JOSÉ LUIZ GOMES ESCREVE
O
cientista político Francis Fukuyama sempre encontra um jeito de enaltecer as
virtudes das economias liberais, mesmo em momentos de grandes crises, como
esses que estamos vivendo. Quando caiu o Muro de Berlim, um artigo escrito por
ele fez enorme sucesso: “O Fim da História e o Último Homem”, onde advogava o
triunfo das democracias liberais sobre a experiência do socialismo realmente
existente. O artigo, naturalmente, provocou grandes controversas, suscitando
manifestações acadêmicas acaloradas por todo o mundo. O autor teve que dar
muitas explicações, sobretudo no que concerne à expressão fim da história.
Numa
análise orientada pelo Departamento de Estado Norte-Americano – onde trabalha –
Fukuyama concluía que as democracias liberais seriam o último estágio e
organização político- social e, sem nenhuma preocupação com o relativismo
cultural e as distorções desse modelo de organização social, as outras formas
de organização social haviam perdido o “bonde da história”.
Não
é de estranhar que o seu raciocínio torpe e profundamente enviesado tornou-se
uma “doutrina” para “justificar” as intervenções dos Estados Unidos pelo mundo
afora, como ocorreu no Afeganistão e no Iraque. Para Fukuyama o problema
daqueles países seria o que ele chama de “ausência de estado”, ou seja, a
ausência do modelo das democracias liberais burguesas, com os três poderes constituídos,
eleições regulares etc. Algo que os Estados Unidos tentam implantar, sem
sucesso, por exemplo, no Iraque, depois das lambanças de forjar suposta
existência de armas químicas naquele país.
Agora,
em função dessas últimas mobilizações mundiais, não poderia ser diferente. Em
artigo publicado no “Wall Street Journal”, lá vem o intelectual orgânico do
establishment americano com a sua versão sobre os fatos. Fukuyama não vê nos
protestos nenhuma luta anticapitalista. Aliás, o correto seria falar em
“fermento” e não protestos, posto que tais mobilizações, de acordo com ele, são
o resultado da ascensão de uma nova classe média global, e que não será capaz
de determinar mudanças duradouras. O que ocorre na Turquia, na Primavera Árabe e no Brasil é o
resultado dessa mesma “fermentação”.
Dito
de outro modo, como observou o jornalista Clóvis Rossi, da Folha de São Paulo, trata-se de um fortalecimento do capitalismo.
Esses manifestantes seriam “burgueses que reclamam não só segurança para a
própria família, mas também liberdade de escolha e mais oportunidades”.
O
esloveno Slavoj Zizek, também em artigo publicado no “London Review of Books”,
por sua vez, observa o fenômeno das mobilizações por um prisma absolutamente
distinto do de Fukuyama. “São todas as reações a facetas diferentes da
globalização capitalista. A tendência geral do capitalismo global de hoje é no
sentido de uma expansão ainda maior do império do mercado, combinada com o
progressivo fechamento do espaço público, a redução dos serviços (saúde,
educação, cultura) e uma gestão sempre mais autoritária do poder público. Numa
linha de raciocínio muito próxima ao sociólogo espanhol Manuel Castells, Zizek
também observa o “esgotamento do modelo de democracia representativa”, posto
que tal modelo tem sido insuficiente para combater os excessos do capitalismo
e, acrescentamos, as imperfeições do próprio sistema político, como no caso do
Brasil, uma corrupção crônica da máquina pública, fisiologismo, estrutura
partidária frágil etc.
Com
uma visão aguçadíssima, o sloveno acerta ainda num outro ponto, o da gestão
sempre mais autoritária do poder político, intervindo de forma violenta sobre
as liberdades fundamentais e constitucionais dos indivíduos, fato que já é
possível de ser observado em algumas praças da Federação, como Pernambuco e Rio
de Janeiro em maior escala, para ficarmos nos exemplos brasileiros. Pelo
pronunciamento das autoridades responsáveis pela segurança pública no Rio, o
quadro se apresenta desalentador, confirmando-se o que nos parece ser uma
tendência, ou seja, repremir e criminalizar as legítimas manifestações de rua,
exigindo melhorias dos serviços públicos, mudanças nos nefastos costumes dos
políticos brasileiros e reorientações das políticas públicas.
Se
considerarmos que existem vários tipos de “fermentos”, esse ao qual faz referência
o Francis Fukuyama, possivelmente nem é aquele usado pelas nossas avós para
preparar os bolos servidos no domingo à tarde e, muito menos, um fermente
social sem maiores consequências, apenas uma corrente que faz desaguar, como
sugere o antropólogo Gilbert Duran em sua bacia semântica, na sua incorporação
pelo “status quo” capitalista, permitindo-se, tão somente, alguns ajustes, sem
interferir em sua essência.
O
fermento que se observa no Brasil é um fermento nefasto e perigoso, que atenta
contra as liberdades individuais e sugere rupturas institucionais, o que é
muito grave. É preciso avançar preservando os parâmetros da democracia
política. Vamos ficar de olhos bem abertos porque, em última análise, os
ingredientes desse “fermento” do arbítrio estão todos dados. Direita mobilizada
nas ruas, pregações fascistas e ditatoriais pelas redes sociais, apelos abertos
do PIG por ações repressoras e enérgicas do aparelho repressor do Estado –
apenas para lembrar Louis Althusser, os aparelhos ideológicos do PIG parecem
ter falhado. Eles estão acuados.
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