pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO: Carnaval: inversão do cotidiano ou reprodução de estruturas sociais
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sábado, 6 de fevereiro de 2016

Carnaval: inversão do cotidiano ou reprodução de estruturas sociais


Do entrudo ao frevo, Rita de Cássia comenta as origens do carnaval em Máscaras do Tempo (Foto: Lara Ximenes)Do entrudo ao frevo, Rita de Cássia comenta as origens do carnaval em Máscaras do Tempo (Foto: Lara Ximenes)
Por Lara Ximenes
Em 1992, a pesquisadora Rita de Cássia Araújo defendia a teseFestas: Máscaras do tempo (Entrudo, Mascarada e Frevo no Carnaval do Recife) na Universidade Federal de Pernambuco, no Departamento de Antropologia. No mesmo ano, o trabalho conquistou o prêmio Jordão Emerenciano no concurso literário promovido pelo Conselho Municipal de Cultura da Prefeitura do Recife.
Rita de Cássia é Coordenadora Geral de Estudos da História Brasileira na Coordenação-Geral de Estudos da História Brasileira Rodrigo Melo Franco de Andrade (Cehibra) da Fundação Joaquim Nabuco e, no período carnavalesco, organizadora das troçasPisando na Jaca e Urso Boa Pinta, além do clube carnavalescoCinza das Horas.
A tese virou um livro, publicado pela Fundação de Cultura Cidade do Recife, onde Rita destrincha as fases do Carnaval em Pernambuco, desde o período colonial, com suas festas públicas e o início do Entrudo, passando pelo Império e a mascarada, até a República, que buscava uma identidade nacional própria. Sobre isso e muito mais ela conta nesta entrevista para o Blog da Fundação.

O título do livro é bastante curioso. Para você, por que as festas são máscaras do tempo?
Quando este projeto iniciou eu fiz a proposta no mestrado para estudar o frevo. O recorte temporal seria entre 1870 até 1914, aproximadamente. Esse foi o ano que terminou o meu recorte temporal, tanto pelo frevo já estar consolidado e batizado, como pelo fato de que aquele ano marcava o início da primeira guerra mundial. Mas conforme fui lidando com o material, eu despertei uma curiosidade de ir recuando para buscar outras raízes sobre o carnaval, como as festas públicas que existiam desde o período colonial.
Mesmo esse não sendo o tema central da minha proposta, houve um interesse em explorar essas festividades públicas que envolviam diversas camadas e setores sociais e étnicos em espaços abertos e públicos, justamente pelo fato de que ali é onde se permitem os encontros entre diferentes classes. Como elas dialogavam? Ou não dialogavam, mas conflitavam? Elas trocavam cultura? Abrindo esse leque de perguntas percebo que cada período histórico - colônia, império, república - tinha grandes festas públicas que de alguma forma representavam simbolicamente as estruturas sociais de classe e poder que refletiam naqueles quatro dias de festa. Então Máscaras do Tempo se refere a um tempo histórico, e o jogo da máscara é que ao mesmo tempo que ela disfarça ou tenta disfarçar, ela revela. No caso das festas, a estrutura social por trás daquilo.
Se cada período histórico do Brasil tinha um tipo de festa, como elas foram mudando?
O entrudo era a forma que se brincava predominantemente na colônia, que consistia naquele jogo de mela-mela que se dava nas casas de família e nos sobrados. Esse nome fazia referência à Quaresma, pois o jogo acontecia na entrada deste período litúrgico no calendário católico. As pessoas se melavam jogando água, pós e limas de cheiro (pequeno elemento de cera com perfume dentro, que estoura ao ser arremessado, feito pelas próprias famílias ou escravas).
Nessa época, a elite se restringia muito à própria casa, ao privado. E no entrudo essa estrutura era reproduzida quando a brincadeira dessa classe mais abastada acontecia apenas entre a família em si, enquanto nas ruas os escravos, nos intervalos de trabalho, brincavam sem se misturar. Às vezes acontecia uma interação entre senhores e escravos, mas dificilmente havia uma troca entre as duas classes, pois cada um sabia o seu lugar, pois a sociedade era muito hierarquizada e delimitada com normas que delimitavam bem isso.
Por exemplo, essas leis restringiam os escravos de usar até sapatos. Essa separação não era por poder aquisitivo ou gosto, mas determinada por lei naquela sociedade onde apenas determinada categoria ou classe podia usar certos tipos de capas, chapéus e indumentárias - inclusive havia conflitos quando essas regras eram quebradas.
Com a chegada do Império, em 1822, começou um combate sistemático e exaustivo contra o entrudo, por ele representar um hábito selvagem e anti higiênico do período colonial. Ele passou de loucura inocente a brinquedo selvagem no contexto da elite que queria se inspirar nos países mais adiantados como França, Itália e Inglaterra. Assim, o carnaval que eles vão se basear vem das festas da França e da Itália, os carnavais de Nice, Nápoles e Veneza.
A imprensa tem um papel fortíssimo nisso, ao formar uma opinião muito clara de que o entrudo era um atraso e que era preciso buscar um modelo moderno, burguês e civilizado de festa, como os da Europa que tinham uso de máscara, desfile e danças. A partir daí o termo entrudo foi caindo em desuso, e começou a se usar carnaval até hoje.
Nessa época, a elite começa a querer ocupar os espaços públicos, ainda na busca pelo padrão europeu, porque antes, por exemplo, as mulheres só saíam das casas para ir aos bailes fechados e missas. Nessa procura pelo espaço público, que representava civilidade, havia uma busca pelos jardins, praças, calçamentos de rua. As pessoas queriam um lugar para passear, para criar este costume. Daí as ruas passam a ter outro significado. O espaço público começa a dar outro significado também para o carnaval. Assim veio a mascarada, nessa busca da sociedade brasileira por uma ideia de nação baseada no modelo de civilização europeu, mais burguês e citadino.
No período que antecede o Império, vamos para 1870. Você já tem aqui no Recife uma camada livre enorme demograficamente falando, a quantidade de escravos já era muito pequena apesar da abolição vir apenas em 1888. Essa camada de homens livres se organizava, tanto em irmandades religiosas como através de suas categorias profissionais, e são justamente essas pessoas que vão querer organizar um carnaval para elas que já não é mais como no entrudo.
No final da década de 1870 e explodindo mais em 1880, com a abolição e o advento da república, vão surgindo os clubes pedestres. No momento em que essa classe trabalhadora começa a surgir nas ruas os mais abastadas vão se perguntando quem são essas pessoas? Afinal, a estrutura da escravidão já não existe, teoricamente. Então como incorporar essas pessoas numa identidade nacional já nova, que não é nem aquela colonial, nem aquela pós-colonial que queria ser europeia - era a república, onde se tem que criar para o país uma identidade própria, e ela tem que incorporar todas as camadas étnicas e sociais.
Isso é um processo longo que vai ser sistematizado nos anos de 1920, na Semana de Arte Moderna, onde há o regionalismo de Gilberto Freyre e o discurso de que o Brasil é formado pelas três raças, brancos, negros e índios, e isso vai aparecer no Carnaval.
Não é paradoxal que a elite que um dia quis ocupar o espaço público agora queira retornar ao privado, como está acontecendo com a camarotização do carnaval de Recife?
Por isso que eu gosto de focar os estudos nos espaços públicos - porque ele é exatamente o espaço que permite que a gente veja essa dialética de ocupação das ruas: quem está nela? Como as usa? Quem está na rua em todos os tempos históricos são as camadas populares. A classe média e a elite é que permeiam e em determinado momento histórico ocupam ou se retraem das ruas.
Muitas vezes essa recuada coincide com períodos autoritários, onde as festas passam a acontecer em salões e clube, mas não só isso. Existe uma dinâmica grande da sociedade aí. Ainda no século XIX, a elite, com o carnaval de máscaras, busca um carnaval de rua só para ela, por achar-se digna de representar a cultura perante a sociedade brasileira e estrangeira, mostrando que é elegante, civilizada, e que compartilha dos valores burgueses. Mas as camadas populares não deixaram de ocupar essas mesmas ruas, não aceitam isso e não existia força para reprimi-los apesar de algumas normas sociais.
Elas não aceitam porque, entre outras coisas, sempre participaram do brinquedo de carnaval naquele espaço. Daí elas vão se organizando, aquela camada de trabalhadores urbanos, para fazer o carnaval ao modo deles, absorvendo algumas coisas do carnaval de elite, claro, mas também trazendo as tradições deles, como os blocos pedestres, que iam festejando a pé ao contrário da classe mais alta que ia de carruagem para os cortejos.
Ao longo do século XX vamos vendo momentos de avanço e recuo: as classes altas estão nas ruas dos anos 10 aos 50, mas no corso (carros), criando uma distinção social. Eu estou lá, mas estou diferenciado. Mas se você olhar as fotos desse período, o Carnaval a pé ainda é muito popular, a presença do popular no frevo é fortíssima.
Daí existe o conflito, a quem cabe o carnaval e as ruas? Porque nessa época os carros estavam ocupando as ruas e tirando o lugar dos pedestres. A polêmica era se cabia ao corso ou aos pedestres o lugar do carnaval. Aí havia discussões, entre intelectuais, jornalistas, historiadores, etc. Isso continua até a chegada da ditadura militar, onde a classe média resolve brincar em clubes e há uma evasão da rua. Depois da reabertura política, entretanto, existe uma volta às ruas muito forte, e é aí que entra Olinda, que atrai as pessoas para a rua com sua aura de simbolismo de abertura política.
Lá, o MDB, partido de oposição à ditadura, era muito bem votado. Foi criando-se uma ideia de liberalidade e identidade com o popular com os artistas e intelectuais de Olinda, então assim, o carnaval de rua recrudesce - na mesma onda, aqui em Recife, o galo foi criado em 1978 com essa proposta, trazendo às ruas em confluência à abertura política.
Bom, agora tem esse fenômeno que você está trazendo que de fato reproduz aquilo que falei acima, que acontecia nos corsos: eu estou na rua, mas eu tenho uma distinção, uma separação, eu não quero me misturar ou me confundir. Isso existe, mas ao mesmo tempo também existe um monte de gente de classe média que não vai pra camarote e fica na rua, que rejeita esse modelo de separação e distinção social.
Ou seja, hoje as coisas estão mais divididas na classe média. Existe a tendência da segregação em vários tempos históricos, mas cada um deles tem a sua dinâmica, por isso que eu acho que observar o carnaval através do espaço público é importante, por que na rua todos nós podemos ir, logo, cada grupo social vai estar representado ali onde ele sente identificação.
Ao longo do Carnaval você identifica pontos, tem aquele bloco que a pessoa vai porque os amigos estão indo, porque tá o pessoal da sua idade, porque tá o pessoal do seu bairro - se você fizer um olhar panorâmico daquela multidão você percebe as distinções, mas se tirar uma foto panorâmica de cima está tudo misturado.
No galo da madrugada, por exemplo, existe o pessoal que chega cedo e vai embora de meio dia, mas nessa mesma hora ainda tem um monte de gente chegando. Em suma, a festa é democrática, mas num olhar mais clínico é possível ver as distinções. Alguns intelectuais defendem que o carnaval é uma inversão do cotidiano, mas eu discordo - para mim, ele de alguma forma reproduz esse cotidiano e a estrutura social mais profunda. Não é igual, logicamente, mas é possível fazer uma critica e uma leitura desse universo muito grande e dinâmico.
No livro, você chega a citar o frevo como uma forma de manutenção da ordem, um “anseio das classes dominantes para domesticar o monstro popular”. O que isso significa?
Nos anos 1930 esse carnaval do frevo pernambucano já está bem identificado, já existia um discurso muito bem elaborado do poder público, das classes dominantes e dos formadores de opinião de que o carnaval era representativo como uma mistura de raças, sobretudo o frevo, representação que coincide e contribui para essa nova identidade nacional formada por tal mistura: o negro seria o maracatu, o índio, o caboclinho, e os brancos carregavam a herança do fado português através das marchinhas. Isso tudo junto dá no frevo.
O monstro popular era, em suma, o medo que as classes dominantes tinham daquela massa que de certa forma era incontrolável e desconhecida; eles tinham uma força política de reivindicação e resistência, querendo reconhecimento social nas ruas e conquistar um espaço - e a elite vai tentar entender e domesticar isso por meios de normas, leis e organizações.
Um desses meios era tentando disciplinar as rivalidades entre os blocos e clubes, tanto via repressão policial como através das normas da federação carnavalesca pernambucana criada em 1935. Essa comissão condizia com a situação do país que beirava a ditadura, e tinha regras como não permitir a discussão política nos clubes.
Na época era muito forte a rivalidade entre comunismo e integralismo; esquerda e direita eram muito radicais. Essa Federação, que existe até hoje, determinava o que era típico e autêntico nas fantasias e músicas, tudo delimitado para tentar modificar aos poucos a forma com que se portavam os blocos; a opinião publica influenciava cada vez mais os blocos a se tornarem suntuosos, com fantasias de luxo para se diferenciar das troças improvisadas e pobres. Havia essa crítica ao simples porque se vivia numa sociedade onde era muito clara a separação de classes.
Qual era a intenção da federação em distinguir o que era ou não legítimo?
No discurso, era tornar o carnaval de Pernambuco mais típico, atrativo, diferenciado dos demais estados, fortalecendo o que eles identificavam como a identidade local e regional, fortalecendo os elementos que eles consideravam típicos, além de acabar com as rivalidades entre os clubes.
Mas por trás desse discurso existe outra interpretação sobre as relações sociais da época - o que eles escolhiam tinha um motivo, um conceito de patrimônio e relação de classes para que você aceite esses elementos. Hoje, o maracatu rural, o caboclo de lança, por exemplo, é aceito e visto como ícone do carnaval multicultural que as gestões recentes das prefeituras do Recife vêm promovendo.
Esse reconhecimento é um fenômeno novo. Na época que a Federação foi criada, ele não era reconhecido como elemento legítimo. Mas há um interesse nisso de multicultural hoje em dia, afinal, quem é que determina, hoje, o que é patrimônio, o que é autêntico? Eles vendem como uma mistura, um caldeirão, mas na realidade cada um tem seu lugar. Alguns cortejos mesmo são colocados às 14h no pátio de São Pedro. Quem é que vai lá ver? É aquela coisa, se você olhar de perto percebe que nesse caldeirão existem distinções.
Saiba mais:
Não sabe a diferença entre as agremiações carnavalescas? Segundo Rita, as diferenças são que a troça sai de dia, é mais simples e seus componentes não têm muitas regras além da orquestra de frevo. Já o clube tem um cortejo, um ensaio organizado e mais rico. Sai à noite, também com orquestra de frevo. Por sua vez, o bloco é marcado pelo frevo canção e a orquestra de paus e cordas. Em vez do estandarte, tem o flabelo como no Bloco da Saudade.

(Publicado originalmente no Portal da Fundação Joaquim Nabuco)

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