heteroconstruídos. Daí a importância da “fala”, da expressão e da auto-expressão. Mas, como nas palavras sábias de Audre Lorde, não podemos lutar levando adiante a armadilha de uma hierarquia de opressão como se uns sofressem mais que outros e acumulassem sofrimentos. O sofrimento não é um capital.
É verdade que acumulamos marcas. E isso não pode ser esquecido. Mas em vez de isso levar ao uso do poder de uns contra outros, inclusive daqueles que na posição de vítimas não tem condições muitas vezes físicas e concretas de lutar, é preciso valorizar as alianças. Isso quer dizer que é preciso aceitar a solidariedade e, inclusive exigi-la e não pensar que ela é dispensável. A solidariedade está em muitos lugares e cada um é suficientemente inteligente para saber reconhecê-la e admirá-la.
Isso quer dizer que toda luta só é luta quando ela é luta do outro. Que lutar pelos direitos das mulheres é lutar pelos direitos dos negros, que lutar pelos direitos dos negros é lutar pelos direitos das mulheres e dos índios, das pessoas trans e dos trabalhadores, que lutar pelos direitos dos trabalhadores é lutar pelos direitos das mulheres que são, mesmo quando devem descansar, trabalhadoras; que lutar por direitos não significa lutar apenas pelos seus e que não somos apenas nós mesmos que podemos lutar por nossos direitos. Todos devem lutar.
A ética da luta leva necessariamente à defesa da luta do outro e da outra. Aprendemos isso no feminismo, que aqui pode nos servir de exemplo: um feminismo que seja mais do que individualismo e protagonização luta pelo empoderamento das outras, luta pela luta junto às outras, buscando a consciência de si como consciência que se faz no diálogo e no dissenso com outras.
Se o debate é bom para o diálogo e o avanço da luta, o mesmo não se pode dizer da disputa interna que pode enfraquecer a luta. Um feminismo que briga entre si, realiza de maneira ingênua a tática misógina do machismo historicamente lançada sobre as mulheres ao afirmar que o que elas sabem fazer bem é disputar entre elas, de que são natural e historicamente desunidas. Ora, o feminismo desunido é o fim do feminismo. Talvez por isso o machismo tenha crescido e aparecido e as mulheres percam gradativamente tantos direitos alcançados em um país como o Brasil.
A guerra machista só poderá ser combatida pela luta feminista potencializada.
O mesmo acontece com a esquerda que cai na armadilha da direita: ela se divide e, assim, consegue o enfraquecimento da esquerda ocupada que está em disputas. Perde seu tempo? Enquanto realiza internamente o discurso do moralismo e disputa com os pares infantilizados consegue muito mais atrapalhar a luta do que ajudá-la e promover avanços significativos. A “direita” ri sem precisar “lutar” contra a esquerda.
Pergunta que nos cabe fazer é se a esquerda poderia superar o moralismo que está na sua base judaico-cristã e que cresceu com a influência da classe média burguesa que hoje a compõe em quantidade significativa. O feminismo e o movimento antirracista também precisam colocar essa questão internamente. Em resumo, a pergunta é se o moralismo burguês infiltrado na cena contemporânea de quem goza na fala e nas redes sociais pode ser deixado para trás.
É o moralismo burguês que faz cada um disputar internamente quando sabemos que a luta precisa ser vencida lá fora, no campo de uma batalha ainda não vivida, lá onde habita o real inimigo. Ou o real inimigo está dentro?
(Publicado originalmente no site da revista Cult)
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