publicado em 18 de julho de 2013 às 13:31
por Antônio David, especial para o Viomundo
Em artigo publicado recentemente no Viomundo,
procurei discutir a tese de Vladimir Safatle segundo a qual “o ciclo do
‘lulismo’ acabou por não ter tido condição de aprofundar suas
políticas”. Entre outros pontos, argumentei naquele artigo que, “ao
amparar-se nessa constatação /…/, Safatle está olhando apenas para o
proletariado e ignorando solenemente a existência do subproletariado”.
Em seu mais recente artigo na Folha de S. Paulo, Safatle procurou enfrentar a questão do subproletariado. O mote é a revolta dos trabalhadores da usina de Jirau (RO).
Nesse artigo, Safatle afirma que a revolta dos trabalhadores de Jirau
teria sido o “ensaio geral para as manifestações de Junho”. Ele
argumenta que os trabalhadores não apenas “atearam fogo em alojamentos e
ônibus”, mas também “na afirmação de que o subproletário brasileiro
preza a ausência de radicalismo e a segurança” – tese presente no livro Os sentidos do lulismo, do cientista político André Singer, e reproduzida por mim em meu artigo.
Safatle constata ainda que “depois de Jirau, veio uma sequência quase
ininterrupta de greves: de policiais, bombeiros, professores,
coveiros”, para então apresentar aquela que parece ser a tese central do
artigo: “se há algo que une tanto o subproletário quanto a classe
média, é a consciência de que o processo de ascensão social produzido
pelo lulismo esgotou”.
Não ficou claro quem faz parte do que Safatle chama de “classe
média”, haja vista a grande confusão em torno de sua caracterização, assunto do qual Wladimir Pomar tratou com grande competência em artigo publicado recentemente pela Fundação Perseu Abramo.
De qualquer forma, não me parece fazer sentido a afirmação de que para a
classe média “o processo de ascensão social produzido pelo lulismo
esgotou”, pois desde o aparecimento do lulismo essa classe rejeita o
processo de ascensão social.
Quanto à consciência dos policiais, bombeiros, professores e coveiros
– ou seja, da classe trabalhadora –, creio que é necessário mais
pesquisas para sabermos o quanto de verdade há na afirmação por ele
feita. Pois, embora as manifestações aparentemente deem razão para
Safatle, as greves parecem desmenti-lo: se há greves, em geral é porque os trabalhadores sentem que seu poder de barganha é maior.
Contudo, o foco deste novo artigo de Safatle parecer ser o
subproletariado. E aqui há um grande problema. Isso porque, se é verdade
que Safatle escreveu acreditando tratar do subproletariado na figura do
trabalhador de Jirau, na prática todas as afirmações que ele faz dizem
respeito não ao subproletariado, mas ao novo proletariado.
A compreensão das classes e suas frações no Brasil é assunto
complicadíssimo. Faltam estudos sobre o tema. Ademais, com a política de
valorização do salário mínimo ocorrida sob o lulismo, houve flutuações
demográficas ainda mal compreendidas que implicaram na incorporação de
parcela do subproletariado ao proletariado – muito provavelmente os
trabalhadores de Jirau façam parte deste contingente.
Como não sou especialista no assunto, deixo para os especialistas a
difícil tarefa de explicar as diferenças entre as duas frações da classe
trabalhadora no Brasil, que envolvem não apenas questões econômicas,
bem como as recentes flutuações. Limito-me a apontar para o que alguns
estudiosos do tema têm dito: que o subproletariado era enorme em tamanho
em 2002, quando Lula foi eleito pela primeira vez, e ainda é enorme em
tamanho – em meu outro artigo, já havia alertado para o fato de que, em
2011, dos brasileiros em idade ativa, 23,6% ganham até 1 salário mínimo,
e 22,4% ganham de 1 a 2 salários mínimos.
Quanto aos trabalhadores de Jirau, se levarmos em conta que uma das
características do subproletariado é que, exatamente por estar abaixo da
condição proletária, essa fração não tem condições de fazer greve, é
duvidoso situar tais trabalhadores nessa fração, haja vista suas não
apenas suas greves, mas também suas reivindicações (reajuste salarial,
aumento na cesta básica, pagamento de hora-extra, ampliação da licença), próprias do proletariado.
Assim como é próprio do proletariado a organização sindical. Aliás,
lendo o primeiro parágrafo do link, datado exatamente de abril de 2011,
tampouco parece correta a afirmação de que os trabalhadores de Jirau
“[não se sentem] representados por sindicatos”.
Em entrevista para o Brasil de Fato concedida em 2012,
o cientista político André Singer já tratara das greves nas
hidrelétricas, sobre as quais afirma: “Esses setores são tipicamente
setores de baixa remuneração e alta rotatividade. Para essa parcela
desse novo proletariado podemos ter a expectativa de valores compatíveis aos do velho proletariado”.
Antes de seguir adiante, gostaria de fazer duas ponderações sobre os
trabalhadores de Jirau – na verdade são duas hipóteses, que requerem
pesquisas para serem confirmadas.
Em primeiro lugar, se desenhássemos a pirâmide social brasileira,
provavelmente veríamos os trabalhadores de Jiraú situados na fronteira
entre o subproletariado e o proletariado, ou um pouco acima dela, ou
mesmo um pouco abaixo, no caso de uma parcela. Provavelmente tal
proximidade traz consigo características em comum, o que alimenta e
explica a confusão – ou seja, assim como há trabalhadores que se parecem com classe média, também há proletários que se parecem com subproletários.
Em segundo lugar, é provável que os trabalhadores situados nessa
faixa de fronteira entre o subproletariado e o proletariado ou um pouco
acima dela sejam o elo mais fraco da cadeia de trabalho, ou seja,
aqueles que mais sentem a opressão da dominação capitalista no Brasil. É
uma hipótese.
O ponto para o qual quero chamar a atenção, no entanto, é o que vem a
seguir. Diz respeito a algo do qual já havia feito menção no artigo
anterior. Cito-me: “Não é raro ler e ouvir que o subproletariado não
existe; há ainda aqueles que reconhecem a existência dessa fração de
classe, mas que atribuem a ela o que na verdade faz parte do
proletariado. Estou falando do curioso fenômeno da invisibilidade do
subproletariado”.
André Singer, que teve o mérito de ter reabilitado a categoria de
“subproletariado” na análise das classes sociais no Brasil, já havia
alertado para este problema em Os sentidos do lulismo, quando afirma que os eleitores de baixíssima renda “tendem a ficar invisíveis para os analistas” (p.53).
Em suma, se Safatle escreveu “Onde tudo começou” para rebater a
crítica que lhe foi dirigida, ainda há o que dizer. Pois, imaginando
tratar do subproletariado, ele apontou para o (novo) proletariado.
Incorreu no mesmo erro.
Por que, afinal, o subproletariado é invisível – tão invisível que
assim permanece mesmo aos olhos de quem quer olhar para ele? Não tenho
resposta para essa pergunta. Aqui novamente, deixo a tarefa para os que
têm capacidade de cumpri-la.
Se Safatle voltar seus olhos para o subproletariado, provavelmente
chegará a uma conclusão diferente, pois é duvidoso que essa fração de
classe tenha “a consciência de que o processo de ascensão social
produzido pelo lulismo esgotou”.
Não é isso o que as pesquisas mostram. Nem tampouco o que se ouve dos
pobres. Agora, se o que está em jogo para Safatle é a necessidade de
construir essa consciência, isso é outra história. Mas, mesmo para um
projeto político, é imperativa a justa compreensão da realidade como ela
é e não como imaginamos ser ou gostaríamos que fosse. Afirmar algo que
não é, mas que queremos que seja, é uma tática que pode ser útil
politica e eleitoralmente, mas tem seu preço. O risco é a petrificação
do discurso – não só do próprio discurso, mas do discurso alheio. Pode
ser emburrecedor. É exatamente o que vemos quando o governo insiste em
chamar a nova classe trabalhadora de “nova classe média”.
Indo além na crítica, tampouco me parece que haja algo relevante que
una subproletariado (e proletariado) e classe média. A rigor, se há algo
que une um e outro, esse algo é do âmbito do superficial, pois no que
realmente importa essas classes querem o exato oposto.
Enquanto os trabalhadores de Jirau, policiais, bombeiros,
professores, coveiros etc. fazem greve, a classe média abomina as
greves. Enquanto os trabalhadores reclamam por mais Estado e mais
direitos, a classe média reclama por menos Estado – ou, se reclama por
mais Estado, é apenas para si e na forma de policiamento, e queixa-se,
ao lado da burguesia, por ter de pagar impostos – e sente-se prejudicada
pelo bolsa família e pelas cotas nas universidades.
Ao mesmo tempo, muitos dos apontamentos feitos por Safatle são
justos, corretos e necessários: quando afirma que os baixos salários são
“incapazes de dar conta dos gastos em um país onde somos obrigados a
pagar por educação e saúde, onde não se pode contar com transporte
público e onde o preço dos imóveis explodiu devido à especulação
imobiliária”; quando reivindica “um Estado capaz de oferecer serviços
públicos que eliminassem os gastos das famílias com educação, transporte
e saúde”; quando afirma que “o governo deveria ter partido para uma
reforma fiscal” que obrigue os ricos a pagar impostos e que, para tanto,
“seria preciso outra ideia do que significa ‘garantir a
governabilidade’”.
Penso inclusive que Safatle poderia ter ido além em sua crítica ao
lulismo. Se o fizesse, talvez chegasse à conclusão oposta. Pois, na
verdade, o grande problema do lulismo parece estar exatamente no fato de
não ter se esgotado – ou seja, em ter mantido as condições para sua perpetuação.
Pois, se o lulismo guarda em si uma vocação igualitarista, isto é, se o
objetivo é o combate à pobreza e à desigualdade, então como explicar que, passados dez anos, o subproletariado ainda exista e em tão elevado número?
O próprio André Singer chama a atenção para isso em seu livro: “o
reformismo fraco, por ser fraco, implica ritmo tão lento que, por vezes,
parece apenas eternizar a desigualdade” (p.199). Se o lulismo tem um
pecado, esse pecado está na longa duração. A pobreza e a desigualdade
estão caindo, mas muito lentamente – e talvez mais lentamente ainda com
Dilma.
A esquerda tem grandes e complexos desafios a enfrentar, desde
desafios políticos e ideológicos até desafios organizativos. Quem pode
resolvê-los são os trabalhadores e suas organizações. Mas penso que o
enfrentamento destes desafios envolve um esforço teórico, e os
intelectuais (de dentro e de fora das universidades) têm um papel
fundamental, qual seja, combinar esse tipo de abordagem feito por
Safatle em seus justos e necessários apontamentos com a justa
compreensão das classes e suas frações, com uma leitura da sociedade
brasileira que apreenda nosso atraso histórico e nossas profundas
divisões, o que equivale a dizer, com os impasses legados pela formação
do Brasil. Essa é a síntese que carece ser feita.
Sob o risco de ser simplista – pois o problema vai muito além disso
–, talvez o dilema maior no interior da esquerda brasileira possa ser
formulado nestes termos: enquanto alguns conseguiram ver o
subproletariado e o levaram em conta – sob o custo de terem privilegiado
a luta eleitoral e parlamentar e a governabilidade e de negarem a
radicalização política, o que levou alguns à degeneração e à traição –,
outros privilegiaram a necessidade de reduzir a desigualdade rapidamente
e de afirmarem a necessidade da radicalização política – e o custo
parece ter sido a incapacidade de verem o subproletariado ou, entre os
que conseguiram vê-lo, de lidar com essa fração de classe, o que os
levou a marginalizar a luta eleitoral ou a engajar-se nela de forma
caricatural.
Desnecessário dizer que essa é uma generalização. Seria importante
considerar as experiências de governos e mandatos democrático-populares
na história recente, além de movimentos sociais que organizam essa
fração de classe e que, de uma forma ou de outra, tomam parte na luta
eleitoral, dos quais o mais expressivo é o MST. Mesmo assim, apesar da
generalização, essa é uma dicotomia real. Ela não só existe como parece
ser predominante na esquerda. Superá-la é a chave para a superação do
paradoxo do lulismo. Há quem se esforce por superá-la. Disso depende a
promoção do igualitarismo e da soberania popular.
PS: a quem tiver interesse em dados sobre as condições de trabalho na construção civil, recomendo um recente estudo do Dieese sobre o assunto; em relação às greves, há um outro estudo do Dieese que trata do assunto.
Antônio David é pós-graduando em filosofia na USP e mantém uma página no Facebook para divulgação de pesquisas e análises sobre o Brasil.
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