O que incomoda na prática do graffiti é sua oposição a essa tese elitista: ela coloca a arte na rua, sai das periferias, invade os bairros nobres, apropria-se da cidade sem pedir licença. Os artistas de uma arte que se faz pública entendem que os espaços urbanos são “de todos” e que, portanto, devem ser ocupados por aqueles que usufruem do meio.
7 de março de 2017
Enquanto espectadoras, frequentadoras e usuárias de ofertas culturais, pessoas de vivências distintas são reunidas em um mesmo grupo unificado que as tornam “público” de alguma coisa – um termo que aqui não se refere a bens estatais, mas ao gosto em comum compartilhado por diferentes personalidades. Esse gosto, entretanto, está longe de ser algo adquirido naturalmente: não se nasce com um, mas se constrói as preferências ao longo da vida a partir do que é determinado pelas estruturas sociais. A família, a escola e as comunidades de pertencimento das quais cada indivíduo participa moldam seu comportamento de maneira tão profunda que é difícil identificar o que é desejo original e o que é gosto domesticado. Alguns pensadores, inclusive, vão insistir na ideia de que não existe gosto autônomo: tudo seria determinação social estruturante. Soma-se a isso, um contexto de meios de comunicação de massa e indústria cultural, que em conjunto trabalham para manipular as classes e vender cultura como se fosse um produto a ser consumido.
Diante de tudo isso, os apoiadores do projeto “Cidade Linda” de João Doria são a representação de um público ensinado a rejeitar o graffiti. Afirmam que “aquilo não é arte”, que é “vandalismo”, que é “coisa de marginal”, que é “sujeira” e por aí vai. Repetem discursos que ouviram no seu meio social, manipulados por uma elite hegemônica, regidos pelas leis do neoliberalismo que prega que arte é luxo, algo “especial e elevado”, numa visão ainda muito romântica do artista como gênio e da obra de arte como preciosidade – e portanto, algo que não se pode deixar em qualquer lugar, muito menos nas ruas. O público anti-graffiti aprendeu que arte custa milhões, que não se pode tocar com as mãos, que deve ser protegida dentro de um museu de segurança máxima e que existe um conceito bastante erudito por trás que só “iniciados” conseguem compreender plenamente.
O que incomoda na prática do graffiti é sua oposição a essa tese elitista: ela coloca a arte na rua, sai das periferias, invade os bairros nobres, apropria-se da cidade sem pedir licença. Os artistas de uma arte que se faz pública entendem que os espaços urbanos são “de todos” e que, portanto, devem ser ocupados por aqueles que usufruem do meio. A lógica das ruas foge das regras rigidamente construídas ao longo dos séculos, eliminando as barreiras simbólicas que impedem o acesso do povo à arte.
Para além disso, há ainda uma outra subversão que toca a estrutura fundamental da boa família neoliberal: não se compra um graffiti que se viu na esquina e se leva para pendurar na sala de estar; ele é da rua, pertence, elogia, aclama o espaço público, tirando o protagonismo de séculos de existência da propriedade privada. Este é o grande motivo pela qual tentam incansavelmente silenciar o graffiti: ele é muito perigoso à manutenção da estrutura elitista, branca, excludente e neoliberal. Quantas vezes não se apagaram murais para se colocar no lugar a publicidade de quem pagou por aquele espaço? A regra do sistema é essa: pode-se tudo desde que se pague por isso. Se não pagaram, está errado e é descartado.
A polêmica do graffiti é uma questão muito clara de luta de classes, em que a elite tenta impor sua arte ao mesmo tempo em que limita o acesso aos que não pertencem ao grupo hegemônico e subjugam a produção artística dos que vivem à sua margem. A classe média segue em acordo pela sua própria alienação: não são educados a respeitar o graffiti e, portanto, o condenam. Aversão a mudanças também é uma característica forte da elite tradicionalista (afinal, se está bom para ela, não há nada que deva mudar). A função (inconsciente às vezes, mas identificável) do graffiti de transformar modos de habitar e interagir no âmbito urbano, além de alterar maneiras de conceber as relações sociais e a vida cotidiana é vista como algo muito errado aos olhos de quem está no poder.
Mas uma coisa a elite está certa em seus discursos: a arte das ruas realmente é coisa de marginal, mas um marginal no sentido mais denotativo, de alguém que sempre esteve à margem da hegemonia. A conotação do marginal como perigo é uma construção ideológica das elites: é uma ameaça aos seus próprios valores excludentes. O marginal-artista (ou artista-marginal) é um rompimento grande de estruturas rígidas: mostra que as classes baixas têm senso crítico, que são seres pensantes, culturalmente produtivos, interessados por arte e produtores de arte, capazes de ocupar um espaço que sempre lhes foi negado e de transformar sua condição de vítimas da negligência e exclusão em ações de resistência social.
A arte que está nas ruas só é descredenciada porque o discurso dominante – elitista, branco e capitalista – ainda insiste que arte não é para todos e que o artista não pode ser qualquer um. A desigualdade social vai muito além de uma desigualdade de rendas familiares: é gritante principalmente na negação de acesso às práticas artísticas e culturais.
Raisa Pina é jornalista e mestranda em Teoria e História da Arte pela Universidade de Brasília.
(Publicado originalmente no site do jornal Le Monde Diplomatique Brasil)
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