Em certo sentido, não há como não
reconhecer nas manifestações de junho um eco daquilo que, no momento
mesmo de constituição da Nova República, quando a esquerda encontrava-se
alijada do poder estatal, intelectuais como Eder Sader teorizavam como
os “novos movimentos sociais”.
Carlos Henrique Pissardo
As mobilizações que tomaram conta do país
nas últimas semanas – as “jornadas de junho” – caracterizaram-se, em um
primeiro momento, por uma pauta tradicional da esquerda: a luta por um
direito social, o transporte público. A forma de organização do
movimento que impulsionou essas mobilizações (autonomista e horizontal) e
sua estratégia de luta tampouco são originais: existe uma larga
experiência histórica que as antecede. O mérito do Movimento Passe
Livre (MPL) foi o de ter sido capaz de resgatar essa experiência em um
momento no qual ela parecia ultrapassada; no qual a esquerda permanecia
na confortável ilusão de que seria possível avançar na luta por direitos
sociais sem mobilização popular e sem a politização do cotidiano. Não
é.
Em certo sentido, não há como não reconhecer nessas manifestações um eco daquilo que, no momento mesmo de constituição da Nova República, quando a esquerda encontrava-se alijada do poder estatal, intelectuais como Eder Sader teorizavam como os “novos movimentos sociais”. As “lutas do dia a dia”, “as queixas do cotidiano”, nas palavras de Sader, apareciam nesses movimentos não como um obstáculo à crítica do todo, como um fetichismo do parcial, mas como pautas a um só tempo particulares e universais. Sem expectativas imediatas de tomada do poder estatal, esses “novos movimentos” apostavam em uma dialética entre o particular e o sistêmico como o foco da disputa hegemônica pela sociedade. Os novos atores que então “entravam em cena” revelavam o potencial questionador da ordem que demandas aparentemente ordinárias carregavam. Nesse processo, reivindicações, por exemplo, por iluminação pública da própria rua, de caráter local, levariam a um questionamento das relações de poder no bairro, que levaria a um processo de politização da organização urbana, que, por sua vez, traria um posicionamento em relação ao poder municipal e assim por diante. Por isso, a esquerda sabia então que não deveria esquivar-se de qualquer debate particular: qualquer luta pontual por direitos sociais, do esgoto na frente de sua casa à descriminalização do aborto, da denúncia do vereador corrupto aos mutirões, tudo era palco para um questionamento progressivo de problemas sistêmicos da sociedade. Em qualquer um dos casos, eram e não eram “apenas 20 centavos”.
A recepção que esse tipo de política teve em amplos setores da classe média foi marcante: de médicos sanitaristas a professores, de ambientalistas a estudantes universitários, passando por juristas, funcionários públicos, jornalistas e artistas, havia um reconhecimento claro da legitimidade de diversas demandas políticas pontuais, que, no entanto, eram interpretadas de forma também sistêmica. A própria natureza – e latitude – da Constituição de 1988 é tributária dessa experiência histórica, da ideia de que a garantia de direitos específicos é condição necessária para a garantia de direitos gerais.
Como se sabe, esse modelo de política extraestatal, paralela à hegemonia cultural que a esquerda cultivava desde os anos 1950, resultou em um jogo de forças políticas peculiar: o PT, partido originário da interseção entre sindicatos, movimentos de base da igreja e intelectuais de esquerda, encontrava, nos anos 1980, um apoio mais fiel entre a classe média relativamente intelectualizada que entre os próprios trabalhadores, salvo os organizados em sindicatos e movimentos sociais. As eleições de 1989 e, especialmente, a derrota de Lula no segundo turno da eleição para presidente foram reveladoras desse desequilíbrio. Os setores não organizados da classe trabalhadora inclinaram-se para a direita durante a campanha, e o apoio da classe média foi insuficiente para evitar a eleição de Fernando Collor no segundo turno (embora Lula tenha saído vitorioso entre os eleitores com ensino médio ou superior concluído).
Trinta anos depois, não é descabido retomar essa história: o que foi posto em jogo, com “as jornadas de junho”, é precisamente a natureza dessa relação entre a esquerda, as mobilizações populares por direitos sociais e a classe média. Comecemos pela última.
Grande parte da sociologia produzida nos últimos anos, em larga consonância com o discurso da grande mídia e mesmo de instituições estatais como o IPEA, acostumou-se a um empobrecido conceito de classe social como idêntico à renda. Acreditou-se que bastava dividir a sociedade em quartis de salários mínimos, que a questão da distribuição das classes sociais estaria resolvida. Acontece que, se a definição de classe social por meio da renda é de fato útil para agências de publicidade e para cadernos de comportamento veiculados pela grande mídia (especialmente sobre a “nova classe C”), ela é insuficiente para a compreensão da dinâmica de poder em jogo na sociedade brasileira de hoje. Por meio do fetiche sociológico da “classe C”, abriu-se mão de uma reflexão sobre as disputas de classes e pouco se avançou na problematização política dessa dinâmica. Sabemos apenas que todas as “classes sociais”, nesse sentido estatístico fraco, tiveram uma elevação na renda nos últimos anos e que houve uma considerável migração da “classe C” para o bloco “AB” (de cerca de 15 milhões de pessoas, desde 2005) e, ainda mais visível, uma ascensão das “classes DE” para a “classe C” (de cerca de 45 milhões). Da base ao topo da pirâmide social brasileira, todos saímos ganhando e o desenvolvimentismo recente teria demonstrado que disputas políticas classistas já não estavam mais na ordem do dia. A surpreendente ida às ruas da classe média nas últimas semanas nos faz pensar que talvez não seja bem assim.
Alguns dados elaborados, em 2011, por Celi Scalon e André Salata, na contramão da sociologia dominante, apresentam-se como um ponto de partida relevante para a problematização desse consenso. Adotando o esquema de classes EGP (elaborado originalmente por Erikson, Goldthorpe e Portocarero), eles conceituam a classe média como aquela formada por profissionais e administradores, trabalhadores não manuais de rotina e pequenos proprietários; diferenciam essa classe média da chamada “classe trabalhadora”, formada por trabalhadores manuais qualificados, trabalhadores não qualificados e trabalhadores rurais. É interessante notar que a classe média, assim definida, não se identifica, como tornou-se costume pensar, com a faixa C de renda, situada grosso modo entre os 50% mais pobres e os 10% mais ricos da pirâmide social. Segundo dados de 2009, apenas 30% dessa faixa C era ocupada pela classe média, enquanto a classe trabalhadora urbana respondia por 59,2% dela e os trabalhadores rurais, por 10,6%.
Pois, no limite, foi essa “velha” classe média, e não a classe trabalhadora mais próxima à faixa de renda C, que saiu às ruas em junho. Segundo pesquisa do Datafolha de 20/6, 78% dos manifestantes tinham ensino superior completo. De acordo com pesquisa do IBOPE do mesmo dia, essa taxa seria de 43% (sendo que 49% teriam entre ensino médio completo e superior incompleto); da mesma forma, 49% tinham renda superior a 5 salários mínimos (e 30% de 2 a 5 salários). Na pesquisa de Scalon e Salata, com dados de 2009, apenas 7,7% dos trabalhadores manuais qualificados e 4,4% dos trabalhadores não qualificados tinham mais de 12 anos de estudo, enquanto que, para a classe média, essa taxa chegava a 71,8% para os profissionais e administradores, mais próximo do universo pesquisado pelo Datafolha e IBOPE.
Mais ainda, adotando esse recorte, verifica-se que a tão aclamada “nova classe média” é, em certo sentido, uma quimera: de 2002 a 2009, a classe média definida pelo esquema EGP passou de 30,9% para 32% do recorte estudado segundo dados do PNAD. De 2002 a 2009, a renda média dos trabalhadores manuais qualificados e não qualificados (classe trabalhadora urbana) cresceu, respectivamente, 13,3% e 9,8% a preços constantes; a renda média dos trabalhadores rurais cresceu 15%. O contraste com a dinâmica de renda da classe média é espantoso: no mesmo período, a renda média de profissionais e administradores variou positivamente apenas 2,7%; dos trabalhadores não manuais de rotina, 1,6%; e dos pequenos proprietários, 4,2% (todos os dados, segundo Scalon e Salata). Não há nada de novo nessa classe média; o que surpreende não é o seu dinamismo, mas sua estagnação relativa. É evidente, aqui, que a política sistemática de aumento do salário mínimo – cerca de 70% de aumento real nos últimos 10 anos – e de formalização das relações trabalhistas, paralelas à política de transferência de renda e assistência social (especialmente, o Programa Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada), tiveram um impacto direto, não na classe média, mas na classe trabalhadora. Da mesma forma, foi esta última a grande beneficiada com a expansão do microcrédito e do crédito consignado, entre outras formas de financiamento popular. Grosso modo, a classe média, já bancarizada, pouco ganhou com essa expansão.
O mesmo é válido para as políticas universalistas de investimento em educação e saúde públicas. O aumento sistemático dos gastos federais com saúde – subindo de 4,7% para 8,7% do orçamento federal nos últimos 10 anos – levou a um aumento considerável dos gastos per capita com saúde (de US$ 107,00 para US$ 466,00 de 2000 a 2010, segundo dados da OMS). Esses investimentos, no entanto, não tiveram impacto relevante para a classe média: não foram suficientes para que ela migrasse do sistema privado de saúde para o SUS, liberando assim recursos de seu orçamento para outros gastos. Pelo contrário, os beneficiários de planos privados cresceram de 31,1 milhões em 2000 para 45,3 milhões em 2010 (dados da ANS). Isso se deu, em parte, porque os investimentos na área foram insuficientes para a elevação da qualidade do serviço ao padrão procurado pela classe média e, em parte, pela existência de um discurso cotidiano e sistemático de desvalorização do serviço público de saúde. Não por acaso, 28,8% dos usuários do SUS avaliam o sistema como ruim ou muito ruim, enquanto esse taxa, entre os não usuários, sobe para 45% (dados do Ministério da Saúde). O fato é que os investimentos em saúde pública nos últimos anos – seja pelo passivo ainda existente, seja pela constante exposição pública das deficiências do sistema, que não deixa de ter fundamento – não foram suficientes para que a classe média abandonasse o sistema privado, em larga medida também financiado pelo poder público na forma de renúncia fiscal (que chegou a cerca de R$ 16 bilhões em 2011, equivalente a 22,5% do orçamento federal para a área, segundo estudo do IPEA). Seja como for, os ganhos da classe média com esses avanços nos investimentos em saúde pública não são visíveis.
Algo similar aconteceu com os investimentos públicos em educação. Nessa área, de 2000 a 2011, os investimentos globais passaram de 4,7% para 6,1% do PIB, segundo dados do INEP. Em recente relatório da OCDE, esse avanço foi qualificado como um dos mais relevantes entre todos os países estudados. No entanto, da mesma forma que na saúde, o impacto dessa política para a classe média deve ser avaliado em separado; da mesma forma que na saúde, esses investimentos não foram suficientes para uma migração da classe média do setor privado para o setor público. Em 2003, por exemplo, dos 55,2 milhões de estudantes matriculados na educação básica (incluindo o ensino médio), 6,9 milhões estudavam no sistema privado; em 2011, enquanto o total de alunos matriculados cai para 50,9 milhões, o número de estudantes em colégios privados sobe para 7,9 milhões (dados do INEP). Longe de a classe média haver buscado o setor público, houve sim uma reafirmação do setor privado, beneficiado pelo aumento generalizado da renda. Mais ainda: enquanto na educação básica o salto de investimentos foi de 3,7% para 5%, no ensino superior estes permaneceram praticamente estáveis (entre 0,9 e 1% do PIB). Como a classe média, historicamente, recorre à educação privada nos níveis básicos e ao ensino superior público nos níveis superiores, tampouco foi palpável, para ela, qualquer avanço relevante nessa área. Não por acaso, novamente de acordo com os dados compilados por Scalon e Salata, a camada superior da classe média (profissionais e administradores) teve incremento médio de apenas 0,8 anos (de 13,4 para 14,2) de escolaridade entre 2002 e 2009, enquanto a camada superior da classe trabalhadora (trabalhadores manuais qualificados) registrou incremento de 1,3 anos (de 7,5 para 8,8). Seja no que diz respeito à política de transferência de renda, seja no que diz respeito às políticas de educação e saúde, o avanço nos investimentos públicos dos últimos anos não foi palpável para a classe média. Existe, por isso, uma base material para sua insatisfação, expressa nas ruas.
Esses dados, no entanto, não devem ser compreendidos fora da lógica política predominante dos últimos anos, durante o governo do PT. Na verdade, eles são compreensíveis apenas por meio dessa lógica. Como bem a conceitualizou André Singer, essa política, denominada por ele de “lulismo”, está fundada na construção de “uma substantiva política de promoção do mercado interno voltado aos menos favorecidos”, isto é, o “subproletariado” (SINGER). Foi por meio dessa espécie de aliança direta com essa fração da classe trabalhadora que o PT garantiu as vitórias eleitorais de 2006 e 2010. Nesse sentido, quase todas as bandeiras políticas levantas pelo PT nos últimos 10 anos e capazes de mobilizar o apoio popular direcionaram-se à classe trabalhadora e, em especial, aos seus membros de mais baixa renda: programas de assistência social como o PBF, o “Brasil sem miséria”, o “Luz para todos”, o “Minha Casa Minha Vida”, a garantia dos direitos trabalhistas dos empregados domésticos, entre outros, não tinham qualquer apelo para a classe média. Esta tornou-se secundária no interior desse arranjo. Na melhor das hipóteses, ela permaneceu indiferente às bandeiras políticas levantadas; na pior, apenas viu nesses programas uma política populista de um governo que distribuía “esmolas” e, assim, onerava indiretamente sua renda (a resistência ao PBF e aos direitos dos empregados domésticos foi sintomática dessa percepção). Apesar do histórico êxito na diminuição da miséria e da desigualdade no país, ampla parcela da classe média jamais tomou consciência do avanço civilizacional que ele representou. Daí o corte classista das últimas eleições federais (2006 e 2010), com a direitização da classe média tradicional, invisibilizada no interior de uma suposta “classe C”.
Mas seria errôneo acreditar que o governo do PT sustenta-se apenas no apoio eleitoral das frações mais baixas da classe trabalhadora. Por certo, foram elas que garantiram as vitórias eleitorais de 2006 e 2010. Mas a governabilidade não poderia sustentar-se apenas nelas. E aqui, novamente, a sociologia da renda é empobrecedora do debate: ao dividir a sociedade brasileira em quartis de renda, perde-se completamente a especificidade de uma classe que tampouco pode ser diluída em uma faixa de renda, no caso, no bloco “AB” da pirâmide social, a saber, os grandes capitalistas. Pois, paralela às políticas direcionadas à classe trabalhadora e às suas frações mais baixas, o que marcou os dois governos Lula e, ainda mais, o governo Dilma foi um comprometimento claro - embora submetido a uma certa gramática desenvolvimentista - com os interesses de grandes grupos econômicos e com a criação de um “ambiente de negócios” a eles favoráveis. Sintomático, salta-se do microcrédito para os grandes financiamentos do BNDES em sua política de defesa e fortalecimento das chamadas “campeãs nacionais”. Da mesma forma, são garantidas as melhores condições possíveis para a expansão do agronegócio – da noite para o dia, aliado de primeira ordem – e, por meio do PAC, tenta-se superar os gargalos logísticos denunciados tão enfaticamente pelo empresariado nacional.
Quando Lula reconhece que os bancos jamais ganharam tanto como durante o seu governo, ele não está apontando para um acaso histórico: está revelando a própria natureza do arranjo político que tem sustentado os mandatos do PT. O apoio da classe trabalhadora garantiu as vitórias do PT nas urnas e o apoio da classe capitalista, disciplinada pelo desenvolvimentismo, garante sua governabilidade. Abre-se mão da disputa pela classe média, que resta perdida para uma direita desorganizada e sem projeto depois de sucessivas derrotas eleitorais. A aposta implícita foi a de que uma parcela dessa classe média se contentaria com os ganhos indiretos do crescimento econômico (garantia do pleno emprego e aumento de renda, não tão expressivo como o da classe trabalhadora, mas real), enquanto outra não valia a pena disputar politicamente. Grande parte da esquerda acostumou-se com uma classe média alinhada com discursos quase caricaturais sobre a “vida difícil” daqueles que sustentariam o “bolsa isso, bolsa aquilo”. Discurso vazio, mas que ressurgia como uma ameaça real a cada nova eleição. Outra fração, minoritária (Psol), tentou adequar seu discurso a essa classe média por meio de uma politização do tema da corrupção, sem sucesso.
As manifestações de rua do último mês são expressões das contradições imanentes desse arranjo político. A classe média que saiu de casa não o fez na defesa de qualquer direito que se encontrava em xeque. Tampouco porque já sente na pele os supostos limites de um modelo econômico que a grande imprensa, há anos, insiste em afirmar que se tornou insustentável. A variedade de reivindicações difusas e abstratas é, antes, correlata dessa orfandade política a que ela, a classe média, foi relegada nos últimos anos. Não é de se estranhar, portanto, que, na falta de um discurso estruturado, ela apenas repita certas palavras de ordem vazias veiculadas pela imprensa ou por setores da direita.
Se buscarmos o denominador comum dessas reivindicações, chegamos a duas características básicas. Por um lado, são pautas consensuais no debate político brasileiro: mais investimentos em saúde e educação, combate à corrupção, gasto responsável do dinheiro público, defesa dos direitos de minorias e reforma do sistema político no sentido de uma maior participação direta dos cidadãos. Elas, por vezes, podem ser apresentadas com alguma coloração conservadora, como na defesa da redução do Estado; no entanto, são pautas, em si, progressistas. Em si, nada há de conservador na defesa de um Estado mais responsável nos seus gastos ou no combate à corrupção. Por outro lado, essas pautas são apresentadas de modo abstrato e pouco articuladas: pouco se diz sobre a forma de encaminhamento político dessas demandas. Por vezes, parecem apenas responder a anseios narcisistas de “dormir em paz com o dever cívico cumprido”.
Pois é nessa fissura entre demandas políticas legítimas e certa incapacidade de formulação de modos concretos de encaminhamento dessas demandas que se dará o disputa política daqui para frente.
Parte da direita e da grande mídia pretende manter o debate nesse nível abstrato, asséptico. Daí seu discurso “boa praça” que apenas projeta o narcisismo dos manifestantes: “o gigante acordou”, “a avenida Getúlio Vargas está linda”. Ela não quer ir para o particular porque isso implicaria colocar em xeque seus próprios interesses. Ela tampouco ganharia com a instabilidade institucional: ao que tudo indica, a tendência é tentar manter essa “insatisfação geral” em voga até que, nas eleições do próximo ano, um voto contra “tudo que está aí” leve, nas urnas, a uma mudança de governo.
Isso não significa que outra parcela da direita, minoritária, porém mais oportunista, não tente jogar suas cartas. Ela sabe que essa equação entre anseios políticos legítimos, mobilização popular e despolitização da classe média (no sentido de uma inconsciência sobre os mecanismos de encaminhamento daqueles anseios) pode ser explosiva se bem manipulada. Essa direita algo alucinada parece surgir da “internet profunda” e, por meio de boatos, personalismos e propostas fáceis demonstra sua falta de compromisso com as instituições democráticas. Decerto, esses grupos são minoritários e pouco relevantes politicamente. Mas podem aproveitar-se de uma situação que é, sim, vulnerável.
À esquerda cabe olhar para sua experiência histórica e para suas contradições presentes. A tendência é que, daqui para frente, alianças de cúpula e o êxito de políticas sociais, sem a correspondente mobilização social que envolva a classe média, não serão suficientes para garantir a hegemonia política do governo. Para que a mobilização dessa classe não signifique retrocesso, a esquerda deve urgentemente propor e sustentar pautas concretas para o encaminhamento político das demandas levantadas nas últimas semanas. É nesse espaço entre os desejos legítimos expressados nas ruas e a sua viabilização que a esquerda deve posicionar-se. A tarefa é árdua porque envolve a recuperação de uma prática abandonada pelo setor dominante da esquerda: a disputa pela hegemonia cultural e ideológica da classe média e da sociedade.
Mas isso está longe de ser utópico. Há cerca de 20 anos, a esquerda cultivava essa hegemonia. A aposta na confluência entre o particular e o universal, como meio para o avanço nas lutas por direitos sociais, tal como teorizado por Eder Sader, foi, em larga medida, responsável por essa prevalência. E foi essa mesma dialética que sustentou as manifestações de junho. O fato de que, em um primeiro momento, tenha sido a politização de um demanda concreta – a redução da tarifa do transporte público – o que fez a classe média sair às ruas é de extrema importância e deve ser levado em consideração. Sem essa politização do dia a dia, a tendência é que a classe média permaneça, com alguma razão, indiferente aos esforços progressistas de avanço nos direitos sociais; afinal, o êxito dessas políticas nos últimos anos passou ao largo da sua realidade de classe. A vitória do Movimento Passe Livre acabou de mostrar-nos a viabilidade dessa política de “queixas do cotidiano” hoje. É preciso digerir essa experiência e reproduzi-la conscientemente.
Em certo sentido, não há como não reconhecer nessas manifestações um eco daquilo que, no momento mesmo de constituição da Nova República, quando a esquerda encontrava-se alijada do poder estatal, intelectuais como Eder Sader teorizavam como os “novos movimentos sociais”. As “lutas do dia a dia”, “as queixas do cotidiano”, nas palavras de Sader, apareciam nesses movimentos não como um obstáculo à crítica do todo, como um fetichismo do parcial, mas como pautas a um só tempo particulares e universais. Sem expectativas imediatas de tomada do poder estatal, esses “novos movimentos” apostavam em uma dialética entre o particular e o sistêmico como o foco da disputa hegemônica pela sociedade. Os novos atores que então “entravam em cena” revelavam o potencial questionador da ordem que demandas aparentemente ordinárias carregavam. Nesse processo, reivindicações, por exemplo, por iluminação pública da própria rua, de caráter local, levariam a um questionamento das relações de poder no bairro, que levaria a um processo de politização da organização urbana, que, por sua vez, traria um posicionamento em relação ao poder municipal e assim por diante. Por isso, a esquerda sabia então que não deveria esquivar-se de qualquer debate particular: qualquer luta pontual por direitos sociais, do esgoto na frente de sua casa à descriminalização do aborto, da denúncia do vereador corrupto aos mutirões, tudo era palco para um questionamento progressivo de problemas sistêmicos da sociedade. Em qualquer um dos casos, eram e não eram “apenas 20 centavos”.
A recepção que esse tipo de política teve em amplos setores da classe média foi marcante: de médicos sanitaristas a professores, de ambientalistas a estudantes universitários, passando por juristas, funcionários públicos, jornalistas e artistas, havia um reconhecimento claro da legitimidade de diversas demandas políticas pontuais, que, no entanto, eram interpretadas de forma também sistêmica. A própria natureza – e latitude – da Constituição de 1988 é tributária dessa experiência histórica, da ideia de que a garantia de direitos específicos é condição necessária para a garantia de direitos gerais.
Como se sabe, esse modelo de política extraestatal, paralela à hegemonia cultural que a esquerda cultivava desde os anos 1950, resultou em um jogo de forças políticas peculiar: o PT, partido originário da interseção entre sindicatos, movimentos de base da igreja e intelectuais de esquerda, encontrava, nos anos 1980, um apoio mais fiel entre a classe média relativamente intelectualizada que entre os próprios trabalhadores, salvo os organizados em sindicatos e movimentos sociais. As eleições de 1989 e, especialmente, a derrota de Lula no segundo turno da eleição para presidente foram reveladoras desse desequilíbrio. Os setores não organizados da classe trabalhadora inclinaram-se para a direita durante a campanha, e o apoio da classe média foi insuficiente para evitar a eleição de Fernando Collor no segundo turno (embora Lula tenha saído vitorioso entre os eleitores com ensino médio ou superior concluído).
Trinta anos depois, não é descabido retomar essa história: o que foi posto em jogo, com “as jornadas de junho”, é precisamente a natureza dessa relação entre a esquerda, as mobilizações populares por direitos sociais e a classe média. Comecemos pela última.
Grande parte da sociologia produzida nos últimos anos, em larga consonância com o discurso da grande mídia e mesmo de instituições estatais como o IPEA, acostumou-se a um empobrecido conceito de classe social como idêntico à renda. Acreditou-se que bastava dividir a sociedade em quartis de salários mínimos, que a questão da distribuição das classes sociais estaria resolvida. Acontece que, se a definição de classe social por meio da renda é de fato útil para agências de publicidade e para cadernos de comportamento veiculados pela grande mídia (especialmente sobre a “nova classe C”), ela é insuficiente para a compreensão da dinâmica de poder em jogo na sociedade brasileira de hoje. Por meio do fetiche sociológico da “classe C”, abriu-se mão de uma reflexão sobre as disputas de classes e pouco se avançou na problematização política dessa dinâmica. Sabemos apenas que todas as “classes sociais”, nesse sentido estatístico fraco, tiveram uma elevação na renda nos últimos anos e que houve uma considerável migração da “classe C” para o bloco “AB” (de cerca de 15 milhões de pessoas, desde 2005) e, ainda mais visível, uma ascensão das “classes DE” para a “classe C” (de cerca de 45 milhões). Da base ao topo da pirâmide social brasileira, todos saímos ganhando e o desenvolvimentismo recente teria demonstrado que disputas políticas classistas já não estavam mais na ordem do dia. A surpreendente ida às ruas da classe média nas últimas semanas nos faz pensar que talvez não seja bem assim.
Alguns dados elaborados, em 2011, por Celi Scalon e André Salata, na contramão da sociologia dominante, apresentam-se como um ponto de partida relevante para a problematização desse consenso. Adotando o esquema de classes EGP (elaborado originalmente por Erikson, Goldthorpe e Portocarero), eles conceituam a classe média como aquela formada por profissionais e administradores, trabalhadores não manuais de rotina e pequenos proprietários; diferenciam essa classe média da chamada “classe trabalhadora”, formada por trabalhadores manuais qualificados, trabalhadores não qualificados e trabalhadores rurais. É interessante notar que a classe média, assim definida, não se identifica, como tornou-se costume pensar, com a faixa C de renda, situada grosso modo entre os 50% mais pobres e os 10% mais ricos da pirâmide social. Segundo dados de 2009, apenas 30% dessa faixa C era ocupada pela classe média, enquanto a classe trabalhadora urbana respondia por 59,2% dela e os trabalhadores rurais, por 10,6%.
Pois, no limite, foi essa “velha” classe média, e não a classe trabalhadora mais próxima à faixa de renda C, que saiu às ruas em junho. Segundo pesquisa do Datafolha de 20/6, 78% dos manifestantes tinham ensino superior completo. De acordo com pesquisa do IBOPE do mesmo dia, essa taxa seria de 43% (sendo que 49% teriam entre ensino médio completo e superior incompleto); da mesma forma, 49% tinham renda superior a 5 salários mínimos (e 30% de 2 a 5 salários). Na pesquisa de Scalon e Salata, com dados de 2009, apenas 7,7% dos trabalhadores manuais qualificados e 4,4% dos trabalhadores não qualificados tinham mais de 12 anos de estudo, enquanto que, para a classe média, essa taxa chegava a 71,8% para os profissionais e administradores, mais próximo do universo pesquisado pelo Datafolha e IBOPE.
Mais ainda, adotando esse recorte, verifica-se que a tão aclamada “nova classe média” é, em certo sentido, uma quimera: de 2002 a 2009, a classe média definida pelo esquema EGP passou de 30,9% para 32% do recorte estudado segundo dados do PNAD. De 2002 a 2009, a renda média dos trabalhadores manuais qualificados e não qualificados (classe trabalhadora urbana) cresceu, respectivamente, 13,3% e 9,8% a preços constantes; a renda média dos trabalhadores rurais cresceu 15%. O contraste com a dinâmica de renda da classe média é espantoso: no mesmo período, a renda média de profissionais e administradores variou positivamente apenas 2,7%; dos trabalhadores não manuais de rotina, 1,6%; e dos pequenos proprietários, 4,2% (todos os dados, segundo Scalon e Salata). Não há nada de novo nessa classe média; o que surpreende não é o seu dinamismo, mas sua estagnação relativa. É evidente, aqui, que a política sistemática de aumento do salário mínimo – cerca de 70% de aumento real nos últimos 10 anos – e de formalização das relações trabalhistas, paralelas à política de transferência de renda e assistência social (especialmente, o Programa Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada), tiveram um impacto direto, não na classe média, mas na classe trabalhadora. Da mesma forma, foi esta última a grande beneficiada com a expansão do microcrédito e do crédito consignado, entre outras formas de financiamento popular. Grosso modo, a classe média, já bancarizada, pouco ganhou com essa expansão.
O mesmo é válido para as políticas universalistas de investimento em educação e saúde públicas. O aumento sistemático dos gastos federais com saúde – subindo de 4,7% para 8,7% do orçamento federal nos últimos 10 anos – levou a um aumento considerável dos gastos per capita com saúde (de US$ 107,00 para US$ 466,00 de 2000 a 2010, segundo dados da OMS). Esses investimentos, no entanto, não tiveram impacto relevante para a classe média: não foram suficientes para que ela migrasse do sistema privado de saúde para o SUS, liberando assim recursos de seu orçamento para outros gastos. Pelo contrário, os beneficiários de planos privados cresceram de 31,1 milhões em 2000 para 45,3 milhões em 2010 (dados da ANS). Isso se deu, em parte, porque os investimentos na área foram insuficientes para a elevação da qualidade do serviço ao padrão procurado pela classe média e, em parte, pela existência de um discurso cotidiano e sistemático de desvalorização do serviço público de saúde. Não por acaso, 28,8% dos usuários do SUS avaliam o sistema como ruim ou muito ruim, enquanto esse taxa, entre os não usuários, sobe para 45% (dados do Ministério da Saúde). O fato é que os investimentos em saúde pública nos últimos anos – seja pelo passivo ainda existente, seja pela constante exposição pública das deficiências do sistema, que não deixa de ter fundamento – não foram suficientes para que a classe média abandonasse o sistema privado, em larga medida também financiado pelo poder público na forma de renúncia fiscal (que chegou a cerca de R$ 16 bilhões em 2011, equivalente a 22,5% do orçamento federal para a área, segundo estudo do IPEA). Seja como for, os ganhos da classe média com esses avanços nos investimentos em saúde pública não são visíveis.
Algo similar aconteceu com os investimentos públicos em educação. Nessa área, de 2000 a 2011, os investimentos globais passaram de 4,7% para 6,1% do PIB, segundo dados do INEP. Em recente relatório da OCDE, esse avanço foi qualificado como um dos mais relevantes entre todos os países estudados. No entanto, da mesma forma que na saúde, o impacto dessa política para a classe média deve ser avaliado em separado; da mesma forma que na saúde, esses investimentos não foram suficientes para uma migração da classe média do setor privado para o setor público. Em 2003, por exemplo, dos 55,2 milhões de estudantes matriculados na educação básica (incluindo o ensino médio), 6,9 milhões estudavam no sistema privado; em 2011, enquanto o total de alunos matriculados cai para 50,9 milhões, o número de estudantes em colégios privados sobe para 7,9 milhões (dados do INEP). Longe de a classe média haver buscado o setor público, houve sim uma reafirmação do setor privado, beneficiado pelo aumento generalizado da renda. Mais ainda: enquanto na educação básica o salto de investimentos foi de 3,7% para 5%, no ensino superior estes permaneceram praticamente estáveis (entre 0,9 e 1% do PIB). Como a classe média, historicamente, recorre à educação privada nos níveis básicos e ao ensino superior público nos níveis superiores, tampouco foi palpável, para ela, qualquer avanço relevante nessa área. Não por acaso, novamente de acordo com os dados compilados por Scalon e Salata, a camada superior da classe média (profissionais e administradores) teve incremento médio de apenas 0,8 anos (de 13,4 para 14,2) de escolaridade entre 2002 e 2009, enquanto a camada superior da classe trabalhadora (trabalhadores manuais qualificados) registrou incremento de 1,3 anos (de 7,5 para 8,8). Seja no que diz respeito à política de transferência de renda, seja no que diz respeito às políticas de educação e saúde, o avanço nos investimentos públicos dos últimos anos não foi palpável para a classe média. Existe, por isso, uma base material para sua insatisfação, expressa nas ruas.
Esses dados, no entanto, não devem ser compreendidos fora da lógica política predominante dos últimos anos, durante o governo do PT. Na verdade, eles são compreensíveis apenas por meio dessa lógica. Como bem a conceitualizou André Singer, essa política, denominada por ele de “lulismo”, está fundada na construção de “uma substantiva política de promoção do mercado interno voltado aos menos favorecidos”, isto é, o “subproletariado” (SINGER). Foi por meio dessa espécie de aliança direta com essa fração da classe trabalhadora que o PT garantiu as vitórias eleitorais de 2006 e 2010. Nesse sentido, quase todas as bandeiras políticas levantas pelo PT nos últimos 10 anos e capazes de mobilizar o apoio popular direcionaram-se à classe trabalhadora e, em especial, aos seus membros de mais baixa renda: programas de assistência social como o PBF, o “Brasil sem miséria”, o “Luz para todos”, o “Minha Casa Minha Vida”, a garantia dos direitos trabalhistas dos empregados domésticos, entre outros, não tinham qualquer apelo para a classe média. Esta tornou-se secundária no interior desse arranjo. Na melhor das hipóteses, ela permaneceu indiferente às bandeiras políticas levantadas; na pior, apenas viu nesses programas uma política populista de um governo que distribuía “esmolas” e, assim, onerava indiretamente sua renda (a resistência ao PBF e aos direitos dos empregados domésticos foi sintomática dessa percepção). Apesar do histórico êxito na diminuição da miséria e da desigualdade no país, ampla parcela da classe média jamais tomou consciência do avanço civilizacional que ele representou. Daí o corte classista das últimas eleições federais (2006 e 2010), com a direitização da classe média tradicional, invisibilizada no interior de uma suposta “classe C”.
Mas seria errôneo acreditar que o governo do PT sustenta-se apenas no apoio eleitoral das frações mais baixas da classe trabalhadora. Por certo, foram elas que garantiram as vitórias eleitorais de 2006 e 2010. Mas a governabilidade não poderia sustentar-se apenas nelas. E aqui, novamente, a sociologia da renda é empobrecedora do debate: ao dividir a sociedade brasileira em quartis de renda, perde-se completamente a especificidade de uma classe que tampouco pode ser diluída em uma faixa de renda, no caso, no bloco “AB” da pirâmide social, a saber, os grandes capitalistas. Pois, paralela às políticas direcionadas à classe trabalhadora e às suas frações mais baixas, o que marcou os dois governos Lula e, ainda mais, o governo Dilma foi um comprometimento claro - embora submetido a uma certa gramática desenvolvimentista - com os interesses de grandes grupos econômicos e com a criação de um “ambiente de negócios” a eles favoráveis. Sintomático, salta-se do microcrédito para os grandes financiamentos do BNDES em sua política de defesa e fortalecimento das chamadas “campeãs nacionais”. Da mesma forma, são garantidas as melhores condições possíveis para a expansão do agronegócio – da noite para o dia, aliado de primeira ordem – e, por meio do PAC, tenta-se superar os gargalos logísticos denunciados tão enfaticamente pelo empresariado nacional.
Quando Lula reconhece que os bancos jamais ganharam tanto como durante o seu governo, ele não está apontando para um acaso histórico: está revelando a própria natureza do arranjo político que tem sustentado os mandatos do PT. O apoio da classe trabalhadora garantiu as vitórias do PT nas urnas e o apoio da classe capitalista, disciplinada pelo desenvolvimentismo, garante sua governabilidade. Abre-se mão da disputa pela classe média, que resta perdida para uma direita desorganizada e sem projeto depois de sucessivas derrotas eleitorais. A aposta implícita foi a de que uma parcela dessa classe média se contentaria com os ganhos indiretos do crescimento econômico (garantia do pleno emprego e aumento de renda, não tão expressivo como o da classe trabalhadora, mas real), enquanto outra não valia a pena disputar politicamente. Grande parte da esquerda acostumou-se com uma classe média alinhada com discursos quase caricaturais sobre a “vida difícil” daqueles que sustentariam o “bolsa isso, bolsa aquilo”. Discurso vazio, mas que ressurgia como uma ameaça real a cada nova eleição. Outra fração, minoritária (Psol), tentou adequar seu discurso a essa classe média por meio de uma politização do tema da corrupção, sem sucesso.
As manifestações de rua do último mês são expressões das contradições imanentes desse arranjo político. A classe média que saiu de casa não o fez na defesa de qualquer direito que se encontrava em xeque. Tampouco porque já sente na pele os supostos limites de um modelo econômico que a grande imprensa, há anos, insiste em afirmar que se tornou insustentável. A variedade de reivindicações difusas e abstratas é, antes, correlata dessa orfandade política a que ela, a classe média, foi relegada nos últimos anos. Não é de se estranhar, portanto, que, na falta de um discurso estruturado, ela apenas repita certas palavras de ordem vazias veiculadas pela imprensa ou por setores da direita.
Se buscarmos o denominador comum dessas reivindicações, chegamos a duas características básicas. Por um lado, são pautas consensuais no debate político brasileiro: mais investimentos em saúde e educação, combate à corrupção, gasto responsável do dinheiro público, defesa dos direitos de minorias e reforma do sistema político no sentido de uma maior participação direta dos cidadãos. Elas, por vezes, podem ser apresentadas com alguma coloração conservadora, como na defesa da redução do Estado; no entanto, são pautas, em si, progressistas. Em si, nada há de conservador na defesa de um Estado mais responsável nos seus gastos ou no combate à corrupção. Por outro lado, essas pautas são apresentadas de modo abstrato e pouco articuladas: pouco se diz sobre a forma de encaminhamento político dessas demandas. Por vezes, parecem apenas responder a anseios narcisistas de “dormir em paz com o dever cívico cumprido”.
Pois é nessa fissura entre demandas políticas legítimas e certa incapacidade de formulação de modos concretos de encaminhamento dessas demandas que se dará o disputa política daqui para frente.
Parte da direita e da grande mídia pretende manter o debate nesse nível abstrato, asséptico. Daí seu discurso “boa praça” que apenas projeta o narcisismo dos manifestantes: “o gigante acordou”, “a avenida Getúlio Vargas está linda”. Ela não quer ir para o particular porque isso implicaria colocar em xeque seus próprios interesses. Ela tampouco ganharia com a instabilidade institucional: ao que tudo indica, a tendência é tentar manter essa “insatisfação geral” em voga até que, nas eleições do próximo ano, um voto contra “tudo que está aí” leve, nas urnas, a uma mudança de governo.
Isso não significa que outra parcela da direita, minoritária, porém mais oportunista, não tente jogar suas cartas. Ela sabe que essa equação entre anseios políticos legítimos, mobilização popular e despolitização da classe média (no sentido de uma inconsciência sobre os mecanismos de encaminhamento daqueles anseios) pode ser explosiva se bem manipulada. Essa direita algo alucinada parece surgir da “internet profunda” e, por meio de boatos, personalismos e propostas fáceis demonstra sua falta de compromisso com as instituições democráticas. Decerto, esses grupos são minoritários e pouco relevantes politicamente. Mas podem aproveitar-se de uma situação que é, sim, vulnerável.
À esquerda cabe olhar para sua experiência histórica e para suas contradições presentes. A tendência é que, daqui para frente, alianças de cúpula e o êxito de políticas sociais, sem a correspondente mobilização social que envolva a classe média, não serão suficientes para garantir a hegemonia política do governo. Para que a mobilização dessa classe não signifique retrocesso, a esquerda deve urgentemente propor e sustentar pautas concretas para o encaminhamento político das demandas levantadas nas últimas semanas. É nesse espaço entre os desejos legítimos expressados nas ruas e a sua viabilização que a esquerda deve posicionar-se. A tarefa é árdua porque envolve a recuperação de uma prática abandonada pelo setor dominante da esquerda: a disputa pela hegemonia cultural e ideológica da classe média e da sociedade.
Mas isso está longe de ser utópico. Há cerca de 20 anos, a esquerda cultivava essa hegemonia. A aposta na confluência entre o particular e o universal, como meio para o avanço nas lutas por direitos sociais, tal como teorizado por Eder Sader, foi, em larga medida, responsável por essa prevalência. E foi essa mesma dialética que sustentou as manifestações de junho. O fato de que, em um primeiro momento, tenha sido a politização de um demanda concreta – a redução da tarifa do transporte público – o que fez a classe média sair às ruas é de extrema importância e deve ser levado em consideração. Sem essa politização do dia a dia, a tendência é que a classe média permaneça, com alguma razão, indiferente aos esforços progressistas de avanço nos direitos sociais; afinal, o êxito dessas políticas nos últimos anos passou ao largo da sua realidade de classe. A vitória do Movimento Passe Livre acabou de mostrar-nos a viabilidade dessa política de “queixas do cotidiano” hoje. É preciso digerir essa experiência e reproduzi-la conscientemente.
Carlos Henrique Pissardo é mestre em filosofia (USP) e diplomata. Este artigo reflete apenas as opiniões do autor.
(Publicado originalmente no Portal Carta Maior)
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